Quem limpa a casa da vó?

Amor em tempos de vírus me parece difícil e sofrido, mas minha neta continua firme e cheia de esperanças. E me pergunta: E a limpeza da casa, vó?

Célia Morato Gagliardi (*)


– Vó, tudo bem? Estou com saudades.

– Eu também, neta querida. Tudo bem com você e o Pablo? Ele conseguiu voltar para o Chile?

– Não. A situação dele está muito difícil, pois as fronteiras estão fechadas. Você bem sabe Vó, aqui ele está sem trabalho. É músico, toca flauta e clarinete com a banda, mas agora, com o isolamento, nada funciona.

– Estou admirada com a sua clareza diante do amor longe e passando dificuldades. Vocês têm conversado?

– Sim, falamos sempre pelo WhatsApp. Continuamos apaixonados, mesmo à distância.

Admiro muito minha neta guerreira. Amor em tempos de vírus me parece difícil e sofrido, mas ela continua firme e cheia de esperanças. Que bom!

Há alguns anos, ela chegou aqui em casa sem avisar, desabou no sofá e me confiou dificuldades e injustiças que havia presenciado e sofrido na Avenida Paulista, durante a greve do “Passe Livre“. Teve amigos empurrados e chutados por policiais, porque tocavam tambores e gritavam palavras de ordem. Alguns foram jogados dentro de um camburão e levados para uma delegacia. Ela conseguiu correr, tomar o metrô até uma estação próxima e telefonar para sua casa, dizendo que estava com muito medo e pedindo que alguém fosse buscá-la. O pai foi e encontrou-a numa insegurança total, pois esteve na Paulista a contragosto dos pais. Mas como eles são maravilhosos, a recebem com o maior carinho do mundo. Banho tomado, roupa trocada, chá quentinho, boas conversas, muito choro e o pai cede seu lugar na cama para que Lica durma abraçada a sua mãe. Madrugada adentro, no sonho da juventude, enxerga uma Avenida Paulista colorida, cheia de flores e fitas douradas. Foi no dia seguinte que veio me ver. Perguntou muito e quis saber detalhes de minha participação em movimentos sociais, durante os anos de chumbo da ditadura militar. Fui aos poucos falando. Não estava animada para conversas profundas, pois no íntimo de meu ser compartilhava sua coragem e seu medo. Lica era particularmente curiosa, querendo saber como o Vô encarava a mulher ativista. Ele era muito bacana e mesmo quando entristecia com minhas atitudes, que para ele eram ousadas, silenciava. Foi bom companheiro nas “Diretas Já”, momento mágico do pluripartidarismo, com milhares de pessoas pelas praças do Brasil. Para aliviar nossa prosa, fui buscar minha caixinha de bottons. Ela se encanta e vai querendo saber o que cada um representa. Vou comentando:

Os mais queridos são os bottons de fundo amarelo e escrito em azul “Diretas Já”. Foi o momento mais incrível de solidariedade política, que vivi com grande entusiasmo.

As várias campanhas do Lula são contempladas com diversas cores e formatos. O que mais usava era um grande redondo, com o símbolo feminista envolvendo a estrela.

Como fui sindicalista vários anos, o botton “Eu não estou sozinho”, da APEOESP, incentivava a campanha de sindicalização. Fui grevista de primeira hora em todas as greves dos professores. Luta difícil e inglória por melhores salários e uma escola pública de qualidade.

Os mais criativos são os bottons com personagens do Henfil, cartunista maior do Brasil. A Graúna estava sempre presente com seu olhar profundo e impositivo indicando “Nossa luta continua”. Outros personagens ilustraram campanhas como a da Constituinte e da Reforma Agrária.

Quando estive em Cuba, em 1984, para um congresso de História da Ciência, voltei com inúmeros bottons, que mostram, na época, o orgulho do povo cubano pela revolução.

Ofereço-lhe de presente a caixinha. Ela recusa, diz que quer muito, porém mais tarde. Entendi…vai herdar esses pequenos troféus de lutas vividas e nem sempre vencidas.

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– E você Vó, o que tem feito? Estou lhe telefonando para dizer que vou limpar a sua casa, pois você já tem 83 anos e não pode fazê-lo sozinha.

Me emocionei. É lindo a guerreira me ajudar a limpar a casa, nas tarefas difíceis, pois não consigo sem a diarista, que também está isolada em sua casa.

– Não se preocupe, Lica. Estou me virando e até gostando dos pequenos afazeres domésticos. Isolada, mas não sozinha. Gosto muito da minha casa e tudo que construí aqui onde moro, com meu saudoso marido e meus cinco filhos. Foi também aqui que enfrentei os “turnos” da vida da mulher dentro e fora de casa. Quando o isolamento for menor, acho que vou me divertir com você, baldes, vassouras, panos e aspirador. Combinado?

– Ok, Vó. Mas não está aproveitando para ler, escrever, ver filmes, escutar música? Eu descobri que cozinhar é muito criativo e gostoso. Receitas novas, temperos diferentes, acertos e erros. Hoje fiz pão que não ficou macio, mas mexer na massa, vê-la crescer, assar, tudo é muito legal. Quando estudava na Austrália também cuidava da minha pequena casa, e agora com a família, cozinho mais. Como tenho deveres e trabalhos da faculdade, não tenho tido tempo para leituras e filmes. Vó, segredo: falo de 3 a 4 vezes por dia com o Pablo, pois sofro de saudades dele.

– Pois é, querida, eu tenho tido tempo e comecei a ler o Valter Hugo Mãe, que é um excelente escritor, mas deixei-o e mudei para uma narrativa fácil neste momento difícil. Estou lendo “Minha História” da Michelle Obama. Muito bom, cotidiano e esperançoso. Combina com tempos difíceis. Consegui rever dois filmes antigos…. “Tomates Verdes Fritos” e a “Casa dos Espíritos”. As sensações mudam da época em que foram vistos para hoje, mas gostei de vê-los e sentir as diferenças. Continuo vendo meus favoritos na TV, que são os documentários.

– E a limpeza da casa?

– Fica para depois, querida. Agora, sozinha comigo mesma, procuro entender o significado desse vírus no mundo. Compreender a luta dos cientistas à procura de medicamentos e vacinas, e dos médicos e hospitais, numa luta constante em prol da vida. Tudo é incerto. Amanhã eu poderei ser infectada, mas após aceitar o vírus e me tratar, quero estar viva. Me dói a alma a situação dos pobres e desamparados no mundo. Diante da pandemia, alguns governantes se mostram estadistas e outros, ignorantes e desumanos.

– Que mundo teremos quando este vírus passar, se é que vai passar? Estou lendo e vendo poucas notícias desses deserdados que você fala, pois me incomoda muito, tanto quanto sei que incomoda você, Vó querida.

– Por esse e outros motivos, a limpeza da casa fica para depois. No momento prescindo dela. Preciso romper paredes e procurar ver e entender o que acontece lá fora. Só depois estarei pronta para limpar minha casa. Vamos nos falando. Tchau! Beijo.

– Não se esqueça, Vó. Conta comigo. Beijo.

(*) Celia Morato Gagliardi – Professora de História, aposentada, que adora ser eterna aprendiz. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: c[email protected]

Foto destaque: Andrea Piacquadio/Pexels


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