Um grito através da arte

Um grito através da arte

Quando dizemos que arte é atemporal e possui a sutil possibilidade de quebrar barreiras e favorecer novas experiências, estamos aceitando olhar para novos horizontes e experimentar novas possibilidades de comunicação. No caso das canções, o jogo de palavras e intonação colocada na voz ao se cantar pode ser muito interessante. 

Rafael Ludovico Moreira(*)

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Compra-se seres humanos                                         Compra-se seres humanos
Calados, Domesticados                                                Que sejam modernizados
Que não pensem nem opinem                                   Que andem sempre na moda
Ao serem questionados                                               Felizes, Etiquetados
Que não pensem, nem escutem                                Que propaguem e que convençam
Nem sintam-se incomodados.                                    Até os conscientizados.
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Compra-se seres humanos                                        Compra-se seres humanos
Totalmente desligados                                                Famintos, desempregados
Que não gostem de política                                        Indecisos, inseguros
E estejam sempre ocupados                                      Descalços, descamisados
Que não sejam de esquerda                                      Menores, analfabetos
E nem sindicalizados.                                                  E até informatizados

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Compra-se seres humanos
Idosos, aposentados
Jovens e adolescentes
De preferência os drogados
Que sumam-se, consumindo
Em tempos globalizados

Compra-se – Professor Zé Maria
Eldorado dos Carajás – PA – por carta

 

Estamos vivendo momentos difíceis, a partir do texto acima podemos observar que alguns dos valores construídos pouco a pouco em castelos de areia, mas que de certa forma ainda conseguiam se manter ruíram. Penso que algumas das dificuldades que estamos passando são reflexo de momentos vividos anteriormente. Mas como escrever a dor de um tempo que não vivi? Como significar momentos a partir de sons que não ouvi?

Durante a graduação, tive algumas experiências relevantes que contribuíram para minha formação pessoal e profissional. Uma vez, um senhor que fez parte da guerra do Japão, me relatou em atendimento que não gostava de aviões, segundo ele “os aviões soam a morte”. Quando o questionei sobre a afirmação, ele me relatou que quando jovem, durante a guerra, ele estava sendo treinado para ser Kamikaze, e nos treinamentos eles só deveriam aprender a subir com o avião, pois uma vez em cima, não haveria volta. “Todos diziam ser uma grande honra morrer pelo Japão, mas eu sempre gostei muito de viver. Minha sorte foi a guerra ter terminado uma semana antes de eu precisar decolar”. Essas palavras ditas até hoje me causam pesar.

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Jung (1980) diz que “ a psique do indivíduo está longe de ser seguramente unificada. Ao contrário, ameaça fragmentar-se muito facilmente sob o assalto de emoções incontidas.” ele também fala em seu trabalho sobre possuirmos um inconsciente coletivo, que segundo ele é uma herança psicológica que se soma a biológica e que ajudam a definir nossa personalidade.

Me sinto agradecido por não ter vivido e nem experienciado tempos de guerra, mas consigo sentir dor e pesar ao ouvir a melodia que John Williams compôs para o filme a Lista de Schindler. Nesse caso a arte me possibilitou captar um pouco do pesar que o compositor tentou (ao meu ver com muito sucesso) expressar e, um pouco do pesar que a humanidade vivenciou.

Quando dizemos que arte é atemporal e possui a sutil possibilidade de quebrar barreiras e favorecer novas experiências, estamos aceitando olhar para novos horizontes e experimentar novas possibilidades de comunicação.

No caso das canções, o jogo de palavras e intonação colocada na voz ao se cantar pode ser muito interessante. Por exemplo ao falarmos sobre canções de protesto podemos encontrar algumas canções como:

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão
(Pra não dizer que não falei das flores – G. Vandrè – 1968)
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
(Deus lhe pague – Chico Buarque – 1971)
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
(Cálice – Chico Buarque – 1973)

A partir das letras, nesse caso é fácil identificar o “tom” (por assim dizer) de revolta que as elas possuem, no entanto os acordes dissonantes de Chico Buarque e a calma melodia de Vandrè se encarregam de expressar o que resta.

Podemos observar que o planeta possui uma paisagem sonora, um composto de sons e ruídos que caracterizam e demarcam os espaços. Esses sons, conforme a passagem dos anos se altera, muda, se mescla e novos sons surgem. Possibilitando novas configurações sonoras. Apesar dessas novas configurações, os sons antigos, os mais primitivos continuam marcados em nosso inconsciente e podem ser acessados a qualquer momento. Murray Schafer (1992) aborda paisagem sonora:

E aqui, no centro de tudo, como uma viola no final de um allegro para trompete e tambor, estão os sons de nossas próprias vozes. Não faz muito tempo, cantávamos nas ruas da cidade, mesmo fala é frequentemente um esforço violento. O que deveria ser o mais vital som da existência humana está pouco a pouco sendo pulverizado sob sons que podemos chamar, muito acuradamente, de “não humanos”. Partes da sinfonia mundial que já foram tocadas e não serão repetidas: a máquina a vapor, a carruagem puxadas por cavalos, o barulho do açoite (que Schopenhauer achava tão agoniante), A lâmpada de óleo de carvão. Sim, como soava a lâmpada de óleo de carvão? Você pensará em outros sons. […] Haverá ainda movimentos em pianíssimo? Haverá logo uma sessão em adágio

Por mais que a sociedade busque calar a humanidade em atos covardes e desumanos, sempre possuiremos maneiras de gritar. A arte, presente desde os primórdios de nossa espécie possibilita diversas maneiras de expressão e por conseguinte, de protesto.

Referências

JUNG C. G. Psicologia do Inconsciente, Rio de Janeiro, Ed Vozes. 1980

SCHAFER, M. O Ouvido Pensante, São Paulo, Ed. Unesp. 1991

(*) Rafael Ludovico Moreira é Musicoterapeuta, mestrando em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e colaborador do Portal do Envelhecimento. Texto publicado originalmente no Blog do Centro-dia Angels4u  

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