Velhice – uma doença incurável (?)

Velhice – uma doença incurável (?)

Afirmar que a velhice, em pleno século XXI, é uma doença incurável, é superficial e descabido. Ninguém tem certeza alguma sobre o próprio fim, apenas que ele é certo.


Li há alguns dias, um texto que se iniciava com uma frase que ficou (e ainda fica) martelando na minha cabeça: “a velhice é uma doença incurável”.

Sem adentrar ao mérito do texto e olhando para a frase em si, fico pensando em quantas pessoas têm este mesmo pensamento e porque, mundo afora, muito baseada nos comentários que se seguiam ao texto que se iniciava com esta frase à qual me refiro, esta ainda é uma máxima incontestável para muitos.

Afirmar que a velhice, em pleno século XXI, é uma doença incurável, é superficial e descabido. Reconhecer a finitude como certeza a todo e qualquer ser vivo, é atemporal, independentemente da idade que se tenha e de ser este ser vivo portador ou não de qualquer doença, incurável ou não. Ninguém tem certeza alguma sobre o próprio fim, apenas que ele é certo.

O conceito de saúde/doença não pode ser categoricamente ou superficialmente definido. Estas questões são inegavelmente de uma subjetividade ímpar, difundidas e discutidas por muitos pensadores e pesquisadores de inúmeras áreas.

De maneira simplista, lembremo-nos de casos de pessoas que fazem uso diário de medicações pesadas para câncer e que afirmam sentirem-se absolutamente saudáveis quando questionadas sobre como estão, fazendo planos para os anos seguintes, e de outras tantas que enfrentando crises de rinites em temperaturas mais amenas e fazendo uso de descongestionantes nasais, dizem estar péssimas e sentindo que a morte está mais próxima a cada dia.

Ao ler frases como “a velhice é uma doença incurável”, penso que ainda vivemos conduzidos por um discurso biológico impositivo, com total ausência de conhecimento e de discussão sobre quem está por debaixo daquele corpo que traz consigo rugas, cabelos brancos, movimentos contidos, usos de andador, de bengala e de tantas outras coisas comuns na medida em que os anos passam, mas que nunca deixa de ser quem é e que está longe de ser portador de qualquer doença incurável.

Por muitos e muitos anos, pensamentos superficiais como este trouxeram consigo o reflexo de uma total ausência de autonomia para cada uma das pessoas que apresentavam características físicas comuns a todo aquele que passa pela senescência, ou, em um português mais simplificado, para todo aquele que envelhece na medida em que os anos passam.

A ausência desta autonomia acabava por impactar em descartes de pessoas que por serem consideradas vividas demais para escolher e decidir eram colocadas em verdadeiros depósitos humanos, longe de convívios sociais ou familiares, ou ainda em centros de reabilitação sem doença alguma.

Mas, diante de frases como esta, eu fico me perguntando se esta realidade e desta restrição incontestável de autonomia, faz mesmo parte do passado.

Este tipo de pensamento faz pensar sobre ser realmente o discurso biológico apenas um dos fatores do envelhecimento, já que aquele que afirma coisas desse tipo se esquece de ponderar os demais aspectos do envelhecimento, quais sejam os aspectos sociais e psicológicos daquele que vive o passar dos anos sem jamais deixar de ser quem é: um ser único e individual exatamente pela somatória destas três premissas.

A ausência de reflexões sobre este tipo de afirmativa e a indiferença de tantas pessoas que caminham para o mesmo processo de envelhecimento gera, em contrapartida, uma realidade que quando se torna próxima, desperta uma necessidade iminente de mudança.

Até o momento em que o velho era o outro, tudo era mais simples, afinal era ele o portador de uma doença incurável.

Mas, e quando este outro passa a ser eu?

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Não refletir sobre questões como esta quando o outro passa a ser eu, leva, muitas das vezes, a pessoas que quando buscam fazer valer as próprias vontades para comprar, vender, doar bens, casar, firmar uma união estável etc., tornam-se seres absolutamente frustrados ao se confrontarem com regras impostas pela legislação que consideram exatamente o discurso biológico. Passam a serem consideradas pessoas velhas demais para poderem decidir por si, e são vetadas de fazer o que desejam a seu bel prazer.

E então, estas mesmas pessoas, que até então consideravam o outro como velho, passam, automaticamente, a serem consideradas como incapazes de fazer valer as próprias vontades.

Surge uma realidade comum a todos (o velho que era o outro agora sou eu): o tempo cronológico tem um peso suficiente para afirmar que o discurso biológico não é coisa do passado. Em muitas situações, um corpo velho é considerado velho para poder decidir, já que é um corpo velho é um corpo doente e esta doença, por sua vez, é irreversível aos olhos de quem assim o vê.

Há muitas chancelas que acabam por ratificar este tipo de pensamento, já que a legislação estabelece, por exemplo, em anos cronológicos, a impossibilidade de poder se escolher o regime de casamento daquele que quer casar ou manter uma união estável.

E então uma iminente necessidade de mudança surge: passamos da hora cronológica de rever todos os vetos que nos são impostos em decorrência de nossas idades. O discurso biológico no século XXI tem seu peso, mas está longe de poder ser o único a conceituar quem é o velho, o que ele quer e o que ele precisa decidir.

Na medida em que os anos passam não deixamos de ser quem somos, e exercer nossos atos, efetivando nossas mais íntimas convicções, é apenas e tão somente o reflexo direto disso, ainda que muito nos seja vetado a este respeito apenas porque biologicamente estamos velhos demais para isso.

Respeitar em condições de igualdade os aspectos sociais e psicológicos do envelhecimento é garantir uma autonomia sempre o mais abrangente possível para todo aquele que envelhece, também de maneira biológica.

Ver a velhice como doença incurável ainda é o pensamento de muitos e há muitas razões concretas para isso.

Por isso, antes que o velho seja você, se me permite um conselho, reflita sobre a dimensão de sua autonomia que você deseja ter respeitada.

Se no final das contas o reflexo de sua autonomia for a sua concordância sobre a velhice ser realmente uma doença incurável, você precisa estar esclarecido sobre os três elementos da frase: velhice, doença e incurável. Sobre cada um deles, há igualmente os mesmos três aspectos a serem considerados. Velhice, doença e incurável precisam ser pensados à ótica biológica, social e psicológica.

Caso não faça isso, já há aí uma violação de sua autonomia. Um discurso impositivo e uma ideia “comprada” estão lhe tolhendo de cara a possibilidade de decidir por si o que melhor lhe parecer ao longo tempo cronológico que você irá viver, e isso só irá agravar ainda mais a velhice que você encontrará pelo caminho, já que de maneira autônoma só lhe restará acatar o que lhe é imposto.

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Natalia Carolina Verdi

Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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