Uma rosa na praia

Uma rosa na praia

A segunda narrativa da velhice que trago para os leitores do Portal é de Rosa, que diz que “ser velho é ter muitas coisas para lembrar sem saber quantas coisas ainda se tem para viver”.


Eu me chamo Rosa, meus pais me deram esse nome, pois a minha mãe é apaixonada por rosas brancas, ela sempre disse que a simbologia é de que essas flores significam pureza, inocência, paz e espiritualidade, ela disse que essas eram as características que eu trouxe para a vida dela quando eu nasci.

Eu nasci em uma aldeia de São Miguel de Carreiras (1), hoje em dia nem é mais esse nome da freguesia lá de Portugal, mas na minha época era. Eu venho de uma família muito pobre, quando eu nasci, eu era a primeira filha mulher da minha mãe, eu tinha dois irmãos mais velhos, achei que eu seria única em sua vida, mas apenas três anos depois, minha mãe já teve mais um filho homem e meu pai insistia que eles aceitariam quantos filhos Deus oferecesse, de forma que ainda vieram outros quatro irmãos para compor a nossa família, duas meninas e dois meninos.

Quando eu completei seis anos, o meu irmão mais velho de todos, Antônio, já tinha dez anos e não morava mais conosco, morava com meu avô paterno e já trabalhava nas plantações da família, eu acreditei que eu ficaria na casa da minha mãe, pois afinal, eu era a filha mais velha que cuidaria da casa, mas meus outros cinco irmãos exigiam demais de minha mãe, de forma que fui mandada para morar com meu avô materno e minha madrinha.

Eu nunca me esqueço o quanto eu chorei nas primeiras noites, eu nem conseguia desfazer as minhas malas, porque não conseguia acreditar que eu teria que morar lá, logo eu que era a Rosinha, a filha que trouxe tanta pureza, inocência, paz e espiritualidade para a vida da minha mãe. Comecei a pensar se aquilo não era na verdade um castigo, se eu havia falhado com meus pais ou meus irmãos em algo, mas não conseguia me recordar de nada que tivesse feito de mal.

Quando eu fiz 12 anos, meu avô faleceu de um ataque cardíaco, foi horrível ver a agonia do meu avô morrendo, sendo que não havia nenhum médico na aldeia que pudesse ajudar ele, assim como não tinha como levar ele para o hospital, pois não tínhamos nenhum meio de transporte que não fosse um burro já mais velho dos meus pais. Meu avô morreu sufocado, eu passei quatro anos com medo de dormir e não conseguir mais respirar.

Nesse mesmo ano eu abandonei a escola, o que não era uma coisa muito ruim, já que a escola era só um espaço com várias crianças de idades diferentes tentando aprender a ler, sem muito sucesso na maior parte das vezes, então fui trabalhar nas plantações e no vinhedo da família, porque era melhor trabalhar do que permanecer sendo inútil na casa, coisa que minha madrinha fazia questão de dizer que eu era, depois que meu avô morreu.

Quando eu fiz 18 anos decidi que eu queria mudar de vida, queria conhecer um belo rapaz, casar e ter filhos, mas a primeira vez que vi um rapaz de outra cidade trazer alguns alimentos para a aldeia para uma família vizinha, eu logo sorri e ele me sorriu de volta. Foi a primeira vez que eu flertei com alguém, mas eu não fazia ideia de que a minha madrinha estava na casa dos vizinhos, onde presenciou toda a cena, de forma que quando eu voltei para junto dela, eu levei um tapa na minha cara, esse foi o dia em que conheci o ódio. Eu não sentia uma simples raiva pela minha madrinha, eu sentia muito ódio.

Nesse momento em que eu não aguentava mais viver ali, eu comecei a conversar com meu tio Joaquim, pois ele já havia viajado duas vezes para o Brasil e dizia que lá era um país que tinha ótimas condições, isso me deixou bem interessada, começamos a falar cada vez mais sobre isso, até que um dia recebi uma carta de um casal de primos meus, Antônio e Mariluce, para que eu fosse trabalhar na casa deles de babá no Brasil, a fim de me estabelecer no país e depois construir a minha própria vida. Eu não via mais a hora de sair de perto da minha madrinha, de forma que escrevi uma carta em resposta de que sim, eu aceitava e iria trabalhar com eles.

Não tive cerimônias para me despedir da minha família, meus pais choraram muito ao saberem que eu iria embora, mas eu não estava triste como eles, nós nunca convivemos, não fazia o menor sentido, já a minha madrinha simplesmente me disse que não daria certo e que eu voltaria chorando para a casa dela, o que eu acreditei que jamais iria acontecer, mas não quis brigar com ela, pois estava muito feliz por ir embora.

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Em um mês fiz uma pequena mala, com as poucas roupas que eu tinha e o meu tio me trouxe a passagem, ele não iria comigo para o Brasil, mas ele foi junto comigo até o embarque do navio que me levaria. Eu nunca vou esquecer a sensação de ver aquele enorme navio atracado, eu passei 14 dias em alto mar para atravessar para outro continente, sem família, pois eu mal conhecia esses primos, sem amigos, sem nada.

Os cinco anos em que trabalhei na casa dos meus primos foram tempos difíceis, eu não era parte da família, eu era apenas uma empregada, o trabalho era constante: cuida da casa, cuida da criança pequena, faz café da manhã, faz almoço, faz janta, dorme para começar tudo de novo no dia seguinte. Eu demorei quase um ano para ter uma folga aos domingos, eu me lembro que a primeira vez que uma vizinha me chamou para sair, eu percebi que não tinha nenhuma peça de roupa para ir para lugar nenhum, apenas as roupas para trabalhar, mas ela me emprestou.

Em um desses domingos de sol ela me chamou para ir à praia, eu nunca tinha ido em um lugar tão lindo, pois na minha terra nunca tinha visto uma praia, todas as pessoas com poucas roupas, sentadas num sol quente enquanto esperavam sua pele tostar, eu me sentia ridícula de usar um biquíni que a minha amiga me deu de presente, eu me sentia quase pelada, mas foi a melhor sensação da minha vida.

Entrar no mar, senti a água gelada nos meus pés, o dia estava completamente lindo e eu senti uma sensação estranha que eu nunca vou saber descrever exatamente, eu me sentia triste e sozinha em estar ali, longe da minha família e da minha terra, mas estava muito feliz em ter alcançado algo incrível: eu estava em outro país, eu estava trabalhando, eu seria independente. Comecei a me perguntar o quanto de orgulho meus pais sentiriam de mim, se soubessem.

Já se passaram mais de 56 anos do dia em que eu estive pela primeira vez nessa praia, mas parece que quanto mais eu envelheço, mais viva essa memória permanece em mim, consigo contar ela para os meus netos, familiares e amigos com perfeição, porque é só assim que eu sei que a minha história está eternizada na minha memória, repercutindo-a para as outras pessoas.

Ser velho é ter muitas coisas para lembrar sem saber quantas coisas ainda se tem para viver, essa é uma sensação enriquecedora, assustador e completamente incrível.

Nota
(1) São Miguel de Carreiras foi uma freguesia portuguesa do município de Vila Verde, Portugal.

Foto destaque de Miro Alt/Pexels

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Thaís Teixeira Carvalho

Formada em Serviço Social, especialista em Gerontologia. Atuou durante 4 anos em uma ILPI filantrópica e desenvolve conteúdos nas redes sociais sobre serviço social e envelhecimento. E-mail: [email protected]. Instagram: @longevamente. Linkedin: https://www.linkedin.com/in/tha%C3%ADs-teixeira-carvalho-b64aa945/. Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCH9LmmAkYe1uicMQZ1L0W1Q

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