A velhice e a arte bizantina

A velhice e a arte bizantina

Penso na velhice do meu pai, na velhice que terei e nos tantos velhos ao meu redor. Penso no tempo que envelhece corpos. Questiono se os afetos serão suficientes para pavimentar nosso caminhar e se estaremos cercados de cuidado e carinho no momento da fragilidade. Afinal, as dificuldades do envelhecer um dia virão, sabemos. Cabe a nós investir em relações.

 

O interfone toca e o porteiro avisa que um pacote havia chegado.

Com a caixa em suas mãos e com todos à sua volta, esperávamos pelo momento da revelação. O que será?

Em meio a jornal e plástico bolha uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Deus ia aparecendo com uma beleza digna de emocionar. Os olhos da imagem pareciam querer me assegurar que a harmonia, em breve, voltará a reinar.

Meu pai, finalmente, tira o Ícone dos embrulhos e diz olhando para mim: Chegou o seu presente!

Difícil conter a emoção após esses dias conturbados onde, de uma hora para outra a vida mostrou nossa insignificância colocando a vida de meu pai em xeque. A ameaça de perdê-lo fisicamente foi assustadora.

De repente vi meu pai, de 80 anos, ter sua vitalidade bruscamente interrompida por uma cirurgia bastante complexa.

A angústia de vê-lo tão fragilizado me fez perceber o quanto estou despreparada emocionalmente para viver, na prática, o que meus livros de velhice tentam me ensinar. A velhice ativa é potente e nos mostra uma sabedoria invejável. Na prática, percebo que a velhice é ativa até a página 2, já que de uma hora para outra, novos rumos são impostos e o tempo parece precisar mostrar sua força e soberania nos corpos velhos. O olhar que teremos para os acontecimentos é que fará a diferença nas velhices e meu pai comprova essa teoria.

Com os passos ainda lenificados devido a um pós-operatório cardíaco, consigo perceber determinação nas escolhas de seu caminho. Viver, para meu pai, sempre foi algo grande, mas nestes últimos dias é nítido o fato da própria vida ter se tornado o rumo. Um amigo, muito querido, em conversa, me disse que não escolhemos as coisas que iremos viver, mas podemos sim escolher como iremos vivê-las e meu pai tem escolhido a vida acima de qualquer coisa. Não tem sido fácil, pois ultimamente ela tem se mostrado dura e implacável e, eu, com a intensidade das emoções descontroladas, tento aprender as lições deste viver, e as lições que meu pai, parece querer me ensinar.

A cirurgia correu bem e ele, de peito aberto, entregou seu coração para outros cuidarem. E há quem pense que somos suficientes em nosso egocentrismo. Até quando?

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Não foi uma experiência fácil estar em uma UTI por quatro longos dias, pois ainda existem falhas nesta medicina, tecnicamente, tão evoluída. Os pacientes “enjaulados” em seus boxes tornam-se iguais em sua fragilidade. O senhor da cama ao lado não tinha a mesma história do meu pai e o da cama a frente parecia estar em outro estado de consciência. Numa UTI todos se tornam os mesmos e é com um cuidado padronizado que os dias vão se arrastando.

Hoje, após a alta, os danos daquela atenção altamente vigiada parecem estar marcados em meu pai que ainda carrega aquele sentimento causado pelo roubo de seus desejos e vontades. Questiono tudo isso, ao mesmo tempo em que agradeço a atenção para sua recuperação. Devagar a vida parece querer voltar a se ajustar e eu prossigo carregando meu imenso amor por ele e por tudo o que ele representa em minha vida.

Olho para o Ícone que acabo de ganhar de presente das mãos de quem, antes mesmo de abrir o peito, pensou em me presentear com um tipo de Arte que carrega simbologias que enaltecem o divino enquanto glorificam a vida. Os Ícones são imagens religiosas pintadas em madeira ou metal. Ganharam fama por sua beleza e representação dada pela Igreja ortodoxa Russa que enaltece a glorificação da vida de Cristo deixando a tristeza e o sofrimento de lado, afinal se o céu é o divino, o Cristo sofredor crucificado deve, nesta igreja, dar lugar ao Cristo que abençoa e ensina. Percebo, então, que a angústia vivida nestes dias deve dar espaço para um olhar mais esperançoso e doce para os novos tempos.

Ao observar a imagem me rendo à verticalidade representada para garantir a ascensão aos céus. Respiro fundo, a vida deve seguir seu rumo.

O século VI foi o apogeu da Arte Bizantina que surge como expressão artística religiosa, mas foi no século IV que o Imperador Constantino reconheceu o culto livre a todos os cristão do Império Romano e com isso passa a ser preciso contar, em imagens, as histórias da bíblia para os povos bárbaros que não possuíam a escrita e que haviam conquistado o Império. Foi desta maneira que a Arte Bizantina surge com seus mosaicos dourados e ícones talentosamente pintados. Os artistas realizadores desta arte eram apenas instrumentos do divino e, portanto, não lhes era permitido assinar seus trabalhos. A fé precisava ser propagada assim como a grandeza do imperador que governava em nome de Deus, precisava ser enaltecida. A Arte Bizantina é rica e repleta de simbologia. As figuras são estáticas para que não haja a expressão do tempo. Uma vida atemporal é ali representada na sua bi dimensionalidade das figuras imóveis. A riqueza do mundo material, com suas pedras preciosas e folhas de ouro, conversam com o mundo celestial e nos dizem que a maior riqueza é alcançar a salvação. E nós precisamos nos salvar, com urgência.

A Arte Bizantina está vinculada ao império e a frontalidade de suas representações impõe solenidade para a apreciação da obra, onde o expectador tem que se comportar como se estivesse em frente ao imperador. A fé se manifesta na intensificação do olhar. Seguro o presente e entendo a vida em minhas mãos. Penso na velhice do meu pai, na velhice que terei e nos tantos velhos ao meu redor. Penso no tempo, senhor todo poderoso que envelhece corpos e calcifica as válvulas cardíacas. Questiono se os afetos cultivados serão suficientes para pavimentar nosso caminhar pela velhice e se estaremos cercados de cuidado e carinho no momento da fragilidade. Afinal, as dificuldades do envelhecer um dia virão, sabemos. Cabe a nós investir em relações, que nos ajudarão a enfrentar as desavenças. Meu pai esteve cercado de amor, amizade e manifestações afetuosas que foram fundamentais na sua recuperação.

Com um carinho imenso, guardo meu presente e juntos, saímos para passear, afinal é preciso andar, é preciso viver!

Velhice ativa, velhice frágil, seja qual velhice for. A maneira que a enalteceremos será de nossa escolha. Curiosamente a igreja teve sua narrativa vinculada ao sofrimento superiormente alastrada à narrativa acoplada a glorificação. Faremos o mesmo com a velhice? Escolhemos enaltecer a dor crucificando nosso tempo presente ou glorificaremos o envelhecer e seguimos em frente na busca do tempo futuro.

Por hora, sigo semeando afetos ao longo do percurso. Do chão arado e semeado que a velhice possa ser a glória da própria vida.

Para saber mais 

As pessoas interessadas em saber mais sobre Arte Bizantina, podem acessar os cursos da UNESP, entre eles “Espiritualidade e Esplendor Celestial“.

Agradecimentos profundos ao meu pai, Ibsen Tenani, que ao escolher envolver-se com a Arte como forma de estar ainda mais próximo a mim, tornou-se um excelente consultor para os textos que aqui escrevo.

Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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