Reportado perigo à frente: morte no caminho

Reportado perigo à frente: morte no caminho

A morte, nossa única certeza, se torna uma perigosa ameaça justamente por passarmos todo nosso viver nos desviando da sua constante presença. Acha que não sei que em cada esquina da vida nossa frágil condição está sob ameaça? 

 

O deserto
Que atravessei
Ninguém me viu passar
Estranha e só
Nem pude ver
Que o céu é maior
Tentei dizer
Mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar

Ligo o waze e fico esperando o programa calcular a rota que irá me tirar da cidade de São Paulo por alguns dias. É carnaval e eu, foliona que já fui, tenho preferido esquecer a folia e me entregar ao sossego.

No carro, apenas eu, meu marido, a filhote Aurora e a Estrelinha nos acompanham. Aliás, elas parecem viver para nos acompanhar e sempre com uma satisfação e alegria que, sabe lá São Francisco de Assis da onde vem.

Sair da cidade não foi fácil, mas a música que tocava trazia harmonia ao caminho.

É deserto
Onde eu te encontrei
Você me viu passar
Correndo só
Nem pude ver
Que o tempo é maior
Olhei pra mim
Me vi assim
Tão perto de chegar
Onde você não está

Congestionamento por todos os lados e por hora e outra o som da minha playlist é interrompido para que o alerta seja dito em alto e bom tom: Reportado perigo à frente.
Respiro fundo. Pelo retrovisor verifico as cachorras no banco de trás. Olho para meu marido que parece aproveitar a condição de passageiro.

Tento manter a calma e redobro a atenção para que perigo algum nos aflija.

As rodas giram assim como meu pensamento. Sim, ali na frente está o perigo. Por um instante minha imaginação tenta ilustrar o que assustadoramente foi dito: Reportado perigo a frente e eu me vejo repentinamente, em uma estrada bloqueada por OVNIs que tentam abduzir viajantes, que assim como eu, só desejam paz.

O percurso continua e a playlist segue a cantar e na melodia escolhida o perigo parece se dissolver.

Faz um pouco mais de um mês que retornei das minha férias na praia com o coração dilacerado pela morte da minha velha companheira de quase 18 anos que, praieira que sempre foi, escolheu morrer no litoral. Agora, obviamente, voltar para aquela casa não está sendo fácil. Sim, a vida é repleta de perigos que constantemente ameaçam nossa paz e a nossa fragilidade negada, por nós, ao longo da vida, com todas as forças.

A morte, nossa única certeza, se torna uma perigosa ameaça justamente por passarmos todo nosso viver nos desviando da sua constante presença. Minha cachorra não ficaria para semente. Sabia disso, mas mesmo assim não quis ver o óbvio.

Uma morte esperada, mesmo se tratando de uma velhinha saudável, a idade longeva mostrava sua proximidade.

Não pude ver. Não conseguia imaginar, sequer a possibilidade de viver sem sua doce companhia.

No silêncio uma catedral
Um templo em mim
Onde eu possa ser imortal
Mas vai existir
Eu sei vai ter que existir
Vai existir nosso lugar

O som da música se cala para o próximo alerta: Reportado perigo à frente!

Sei disso! Os perigos estão em todos os lugares. Pra que tanto espanto? Acha que não sei que em cada esquina da vida nossa frágil condição está sob ameaça? Acha que não sei os perigos que é viver medicalizando a vida e as velhices em frascos de comprimidos que postergam a tão temida morte? Pensa que desconheço este certo gozo divino em colocar vidas do avesso de uma hora para outra?

Reportado perigo à frente! Não me assuste ainda mais! Sei que Viver é suficientemente perigoso, principalmente para aqueles cuja humanidade acentua os passos e intensifica as reais necessidades de conquistas. Já sei! A estrada foi interrompida por inúmeros manifestantes que ao fazer arminha com os dedos, reivindicam o retrocesso em nome da moral e dos bons costumes. Voltamos às trevas?

Recado dado, fico atenta à espera do perigo que novamente é diluído pela música.

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Estamos seguros! Aparentemente! Até que nosso viver, envelhecido pelo tempo, comece a sofrer os descasos reservados aos velhos. Reportado perigo à frente. Sim! Viver é perigoso assim como, viver com intensidade ímpar os afetos da vida também é. O perigo está nesta mania repentina que a vida tem de se tornar um risco.

Sigo a viagem trocando as ameaças anunciadas pela falta que sinto dela. Sei que ela era uma cachorra, ou melhor, ela era o amor personificado no corpinho de uma cachorra, mas nada mais aterrorizante do que perceber a própria vida esvaziada.

Ao chegar no litoral não ouvia mais os alertas sobre os perigos possíveis. Meus dias e minha rotina já haviam sido modificados por sua falta.

Solidão
Quem pode evitar?
Te encontro em fim
Meu coração
É secular
Sonha desaba dentro de mim amanhã
Devagar
Me diz como voltar

Por um momento, ao abrir a porta da casa, achei que fosse encontrá-la me esperando para dizer que todo esse vazio insuportável não passa de um engano. Em cada canto que olhava eu a via, ora novinha aprontando todas, ora velhinha tropeçando no caminhar, ora muito velhinha pedindo o colo que tanto gostava.

Eu olhava, eu a via, eu a sentia mas ela não estava ali. Por todos os lados a vejo nas inúmeras lembranças que, por tanta sorte, tive o privilégio de viver em sua companhia. Seu amor amenizava os perigos do viver e eu a sentia como um amuleto de sorte, já que sua companhia fazia aflorar o melhor de mim. Ao chegar nesta casa, onde sua vida com a família que a ama, começou e terminou, a chuva que caía ajudou a esconder as muitas lágrimas que não consegui segurar ao olhar o pé de jasmim que parece se fortalecer com todo amor. Amor que grita em meu peito provando que a ligação de afetos que construímos JAMAIS findará. E o que seria da vida se não fossem os perigos de amar?

Beijei o pé de jasmim repleto de folhas novas. Com carinho colhi a folhinha amarela que estava por se soltar. Agora, a folha é prensada pelas páginas do meu livro que irão realçar o desenho do amor que brota da terra. Em meu pensamento te peguei no colo te elevando ao meu abraço. E era assim que nossos corações se encontravam e continuam se encontrando no compasso das memórias. Ao te devolver ao chão, um sentimento tão real parecia mostrar você ao meu lado. E assim tem sido meus dias desde sua partida, repletos de sensações e lembranças de uma realidade que chega a parecer absurda. Aurora e Estrela me chamaram para a vida. Uma vida cheia de perigos.

Escutei o chamado delas e fomos ao encontro do mar que está logo ali. O mesmo Mar da sua história e que agora ensina as diversões da vida para elas duas. Você não mais está fisicamente presente, mas teu amor segue vivo em todos os meus dias. No mais, o amor que aprendi com você continua sendo praticado. Seria muito egoísmo guardá-lo somente para nossa história. Sua morte me fez triste mas não menos corajosa.

A vida segue como o ir e vir das ondas do teu mar.

Entre um caminhar mais cabisbaixo procuro me reerguer. Mergulho na tristeza, me afogo na tua falta mas sobrevivo no teu amor que brota em folhas verdinhas e brilhantes do pé de jasmim que acolhe o corpo que te foi emprestado para que pudesse viver tua vida ao meu lado.

Eu precisava estar aqui neste carnaval. Eu precisava te procurar, precisava não te ver, mas te achar no amor imenso que não se finda com a morte. Voltarei para São Paulo com teu imenso afeto que bem sei que me acompanhará.

Na estrada, o som da música será novamente interrompido para alertar as desavenças que certamente estão por vir.

Reportado perigo à frente.

Ok! Entendi o recado e sei que ali à frente não tem OVNIs nem manifestantes estranhos. Ali na frente tem vida que exige cuidado. É necessário e saudável para o viver e o envelhecer uma certa cautela.

A tal voz insiste. Reportado perigo à frente!

Num ímpeto, desligo o aplicativo e sigo pela estrada. O risco de me perder parece mais tentador perto dos pensamentos perigosos que me angustiam ao volante.
Como na direção quanto na vida, uma dose de cautela vai bem. Uma curva acentuada se aproxima e a placa ao lado avisa: Cuidado! Curva Perigosa! Perigos estão por toda parte.

Redobro a atenção e respiro fundo. Pelo espelhinho olho para as duas cachorras desmaiadas por toda folia do viver. Imediatamente, sua falta não pode conter uma lágrima de saudades acolhida pela música que tanto gosto.

Se eu disser
Que foi por amor
Não vou mentir pra mim
Se eu disser
-“deixa pra depois”
Não foi sempre assim
Tentei dizer
Mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar

Notas
Para ouvir a música Catedral na voz de Zelia Duncan, acesse: https://m.youtube.com/watch?v=rTjL9U6Sd4E
Para conhecer o site oficial desta artista multi talentosa, acesse: http://www.zeliaduncan.com.br/
Para conhecer a versão original na voz da cantora alemã Tanita Tikaram, acesse: https://m.youtube.com/watch?v=bKPsztkrIVQ

Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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