Repensando o Alzheimer pelos olhos de Elvira

Conhecer Elvira aos seus 94 anos me possibilitou tirar as lentes da ausência, do que se perdeu. Me permiti experimentar as lentes de Elvira, as lentes das possibilidades, do novo, do afeto.


Com Elvira aprendi uma nova forma de me relacionar. Elvira é uma das participantes do Faça Memórias, projeto de arteterapia para idosas com problemas de esquecimento, coordenado por Cristiane Pomeranz. Cris foi a primeira a dizer que aquilo que eu estava vivenciando era o afeto. Mas, mais do que isso, foi com e por causa de Elvira que repensei a Doença de Alzheimer, talvez seja essa a principal razão do elo tão forte construído entre nós.

Foi no meu primeiro ano de faculdade que o Alzheimer se apresentou na sua forma final, levou meu tio. Ele era novo, 62 anos. Eu então, nova demais para entender toda a situação. A doença se manifestou quando ele tinha menos de 50 e foi levando-o aos poucos. Nos últimos anos eu não via mais vida nele; via um corpo, um olhar vazio… Não entendia porque minha tia, irmã dele, insistia em colocar músicas portuguesas para ele escutar. Enquanto ela o via sorrir, eu só via o vazio.

Para mim, aquele já não era meu tio, era isso que o Alzheimer fazia: arrancava a identidade da pessoa. Expulsava o sujeito de seu corpo.

Aí chegou Elvira, pouco mais de dois anos depois, quando entrei para o projeto. Não conheci Elvira antes do Alzheimer, mas definitivamente havia uma pessoa ali, com desejos e personalidade. Pela primeira vez tento enxergar o mundo da forma como as Elviras o enxergam e ele não é vazio.

Percebo meio perplexa que até então meu olhar para o Alzheimer tinha sido a partir da perspectiva de sobrinha, sem notar de fato o meu tio. Talvez por isso não o via sorrir. Descubro com Elvira que o vazio que eu via não estava nele, mas em mim.

Aprendo com Elvira uma nova forma de me relacionar com o Alzheimer, aprendizado que abre portas para conhecer e conversar com outras tantas Elviras. Às vezes só fazer uma careta e receber uma de volta é uma baita conversa nossa, é afeto. Também ficou claro para mim que não dá para subestimá-la, quando você menos espera ela tá puxando um belo de um papo com você.

Claro que também acontece dela comer tinta, tem dias que é só olhar três segundos para o outro lado que ela já tá colocando o pincel na boca. E, nesses momentos, não dá para deixar a preocupação tomar conta e pegar rispidamente o pincel de suas mãos. Aprendi a ter calma, primeiro chamar a atenção dela para outra coisa e depois explicar pela quinta vez como se pega no pincel e o que a gente está fazendo com ele.

Com Elvira vejo aquele aspecto do Alzheimer do qual não falamos muito, nem valorizamos. Como quando ela ri por uns belos segundos só porque espirrou. Ou quando, do nada, solta um “aiai” e olha para mim com cara de reprovação. Quando molha o pincel no café ou quando começa a pintar o guardanapo.

O Alzheimer traz consigo uma forma de olhar para o mundo; um outro sentido para as coisas do dia a dia; subverte as regras de sociabilidade. E, claro, como qualquer modo de existência, tem seus pontos negativos, mas não vale a pena só olhar para eles, permanecer na nossa perspectiva. Conhecer Elvira aos seus 94 anos me possibilitou tirar as lentes da ausência, do que se perdeu. Me permiti experimentar as lentes de Elvira, as lentes das possibilidades, do novo, do afeto.

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Autoretrato de Elvira com base nas obras de Rembrandt

A Dhara de 17 anos afirmava sem dúvida alguma que não aceitaria viver com Alzheimer. A Dhara de 20 admira a leveza que o Alzheimer traz para a vida e a possibilidade de olhar para o mundo com novas lentes. A dependência e a falta de autonomia me dão medo, é fato, mas se antes eu achava que alguém com Alzheimer era um fardo, hoje jamais diria isso das minhas amadas do Projeto Faça Memórias.

Sei que na minha posição de oficineira de arteterapia não vejo os piores lados de Elvira. Ainda bem, porque o ponto da arteterapia e de projetos como o Faça Memórias é potencializar esse outro lado do Alzheimer, o lado das infinitas possibilidades, da dignidade e dos afetos.

Que privilégio eu tenho de ter conhecido Cristiane Pomeranz, dela ter me acolhido nesse projeto e me apresentado à Elvira, Idelma, Icléia, Cleide, Celina, Taeko e Laís! Foi pela arte e pelo afeto que enxerguei tantas velhices e espero enxergar tantas mais.

Foto destaque: Arte “O Céu”, elaborada por Elvira em uma das oficinas.


Dhara Lucena

Dhara Lucena é estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e do curso de Arte: História, Crítica e Curadoria, da PUC-SP. É oficineira do Projeto Faça Memórias e colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected]

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Dhara Lucena é estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e do curso de Arte: História, Crítica e Curadoria, da PUC-SP. É oficineira do Projeto Faça Memórias e colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected]

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