“Trabalhar com a morte deve ser muito pesado, como você consegue?”

“Trabalhar com a morte deve ser muito pesado, como você consegue?”

Quando falo que sou uma psicóloga especialista em luto, que trabalho com pessoas enlutadas e/ou em final de vida e, para completar, digo que ajudo emocionalmente as pessoas em finitude a se despedirem da vida com dignidade, percebo um certo estranhamento.

Nazaré Jacobucci (*)


Entre todas as percepções, a percepção da impermanência é a suprema” (Buda)

Como faço todos os anos na primeira semana do novo ano, eu tiro algumas horas para refletir sobre o que aprendi com as experiências vivenciadas no ano que se findou. Revisito as alegrias, as tristezas, as decepções, as frustrações, as perdas, mas também os sonhos, as vitórias e as conquistas. Também reflito sobre alguns questionamentos que familiares, amigos, alunos, pacientes e leitores me fizeram ao longo do ano. Uns são tão interessantes que anoto no meu caderno de “coisas interessantes para pensar”. Sim! Eu tenho um caderno de capa vermelha para tais anotações. Enfim, é um momento de introspecção.

Dentre os questionamentos, um que mais se repete é sobre o meu trabalho. Quando falo que sou uma psicóloga especialista em luto, que trabalho com pessoas enlutadas e/ou em final de vida e, para completar, digo que ajudo emocionalmente as pessoas em finitude a se despedirem da vida com dignidade, percebo um certo estranhamento. Muitos dizem: “Nossa! Nunca imaginei que tivesse essa especialidade! Que interessante!”. E nesse contexto, a pergunta seguinte é praticamente inevitável e foi esta que permeou minha reflexão desse ano – “Por que você escolheu trabalhar com isso? Trabalhar com a morte deve ser muito pesado, como você consegue?”

Bom, eu penso que há certas escolhas que não somos nós que propriamente a fazemos. Na verdade, há caminhos que já estão pré-determinados. Acredite você ou não, trabalhar com a morte é uma designação que está no meu mapa astral! Minhas astrólogas preferidas Izabel Christina e Ana Leo há muito tempo confirmaram isso.

Impermanência: Expectativa e Consciência

Eu jamais inferi que a morte era uma “inimiga” e desde criança tenho consciência de que a morte faz parte da vida e que o viver é permeado pela impermanência. A morte me foi apresentada quando eu tinha 2 anos e 8 meses, quando meu pai morreu. No entanto, só compreendi de fato o significado desse evento quando eu tinha 6 anos. Foi na escola, na convivência com outros colegas, que percebi que eu não tinha um pai, ele estava morto. Mas, também observei que não era apenas eu que não tinha um pai. Tenho na memória que também havia um menino que não tinha pai e umas meninas, elas eram irmãs, que não tinham a mãe. As histórias desses colegas, mescladas com a minha, foram o gatilho para que no auge dos meus 6 anos eu começasse a pensar que a morte estava presente na vida de todos e não somente na minha.

Ainda na infância minha consciência sobre a morte se alargou um pouco mais quando uma amiga de minha irmã mais velha morreu atropelada. Ela era jovem, bonita e estava noiva prestes a se casar. A morte abrupta dessa moça me fez pensar que aquela ideia de que as pessoas morrem quando estão velhinhas não era verdadeira. Os jovens também morrem. Um outro evento me fez ter a certeza de que a morte pode chegar a qualquer momento. No primeiro ano do ensino fundamental minha colega Mara morreu, ela tinha um problema no coração. A morte de Mara me fez concretizar uma das mais difíceis certezas: as crianças também morrem. Outras perdas ocorreram ao longo da minha infância e juventude, amigos do ensino médio, vizinhos, primas, primos, e minha mãe.

Então, me dei conta que aquela famosa “lei” natural da vida era uma falácia. Qualquer um pode morrer a qualquer hora: pai, mãe, filho, neto, avô. Contrária à lógica da idade, a verdade é que, dado ninguém saber a hora de sua morte, não existe uma ordem estabelecida para que as coisas aconteçam. Filhos costumam enterrar os pais, é verdade, mas o contrário também ocorre.

Tenho observado pelos comentários em minhas mídias sociais e e-mails que recebo que infelizmente as pessoas estão cada vez mais desconectadas da consciência de que somos finitos. Há também um despreparo psico emocional coletivo para lidar com as dores que advém após uma perda significativa. A sociedade atual considera desconfortável vivenciar as dores que um processo de luto pode ocasionar. Interessante observar como muitas pessoas vivem como se todos ao seu redor fossem imortais, inclusive elas próprias, e quando uma morte acontece o choque inicial perpassa pela ideia de que “nunca imaginei que isso poderia ocorrer”. Esse pensamento mágico se dá porque não discutimos a morte com a devida seriedade que ela carece, nós a ignoramos.

Não temos como controlar a morte. Ela acontecerá em algum momento e não temos a menor ideia de quando será. Tentar controlar a morte é como tentar controlar as batidas do coração: impossível. Ela simplesmente acontecerá. É claro que eu fico triste diante de uma perda e às vezes, destruída. Já experenciei a dor do luto algumas vezes em minha vida. Mas não fico inconformada. Eu já assimilei a informação de que posso perder a quem amo a qualquer instante. Busco manter o equilíbrio entre as minhas expectativas e a realidade. Afinal, as minhas expectativas são abstratas, mas a morte é concreta.

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Ter a consciência da impermanência é que me faz viver cada momento como se fosse único. Eu degusto cada instante quando estou na companhia das pessoas que amo. Eu costumo demonstrar a elas meu afeto sempre que possível. Quando cometo um erro, peço perdão, e já cometi inúmeros. Quando é necessário perdoar também o faço. Ah! E não podemos esquecer da prática da gratidão: essa alarga a alma.

A morte é um tema que nos convida à reflexão sobre a vida e sobre o que temos feito com ela. É importante dialogar e refletir sobre a morte e o morrer. Ter a consciência de que somos seres mortais é o que nos permite compreender o verdadeiro significado da vida.

Referências
Kovács, MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1992.
Puri, S. The Lesson of Impermanence. The New York Times [online]. Mar/19. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/03/07/well/live/palliative-care-end-of-life-death.html
Rinpoche, CN; Shlim DR. Medicine and Compassion: A Tibetan Lama and an American Doctor on How to Provide Care with Compassion and Wisdom. Wisdom Publications, U.S.; 2nd Revised; 2015.

(*) Nazaré Jacobucci – Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Medicina da Universidade de Lisboa. Psicóloga Especialista em Luto. Especialista em Psicologia Hospitalar. Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC). Site: http://www.perdaseluto.com.

Foto de destaque: Jennifer Murray


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