Uma feira bem livre

O caldo escuro do cozimento das carnes, cabeça de bode partida, coração, língua e fígado misturados ao sangue é jogado sobre o cuscuz no prato. Talvez uma quase bacia de alumínio. Polido e ariado, ao ponto de “virar” um sol com as múltiplas claraboias que jogavam luz para todos os lados. Um copo, “na risca” (marca superior dos copos americanos), de cachaça “Verdinha”, saída dos alambiques do Seu Arthur.

Alcides Freire Melo. Texto e Fotos *

 

uma-feira-bem-livreSão cinco horas da manhã. Uma forte martelada no trilho, pendurado ao lado da porta do Barracão da Feira, “ordenava” outra vez a Pedro Ferreiro, guardião do pesado portão de madeira, a abri-lo para entrar mais vendedores. Os de carnes, desta vez. Por uma fresta da porta, montada no vento, escapa e ganha espaço um cheiro forte de sangue e carne do dia anterior. As moscas varejeiras “festejavam” a chegada de novas carnes. Seguidos por um cortejo canino, cinco vira-latas aproximadamente, tangidos pelos magarefes, que entram com o peso das carnes sobre as costas. Roupas, corpos e facas vermelhos remetem a uma batalha medieval.

uma-feira-bem-livreEm ganchos de ferro de pontas afiadas, os bois, cortados ao meio, são fixados. Porco, bode e carneiro, de menor peso, em cordas. São cordas pretas, ensebadas, cobertas de moscas azuis. Bem próximas ao piso, as cabeças dos bichos balançam, sem couro, com olhos de espanto por vir à morte contar-lhes a vida há poucas horas. Vísceras, rins, coração e fígado são transportados dentro de surrões de palha. Arrastados, deixam um rastro vermelho, pegajoso. O cheiro excita os cachorros que lambem eufóricos o piso de cimento queimado.

O sangue grosso, morto, escorre com dificuldades por entre os dentes, bocas e narinas dos animais recém-abatidos a facas e machados. Formam compridos filetes, tocam o chão. Os cães chegam rápidos. Outra briga. Agora, disputam estas gotas de sangue já escuras, que brilham formando pequenas poças. Ferozes, magrelos, os cães fincavam os dentes, estraçalhavam as orelhas uns dos outros. Aos pontapés, os vendedores apartam mais uma briga. Aos ganidos, os cães recuam e se contorcem.

Retornam silenciosos, línguas pendentes. Selvagens e cautelosos, os machos “dispensam” o cio da cadela que entra também na igual disputa por ossos, peles e gorduras. Com a lembrança de fortes chicotadas de relho cru, guardadas em cicatrizes nos lombos pelados dos cães, nenhuma carne era abocanhada, roubada. Sequer cheirada. O entrelaçado de pés e pernas, do vai e vem dos feirantes e compradores afasta a cachorrada. De longe, aguardam o arremesso das sobras dos cortes das carnes. Troca de olhares rosnados e mostra de afiados caninos, prologavam o intervalo de paz nesta matilha.

uma-feira-bem-livrePequenos fogões de barro, a lenha, enfumaçavam e aromatizavam toda a feira. São cozinheiras durante o preparo do cuscuz de milho maduro, fissura de bode e buchadas de carneiros “capados”. Tudo temperados com coentro e cheiro-verde. O buquê desta cozinha, com sentimentos árabes, é jogado no ar denso da serração e, por entre as colunas de aroeira que faziam a sustentação da coberta, rodava provocando os diversos paladares. E provocava, mais ainda, a fome de quem começou o dia às três horas da manhã.

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O caldo escuro do cozimento das carnes, cabeça de bode partida, coração, língua e fígado misturados ao sangue é jogado sobre o cuscuz no prato. Talvez uma quase bacia de alumínio. Polido e ariado, ao ponto de “virar” um sol com as múltiplas claraboias que jogavam luz para todos os lados. Um copo, “na risca” (marca superior dos copos americanos), de cachaça “Verdinha”, saída dos alambiques do Seu Arthur. “Única do mundo com a cor verde”, aguardava para encorajar os bebedores matinais. “Para abrir o apetite”, bendiziam.

A feira corria de um lado ao outro em grande velocidade. Jumento com os caçuás carregados de frutas chegavam com as narinas dilatadas. É o peso que sobra e a subida que maltrata. Carriolas de madeira carregadas de mangas-rosa marcavam as mãos dos vendedores e amoleciam as pernas. Banquinhas vendiam pé-de-moleque, bolo de araruta, beijus, canjicas, pamonhas e cafés, complementavam as principais guloseimas do cardápio da feira. Frutas ficavam espalhadas pelo chão acolchoado por esteiras de carnaúbas.

De longe, perto dos cantadores e poetas, Abelardo esperava todos os sábados a chegada da Maria só para vê-la comprar pé-de-moleque, broa e tapioca. Eram as pernas que mais provocavam; morenas pernas. Também as curvas sinuosas, que marcavam todo o vestido deixando voltas e pontos arredondados. Por desejar, parecia ser um vestido curto, leve e colorido. Nem era; infelizmente. As pequenas margaridas soltas para estamparem o tecido, invadiam os sonhos, criavam cenários que começavam a despertar e crescerem na adolescência ainda de poucos sabores provados.

Tudo permanecia em silêncio e em segredo até mesmo ao confessionário da igreja. Os desejos que vagavam de todas as formas e maneiras por todo o corpo, incomodavam em noites também adolescentes, que teimavam em ficar adultas para se libertarem desta solidão. Piorava ainda mais quando, à noite, dançavam os dois, colados, bem colados. Sempre em silêncio, trocando suor dos rostos, no apertado salão quando dançavam na tertúlia de radiola. Maria falava com o corpo, somente com ele que acendia por ser adolescente também. Sentimentos nunca compartilhados entre eles.

uma-feira-bem-livreNa feira, personagens tomavam as cores e as formas das roupas vendidas. Próximo ao meio dia discutia-se por preços baixos, raros produtos resistiam. Vendedores de peixes frescos, por exemplo, vendiam às pressas. Escaladas, secas ao sol, as curimatãs, (bacalhau nordestino), seriam armazenadas para consumo durante a semana ou até a próxima feira. Rapaduras, batidas de coco são doces para uma vida simples de fé, por vezes rala. Goma, feijão e farinha expostos nas sacarias de bocas enroladas, medidos em cuia, a quantidade exata que o dinheiro podia comprar no final da feira.

À tardinha, restava pouco mais que o vazio. O vento sacudia o que sobrara e ainda embalava os bêbados que rodopiavam sobre os pés, até lugar algum. Calavam-se o triângulo e a zabumba dos cantadores. Jumentos em disparada disputavam com força e coices uma posição para preservar a espécie. Os bares impregnados de álcool e fumaça de cigarro baixavam às portas às 17h30min, antecipando a ordem do sino da igreja que tocava às dezoito horas e, desde as dezessete, já ensaiava o cantochão.

Os comerciantes de bijuterias, perfumes e colônias já haviam perfumado todas as idades com diferentes fragrâncias. Fortes, estes aromas demoravam a sair do ar, principalmente quando encontravam com outros diferentes, iguais. Trocavam de corpos. As brilhantinas fixavam os cabelos masculinos, desafiando os mais fortes dos ventos. Deste modo, tão simples, mudavam-se os sentimentos das pessoas que procuravam a última missa do domingo ou somente uma cadeira nas calçadas para conversas informais. E debitar a vida por mais um dia.

* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected].

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