Tertúlia em URSI: ler para relembrar, reviver e transformar

Tertúlia em URSI: ler para relembrar, reviver e transformar

Eu definiria os encontros semanais da Tertúlia como a demonstração do poder que a leitura tem de relembrar e reviver lembranças carregadas de saudade, algumas doídas, outras deliciosas.

Beatriz Bannwart Novaes (*)


Na disciplina Estágio Básico I do quinto semestre de Psicologia na PUC-SP, realizei um estágio na Tertúlia Literária, um grupo de leitura para idosos realizado pela Unidade de Referência à Saúde do Idoso Geraldo de Paula Souza (URSI GPS), em São Paulo, em parceria com a pedagoga Cristiane Casquet. Foram oito encontros recheados de afeto, trocas e aprendizados. A Tertúlia ocorre nas quartas-feiras às 10h da manhã, por meio de uma reunião virtual do Zoom, sendo que antes da pandemia as reuniões eram presenciais. Os participantes recebem o link semanalmente para poderem ingressar no encontro, que tem a duração média de 1h. 

Ao longo dos meses, portanto, pude acompanhar as percepções e espantos literários de cinco senhoras integrantes do grupo, encaminhadas a partir da UBS de referência, que realiza uma avaliação e verifica as demandas de cada uma delas.

As reuniões, organizadas e mediadas por Cristiane Casquet, também contaram com a participação da terapeuta ocupacional Ana Carolina e dos estagiários. A virtualidade dos encontros demonstrou alguns desafios para as participantes: em algumas semanas, elas tiveram dificuldade em desmutar o microfone ou ligar a câmera, sendo que nos últimos dois encontros J., infelizmente, não pode participar ativamente, pois estava com um problema de áudio em seu dispositivo. Fora isso, foram discussões muito proveitosas. 

De modo geral, eu definiria os encontros semanais da Tertúlia como a demonstração do poder que a leitura tem de revisitar lembranças. Aos poucos, conversando sobre as impressões do que haviam lido, algo de singelo e profundo escapava daquelas senhoras: algo que dizia respeito a suas próprias trajetórias. Eram lembranças carregadas de saudade, algumas doídas, outras deliciosas – mas sempre permeadas de uma grande beleza. Indiretamente, a literatura as provocou, trazendo à tona imagens da infância – como no encontro do dia 12 de maio, no qual havíamos lido um conto escrito pela participante E., chamado “A Galinha do Meu Vizinho”. Neste dia, ao comentar sobre o escrito, todas as integrantes trouxeram alguma memória afetiva em relação à figura da galinha, como do dia em que uma delas, quando menina, ficou presa dentro do galinheiro e teve de pedir para sua avó socorrê-la. 

Por meio destas leituras e das erupções de passagens de vida, também pude conhecê-las a fundo. E., por exemplo, que é escritora, sempre trazia comentários positivos e encorajadores nos encontros. Ela própria chegou a dizer, um certo dia, que só consegue escrever coisas leves e bonitas, pois sempre gosta de ver “o lado bom de tudo”. Curiosamente, no encontro em que havíamos lido um conto de Clarice Lispector, E. descreveu com detalhes o processo de matar uma galinha. Ao narrar esta cena impactante, regada de sangue e dor, E. transmitiu a mesma leveza com que narraria um pôr-do-sol ou um passeio pelo parque. Com a maior naturalidade, ela explicou passo-a-passo o processo, deixando-me boquiaberta (e de estômago embrulhado). 

De certa forma, em todas aquelas quartas-feiras, sentia como se estivesse adentrando numa conversa íntima entre amigas. Há sem dúvidas uma grande cumplicidade entre elas. Um dos momentos mais bonitos que presenciei (mesmo que virtualmente) foi quando E., sabendo das dificuldades de visão de J., gravou um áudio declamando seu conto e poema para que esta pudesse escutar em casa. Foi um ato memorável, pois demonstrou a preocupação e cuidado que possuem uma com a outra. No grupo de WhatsApp onde recebíamos o link, elas conversavam muitas vezes, enviando mensagens carinhosas e elogios. 

É nítida a importância que a Tertúlia possui em suas vidas: J. chegou a alterar o dia da comemoração de seu aniversário para não perder nosso encontro literário. Numa outra semana, em que havíamos lido um conto de Caio Fernando Abreu chamado “A Morte dos Girassóis”, J. apareceu sorridente com um enorme girassol ao seu lado. Suas participações foram inesquecíveis! 

Mas certamente, o maior aprendizado que obtive neste estágio foi a percepção do quanto minhas impressões sobre a velhice estavam equivocadas. Nas primeiras semanas, em que estávamos lendo o livro “A Metamorfose” de Franz Kafka, recordo-me da preocupação que senti ao saber que aquelas senhoras estavam lendo uma obra tão densa e obscura como aquela – ainda mais quando descobri que haviam acabado de terminar a leitura de “A Peste”, de Albert Camus. Tudo o que pude pensar foi: “isso não vai fazer mal a elas? Um livro com um tom tão pra baixo não vai deixá-las deprimidas?”

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Em contrapartida, descobri que essa percepção partia de um enorme preconceito, pois estava encarando a terceira idade como um momento completamente frágil da vida, em que não se deve tratar de temas pesados, apenas assuntos leves e mensagens positivas. 

Conforme fomos avançando na leitura, pude me dar conta de meu engano: ao ouvir os comentários densos e profundos das integrantes percebi a tamanha força e as construções elaboradas que habitam aquelas senhoras. Elas mergulharam de cabeça naquele livro, debateram sobre todos os momentos sofridos do protagonista, o que trouxe identificações e reflexões riquíssimas – segundo suas próprias palavras, elas se sentiram “a própria barata” (fazendo alusão ao personagem de Gregor, que se metamorfoseia num inseto gigantesco). Os encontros sobre “A Metamorfose” foram incríveis e bastante instigantes, e me permitiram constatar a tamanha maestria com que Cristiane Casquet escolhe as obras que serão lidas. 

Em suma, foi um prazer imenso acompanhar este grupo de senhoras que possuem uma bagagem infinita de vivências e recordações para compartilharem. Houve dias em que se falava muito, e outros em que uma ou outra se pronunciava enquanto as demais permaneciam em silêncio, escutando. Algumas leituras pareceram impactá-las mais, enquanto outras nem tanto. De certa forma, o que mais pareceu tocá-las foram passagens de livros, contos e poemas que atingissem diretamente alguma lembrança de vida.

Os dias de escola, a comida que sua mãe preparava na cozinha de casa, o nascimento de um filho… Momentos grandiosos e outros ínfimos, carregados de grande valor sentimental. Sem dúvidas, a literatura possui a capacidade de causar grandes reviravoltas, trazer sentimentos esquecidos, emocionar aqueles que a acompanham. É uma viagem dentro da própria vida e todas as suas significâncias.

(*) Beatriz Bannwart Novaes – Depoimento do estágio de 5º ano – 1º Sem 2021, do Curso de Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde – FACHS-PUC-SP, sob a supervisão da Profa. Dra. Ruth Gelehrter da Costa Lopes na disciplina Estágio Básico I, composta por atividade prática voltada para o exercício de competências e habilidades psicológicas que favoreçam a compreensão e posterior atuação em realidades específicas. O Estágio foi realizado na Unidade de Referência da Saúde do Idoso – URSI Paula Souza (SP) e os nomes das pessoas são fictícios para preservar seus participantes. Email: [email protected]

Imagem destaque de Yerson Retamal/Pixabay

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