“Se não for de corona vai ser de outra coisa”

Eu estou com 82 anos, a gente tem que morrer de alguma coisa! Se não for de corona vai ser de outra coisa (risadas); 82 anos é chão, né?

Gabriel Guimarães Rossi (*)


Busca-se mostrar, neste artigo, como uma velha de 82 anos se encontra diante da pandemia da Covid-19. Ela mora na cidade de São Paulo junto com seu marido e um de seus filhos. Ela nos conta, brevemente, como sua rotina foi afetada nesse momento e se possui medo desse novo vírus, o corona. Desse modo, foi realizada uma pequena entrevista (integralmente abaixo) seguida de uma análise.

Neto: O que mudou ou não mudou na sua rotina após a pandemia?
Avó: Eu já estava dormindo muito antes da pandemia, então eu acabava não saindo muito, ficava dormindo, dormindo. Eu só ia para o meu cabeleireiro aos sábados e para o supermercado na sexta. Agora, não vou mais, eu só fico dentro de casa, né. Dentro de casa eu fico bem porque o Pedro chega, tem o Alberto aqui, tem a Luciana, não acho ruim tanto assim, não. E o Pedro estava me contando parece que tem vários tipos de corona vírus, né, pode dar até doença mental ele estava me falando, mas esqueci o resto, eu tenho esquecido demais as coisas.

Então é o cabeleireiro e o supermercado né que deixou de fazer durante esse momento?
É, o cabeleireiro está até fechado. Não dá para eu ir mesmo. Agora, o supermercado eu poderia ir de máscara e de luva, mas os meninos (filhos) não querem que eu saia de casa. Então eu fico dentro de casa e eles vão para mim. Então acaba tendo movimento na casa, porque a cada dois, três dias eles vão, trazem as coisas para mim. Mas a família do Pedro só vem de sábado para cá, eles jantam aqui e vão embora. Eles não vêm mais almoçar aqui, então ficou mais parado nessa parte, né.

E medo você sente? De pegar o novo corona vírus?
Eu? Não, nem um pouco.

É vocês estão isolados aí, né? Fica mais difícil de se contaminar mesmo.
Não, é que eu não tenho medo mesmo, Gabriel. Gabriel, eu estou com 82 anos, a gente tem que morrer de alguma coisa, né. Ah, tem que morrer de alguma coisa (risadas). Se não for de corona vai ser de outra coisa (risadas). 82 anos é chão, né? E seu avô está com 87, vai fazer 88. O meu irmão já tem 88. Já viveu bastante, né. Até chamei ele para passar uns dias aqui com a gente, mas precisa consertar o banheiro do quarto, a água está fria não dá para tomar banho. O seu avô não tem mais pique para chamar alguém ou consertar, então eu que tenho que chamar, ver quem vai vir. Essa parte está mais complicada para mim. Mas o resto não, está tudo bem, viu? Tem movimento na casa.

E você continua lendo livro e vendo filme?
Ah sim! Isso direto. Eu leio livro e vejo filme. Televisão né, a televisão é menos, mas por exemplo, agora vejo jornal nacional, jornal da cultura, vejo muito Brasil visto de cima, o mundo visto de cima. Então, Gabriel, olha, como eu já estava vendo isso em casa antes da pandemia. O que eu noto e que até os médicos falaram para mim, é que eu ficar muito dentro de casa eu vou ficando muito esquecida. Mas isso não vai ter jeito no momento, vai ter que ficar assim. É vamos ver, parece que outubro ou novembro já vai estar melhor.

Análise

Nessa pequena entrevista, aparecem alguns temas interessantes para serem refletidos e estudados. Sendo assim, desejou-se ampliar alguns assuntos como as mudanças físicas e cognitivas, a morte e o convívio com os outros.

É possível afirmar que existem formas muito heterogêneas de viver a velhice, podendo variar bastante conforme a pessoa. Desse modo, as mudanças corporais ocorrem constantemente desde que nascemos e são construídas e reconstruídas através de aspectos psicossociais, históricos e culturais. Portanto, esses aspectos influenciam o modo como o idoso se enxerga (Araújo et. al, 2011).

A sociedade associa os velhos às perdas físicas e cognitivas, reforçando-os como pessoas desqualificadas e incapazes. Precisa reconstruir a simbologia que foi imposta aos idosos. Algumas mudanças cognitivas, naturais do processo de envelhecimento, ocorrem, muitas vezes, por mudanças de papeis sociais, por exemplo, a memorização pode ser menos exercida após a aposentadoria (Neri, 2006; Yassuda, Lasca, & Neri, 2005).

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Bauman (1998) afirma que os velhos são percebidos como estranhos, pois não correspondem ao mapa cognitivo, moral e estético do mundo, uma vez que são espelhos da transitoriedade e inexorabilidade da vida, impossibilitados de reparo. A humanidade dos velhos é percebida como um defeito. Mas como afirma Maffioletti (2005): “Tudo é passageiro, e a construção de sentidos, sem sentido, onde a arte de esquecer é um bem, talvez, maior que a arte de lembrar”.

Dessa forma, podem coexistir diferentes lógicas, cabíveis de entendimento, respeito e reflexão. E o esquecer, por exemplo, pode fazer parte do processo. Essas formas de existir, que fogem um pouco da lógica valorizada, devem ser validadas. O processo de viver pode ser longo e dentro dele existem diversas mudanças e todas merecem ser vividas com dignidade. É notável que a sociedade capitalista valoriza apenas aquilo que se espera dar mais lucro no que diz respeito a produzir. Mas essa lógica deve ser repensada com urgência.

Além disso, o reconhecer-se como velho passa por olhares do mundo externo a ele, seja o olhar de outra pessoa, o espelho ou outro elemento do seu dia a dia (Concentino & Viana, 2011). Desse modo, o idoso, em geral, vivencia alguns acontecimentos como a morte de amigos e parentes próximos a ele. Assim, a construção da ideia de que a morte está próxima ganha notoriedade. Percebe-se que, social e culturalmente, a morte está mais atrelada à velhice, embora haja diversas exceções. Na entrevista, essa senhora parece encarar esse fato de uma forma bastante natural e espontânea. Parece possuir um sentimento de que viveu e aproveitou sua vida.

Contudo, pode existir ainda muita vida na velhice, como Mucida (2006) afirmou de um modo muito bonito ao dizer que existem os desejos que sustentam nossas relações com objetos, à medida que se pode agalmatizá-los. E isso independe da idade cronológica. Como a própria entrevistada mostra seu desejo e prazer por continuar lendo livros, assistir aos filmes, conversar, ir ao cabeleireiro etc.

Por fim, aparece na entrevista a questão do convívio social. Essa senhora relata não poder mais ir ao cabeleireiro onde poderia conversar com outras senhoras, ou ir ao mercado e ver outras pessoas. Além disso, parece dar importância ao “movimento” dentro de sua casa, que parece fazer bem a ela, os filhos e netos irem até ela e, consequentemente, conversarem um pouco. Ferraz e Peixoto (1997) identificaram em sua pesquisa exatamente a importância que os próprios idosos atribuem ao convívio social, ou seja, uma companhia de faixa etária parecida. E isso se mostra ainda benéfico para a saúde física e mental desses velhos. É uma qualidade de vida necessária.

Conclusão

Fica posto, portanto, que diante dessa pandemia, a situação de viver uma velhice digna, para essa senhora, ficou um pouco mais complicado. Por fazer parte do grupo de risco da Covid-19, foi colocado a falta de fazer suas atividades que dão prazer, como ir ao mercado, conversar com as pessoas próximas e fazer penteados em seu cabeleireiro. Como fazer para contornar essas situações agravadas nesse período?

Referências
BAUMAN, Z. O Mal-estar na Pós-Modernidade. RJ: Jorge Zahar Editor, 1998
COCENTINO, Jamille Mamed Bomfim; VIANA, Terezinha de Camargo. A velhice e a morte: reflexões sobre o processo de luto.Rev. bras. geriatr. gerontol.,  Rio de Janeiro ,  v. 14, n. 3, p. 591-599,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-98232011000300018&lng=en&nrm=iso>. access on  22  June  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S1809-98232011000300018.
FERRAZ, Aidê Ferreira; PEIXOTO, Marisa Ribeiro Bastos. Qualidade de vida na velhice: estudo em uma instituição pública de recreação para idosos.Rev. esc. enferm. USP,  São Paulo ,  v. 31, n. 2, p. 316-338,  Aug.  1997 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62341997000200012&lng=en&nrm=iso>. access on  22  June  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62341997000200012
LUDGLEYDSON, Araújo; SA, Elba Celestina do Nascimento; AMARAL, Edna de Brito. Corpo e velhice: um estudo das representações sociais entre homens idosos.Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 31, n. 3, p. 468-481,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932011000300004&lng=en&nrm=iso>. access on  23  June  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932011000300004.
MAFFIOLETTI, Virgínia Lúcia Reis. Velhice e família: reflexões clínicas.Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 25, n. 3, p. 336-351,    2005 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932005000300002&lng=en&nrm=iso>. access on  22  June  2020.  https://doi.org/10.1590/S1414-98932005000300002.
MUCIDA, A. O sujeito não envelhece: psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica; 2006
NERI, AL. Contribuições da Psicologia ao estudo no campo da velhice. RBCEH 2004 jan/jun: 1(1):69-80

(*) Gabriel Guimarães Rossi – Aluno do 5º período da graduação do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Trabalho escrito na disciplina “Velhos nas peças de teatro”, ministrada pela profa. Ruth Gelehrter da Costa Lopes, que teve como proposta analisar como o teatro oferece farto material sobre o processo de envelhecimento contemporâneo. E-mail: [email protected]

Foto destaque de Ketut Subiyanto from Pexels


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