Tão Velhinha! Tadinha!

Tão Velhinha! Tadinha!

Faz tempo que não escrevo. Estive envolvida com minha dissertação de mestrado e toda energia esteve ali, mas agora que tudo acabou as ideias para os textos parecem pipocar em minha mente, afinal não é fácil perceber a velhice sob os olhares alheios aos meus.

 

O tempo é o senhor todo poderoso que rege nossas vidas. Parece que foi ontem que resolvi abraçar o mestrado em Gerontologia e pronto! Num piscar de olhos o título foi anunciado justamente para alguém que nunca deu muito valor a títulos, mas que percebeu na pele o valor dos títulos acadêmicos. Todos eles conquistados com muito esforço e empenho. Confesso que estou feliz por me tornar Mestre em Gerontologia, principalmente por me sentir em condição de rebater com clareza algumas coisas que escuto.

Quem me conhece sabe do meu amor por cachorros e sabe que tenho um projeto intergeracional canino. Minha Nina de 16 anos convive com a Estrela de um ano e meio. Essa relação muito me alegra e foi fundamental nos momentos finais do mestrado quando os nervos estiveram à flor da pele.

Obviamente saio para passear com elas, uma por vez, afinal os passos são dados em ritmos totalmente diferentes. A Estrela não anda, ela corre e a Nina vai ao som da música de Almir Sater: Ando devagar porque já tive pressa… E por aí vamos!

Ao passear com minha velhinha que, de tão lenta nem usa mais coleira, ouvi novamente o que sempre escuto: Quantos anos?

-16!

– Nossa! Tão velhinha tadinha!

Respiro fundo, conto até três e só então dou meu sorriso amarelo numa tentativa absurda de controlar uma fala malcriada como resposta.

As perguntas seguem:

-Já está ceguinha?

Respiro novamente e como ainda não aprendi a mentir para tornar a coisa mais fácil, respondo o que um veterinário oftalmologista me disse:

– Não! Ela enxerga! Não é catarata o que ela tem. Ela possui uma degeneração na retina que deixa os olhinhos brancos, mas ela enxerga sim!

E de novo escuto:

-Tadinha!

Neste momento me despeço da pessoa e sigo meu passeio pensando em como a vida vai nos estragando ao longo do tempo por contaminar nossa mais pura percepção com a própria realidade.

Digo isso pensando nas crianças que percebem os olhos da Nina com uma doce ingenuidade e exclamam: Que olhos lindos! São azuis!

Elas percebem o opaco dos olhinhos como um tom azulado, e eu sempre me divirto com isso.

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Olho para a Nina e a vejo feliz da vida cheirando tudo o que encontra enquanto dá os seus passinhos entre um tropeço e outro. Há momentos em que ela para e sai do ar. Parece não saber bem onde está ou, então, talvez seja um meio que encontrou de se desligar desses olhares cheio de pena de uma vida plena onde a velhice, é nitidamente, no caso dela, a coroação da vida.

Começo então a usar algumas estratégias para despertá-la. Bato palmas e a chamo animadamente até que ela volte à realidade dura que condena aqueles que envelhecem.

Com a Nina sou obrigada a desacelerar e nossos passeios acabam se tornando um oásis em meio ao dia cheio de afazeres.

Ando devagar porque já tive pressa e levo o meu sorriso porque já chorei demais. Nossa música vai tocando na minha cabeça e mistura-se a pensamentos incontroláveis em que a arte sempre acaba surgindo como explicação.

Penso então no pintor espanhol Joan Miró que viveu 90 anos e produziu lindas obras durante a velhice. Tadinho!!!!!

Tadinho? Sua obra, neste período, atinge uma poética invejável aos jovens artistas que trabalham incansavelmente em busca de uma estética significativa.

Com a velhice, o artista atingiu uma simplicidade que deveria ser transportada para todo longeviver, que assim como na arte deveria ser um grande exercício da liberdade.

Durante sua velhice a pintura de Miró tornou-se mais engajada e através de sua expressão plástica pode lutar bravamente a favor da causa catalã e à liberdade de seu povo. Sua velhice trouxe uma clareza de gestos e uma simplicidade da forma invejável aos mais jovens que procuram a complexidade de tudo, achando que ao entender o que é complicado, tornam-se capazes de perceber o mundo. São os adultos analisando os olhos da minha cachorra sob uma perspectiva que os impedem de ver, ali, olhinhos felizes por perceberem o mundo com uma sutileza nunca antes vista.

Foram 90 anos vividos e experimentados nas diversas formas de expressão. Miró soube viver e envelhecer.

Ora divertia-se com tapeçarias, ora com esculturas e muitas vezes com pinturas que se tornaram experimentos de uma vida longeva.

Miró não teve nada de “Tadinho”, mas os jovens que sofrem de transtornos psíquicos em busca de curtidas nas redes sociais e de um mundo que precisa acontecer em um clic….. Ah! Tadinhos! São dignos de pena.

Aquela jovenzinha que se recusa a amar por medo de sofrer… Tadinha! E os que preferem estar conectados virtualmente aos melhores amigos? Tadinhos! Tadinhos também são os velhos que não souberam cultivar relações de afeto ao longo da vida. Que dó! Muita pena também daqueles que já envelheceram sem acompanhar os novos ares que vêm da juventude.

Portanto, é preciso refletir que Tadinho são aqueles que vivem a vida pela metade independente da idade. Penso ser urgente a necessidade de resignificar a velhice e seus conceitos. Minha cachorra é velhinha, assim como a Dona Maria aqui do prédio que com seus quase 90 anos vai ao parque todos os dias.

Assim como a Nina, as pernas da Dona Maria não são mais tão ágeis, mas são capazes de caminhar por caminhos que pernas jovens e musculosas jamais conseguiriam trilhar. Mas sei que muitos jovens apostam num presente capaz de reverberar na velhice.

Continuo o passeio, observando a doçura em forma de quatro patas ao meu lado. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, só levo a certeza de que muito pouco eu sei. Ou nada sei…

Referências

Tocando em Frente: https://www.youtube.com/watch?v=SWtjTkixv5M

Joan Miró/ coordenação e organização Folha de São Paulo: tradução Martin Ernesto Russo- Barueri, SP: Editorial Sol 90, 2007. (Coleção Folha Grandes Mestres da Pintura:11)

Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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