Universidades e envelhecimento populacional

Universidades e envelhecimento populacional

O envelhecimento das populações dos países latino-americanos e o avanço tecnológico formam uma conjunção sem precedentes. As universidades, a pesquisa e a ciência serão os definidores de nossas chances futuras de desenvolvimento econômico, isto é, do bem-estar na velhice e do legado para as próximas gerações.(*)

 

As universidades e a ciência brasileiras estão sob ataque de uma visão fiscalista do Estado. São nebulosas suas perspectivas a curto e longo prazo.  Qual é esse futuro? Uma sociedade envelhecida. Apenas a dinâmica demográfica já seria suficiente para constituir-se em um enigma. Pela primeira vez, a economia capitalista está diante de um hiperenvelhecimento. Não só. A economia imaterial, informacional, a inteligência artificial, a biogenética, a nanotecnologia emprestam complexidade inédita à conformação social com mais idosos e menos crianças. A compreensão dessa sociedade amplia a concorrência internacional no campo da pesquisa e desenvolvimento.

A concorrência global neste século se dá, principalmente, entre as universidades. A produção de conhecimento, como se sabe, antecipa-se mesmo a de produtos e serviços. Aqueles que compreenderem melhor essa metamorfose vão gerar mais riqueza. Os desafios econômicos suscitados pelo envelhecimento populacional, sobretudo na questão dos cuidados de longa duração, demandam dos países do hemisfério norte um investimento cada vez maior em pesquisa. Apenas para citar poucos exemplos, o Canadá constituiu uma agência de fomento, a Agewell, somente para financiar pesquisas sobre envelhecimento. No âmbito da União Europeia, um dos principais focos do projeto Horizon 2020, com investimentos de 80 bilhões de euros (de 2014 a 2020), é a inovação em produtos e serviços para o envelhecimento.

Em congressos internacionais, é fácil perceber os resultados dessa estratégia envolvendo universidades e governos. É comum um doutorando apresentar pesquisas etnográficas de um ano. Ou seja, durante um ano, o aluno acompanha todos os dias, por exemplo, o uso de um equipamento tecnológico por um idoso na residência deste. Algo impensável para um pesquisador brasileiro. A maturidade desta pesquisa, evidentemente, a habilita a sair da universidade diretamente para a indústria. A corrida para a invenção do robô companheiro, aquele que auxiliará nos cuidados de idosos, é outro ponto a acirrar a concorrência internacional na área que se denomina economia da longevidade.

Em meio à concorrência global entre as universidades, portanto, é preciso ter em vista que para o hemisfério norte é fundamental desmoralizar as universidades do hemisfério sul e articular meios de frear o avanço da pesquisa nos países pobres. Assim como é considerado ousadia reivindicar um assento no conselho de segurança da ONU, é igual acreditar que um pesquisador latino-americano será referência na biogenética. Os pesquisadores brasileiros tornam-se, assim, uma espécie de Gurgel na década de 1980 – o sonho do carro brasileiro. O projeto de um robô companheiro nacional é asfixiado pela ausência de recursos para a pesquisa em meio à concorrência global da educação.

A engrenagem de desmoralização das universidades do hemisfério sul é construída ainda com os sistemas de avaliação e os rankings periodicamente divulgados, com critérios unilaterais dos avaliadores. É preciso mostrar ao mundo onde estão as melhores universidades, desvalorizar o diploma de instituições latino-americanas  consideradas de baixa qualidade e, desta maneira, induzir o mercado de trabalho (principalmente as grandes corporações) a contratar egressos das universidades dos países ricos. Um MBA de um ano em uma universidade no topo do ranking passa a valer mais do que um doutorado em uma universidade latino-americana. Essa é a meta dos sistemas de avaliação global.

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É preciso ter em perspectiva a dívida de 1 trilhão de dólares das famílias norte-americanas com as universidades dos Estados Unidos. É legítimo supor que o objetivo neste mercado educacional mundializado é obter outro trilhão das famílias de classe média dos países latino-americanos que irão enviar seus filhos para estudar nas “universidades boas” com a esperança de “permanecerem por lá” ou voltarem com “emprego garantido em uma grande empresa”. Esta lógica completa-se também com a desvalorização dos professores locais e, obviamente, com um sentimento antintelectual tupiniquim. Nossos intelectuais precisam parecer piores, desatualizados, anacrônicos diante de premiados com um Nobel, que nunca chegará por aqui nesse processo que se retroalimenta.

Talvez ainda mais vulnerável do que as chamadas ciências duras estejam as Ciências Sociais (e a Filosofia). A visão economicista fiscalista enxerga as Ciências Sociais como improdutivas, isto é, sem capacidade de gerar valor na sociedade capitalista. A própria Economia tratou de se descolar das Ciências Sociais. Essa miopia é alimentada pela ignorância sobre a economia do século XXI, na qual um país como os Estados Unidos produz tudo o que consome utilizando apenas 30% da força de trabalho, enquanto os outros 70% apenas pensam, elaboram, planejam, explicam, interpretam a partir de compreensões do funcionamento da economia imaterial e do comportamento humano dentro desta nova ordem.

A ideia de que as Ciências Sociais são improdutivas e seus estudantes irão viver de vender pulseiras de miçangas é desmentida pela própria demanda das grandes corporações por explicações sociológicas. No entanto, mais uma vez, emerge a hegemonia das universidades do hemisfério norte. Os grandes eventos no Brasil são estrelados por professores estrangeiros. Eles vêm aqui vender suas mercadorias. Quais mercadorias? Suas categorias explicativas.

Pela profundidade de suas pesquisas, subsidiadas por seus governos, essas mercadorias sempre são preponderantes na literatura. Esses professores são bem-vindos, mas estão aqui também para divulgar suas universidades, recebem cachês altos – jamais pagos a professores palestrantes brasileiros -, movimentam um staff imenso nesses eventos, sem calcular todo o aparato do turismo acadêmico. Em outras palavras, transformam suas categorias explicativas em produtos tradables, de exportação. Tudo o que aferem com suas categorias explicativas, direitos autorais, consultorias, palestras etc é remetido a seus países. Não é uma economia desprezível para os países ricos.

Diante do exposto, é lícito supor que nesta concorrência internacional também na área das Ciências Sociais seja necessário impedir a produção de categorias explicativas nacionais. Nossas únicas mercadorias desse tipo exportadas até hoje são “o homem cordial” e a “teoria da dependência”, isto é, categorias aceitas lá fora por nos colocar no nosso devido lugar. São categorias também que não culpabilizam o colonizador por nossas desgraças positivadas. Nem o colonizador de ontem, nem o de hoje. Quanto mais a indústria de eventos ganha protagonismo numa economia dependente da circulação rápida do capital, mais as categorias explicativas das Ciências Sociais ganham valor e mais os nomes internacionais da academia aferem riqueza para seus países.

A estratégia é nos manter como importadores de categorias explicativas que expliquem nossa própria miséria. Mercadorias estas que nossas universidades, como estão mal colocadas nos rankings, são incapazes de produzir. Essa lógica faz cativas nossas mentes ou perpetua nossa servidão voluntária. Nesse ponto, corroboram os sistemas de avaliação das universidades e cursos de pós-graduação nacionais. Além da desvalorização da ciência, da pesquisa, dos professores, das universidades públicas apontadas como focos de corrupção, laboratório ideológico entre outros pejorativos, as instituições avaliadoras alimentam a desmoralização da educação superior brasileira ao renderem-se a critérios internacionais moldados para beneficiar as universidades dos países ricos.

Os critérios de avaliação dos cursos de pós-graduação no Brasil são programados para desqualificar o que as universidades e programas têm de melhor e valorizar suas deficiências na concorrência global. Todo o trabalho abstrato é ignorado. Um professor titular numa universidade do Canadá tem sua casa subsidiada, uma sala com staff, sofisticação, conforto, até luxo, pode-se dizer, e, sobretudo, financiamento para suas pesquisas. Logo sua capacidade de produção é infinitamente maior do que qualquer professor brasileiro de qualquer universidade pública ou privada. Nos critérios de avaliação, é igualado a um professor emérito da nossa melhor universidade que trabalha num cubículo que chama de sala, com mais poeira do que ar.

O curioso é que esses mesmos professores são, muitas vezes, avaliadores dos cursos de pós-graduação e se limitam em levar em conta apenas uma planilha com o número de publicações acadêmicas de seus pares. Há duas consequências nesse sistema perverso. Um é, surpreendentemente até hoje, imperceptível para os avaliadores, qual seja, o caráter antropofágico do próprio sistema para eles mesmos, individualmente, e para toda a educação superior brasileira. O outro é a imposição de concorrência onde deveria haver mais cooperação, ou seja, a disputa que se instaura entre as próprias universidades públicas.

Muito do que foi dito acima está longe de ser novidade no funcionamento do sistema educacional mercantilizado e global. No entanto, se este sempre foi perverso para os países pobres, nos próximos anos será o definidor das possibilidades ou mazelas da sociedade envelhecida. O envelhecimento das populações dos países latino-americanos e o avanço tecnológico formam uma conjunção sem precedentes. As universidades, a pesquisa e a ciência serão os definidores de nossas chances futuras de desenvolvimento econômico, isto é, do bem-estar na velhice e do legado para as próximas gerações.

(*)Texto reproduzido na íntegra do blog Economia da Longevidade.

Jorge Félix

Jornalista especializado em envelhecimento populacional, pesquisador (CNPq), mestre em Economia e doutor em Ciências Sociais (PUC-SP). Autor do livro "Viver Muito". É Professor de Epidemiologia do Envelhecimento no curso de Gerontologia da USP/Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Escreve sobre Economia da Longevidade. Email: [email protected] Twitter/@jorgemarfelix - www.economiadalongevidade.com.br. Facebook Viver Muito

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Jornalista especializado em envelhecimento populacional, pesquisador (CNPq), mestre em Economia e doutor em Ciências Sociais (PUC-SP). Autor do livro "Viver Muito". É Professor de Epidemiologia do Envelhecimento no curso de Gerontologia da USP/Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Escreve sobre Economia da Longevidade. Email: [email protected] Twitter/@jorgemarfelix - www.economiadalongevidade.com.br. Facebook Viver Muito

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