Por que não discutir se dentro do metaverso caberia o afeto?

Por que não discutir se dentro do metaverso caberia o afeto?

Pesquisadores da USP querem inserir o afeto no metaverso com o Projeto Transcender que cria espaços on-line para vivenciar o luto

Texto de Luiz Prado e Arte de Rebeca Fonseca (*)


As expectativas para o metaverso são altas. Se hoje ele é um espaço para jogos, especulação financeira, reuniões corporativas e shows de celebridades, as potencialidades de seu futuro, por sua vez, estão abertas e instigam a imaginação. Não se sabe exatamente para onde o metaverso caminhará e qual impacto terá em nossas vidas daqui a alguns anos, mas uma coisa é certa: ele já é um ambiente em disputa.

Um projeto inovador gestado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP se estrutura para ocupar o metaverso e desafiar seus usos a partir de um tema delicado: a morte. Trata-se do Projeto Transcender, uma pesquisa aplicada multidisciplinar que pretende criar no metaverso um espaço para vivenciar o luto através de cerimoniais de despedida e da construção de memoriais para entes queridos falecidos.

Surgido em 2020 no Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais (LabArteMídia) da ECA, o Transcender foi pensado para responder a uma questão trazida pela pandemia de covid-19: a impossibilidade de as famílias e amigos se despedirem de seus mortos em virtude das restrições de aglomeração. O objetivo era construir um ambiente audiovisual imersivo em 3D, com vídeos em 360 graus produzidos para serem vistos com o apoio de equipamentos de realidade virtual.

A ideia partiu das experiências pessoais de Deisy Feitosa, integrante do LabArteMídia e pós-doutoranda do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA, sob supervisão do professor Almir Almas.  Nos primeiros meses da pandemia, Deisy ouviu depoimentos de religiosos sobre a tristeza de pessoas impedidas de velar seus mortos. Ao tomar conhecimento das iniciativas institucionais da USP para estimular pesquisadores a pensar soluções frente à covid-19, procurou seus colegas do LabArteMídia.

“Procuramos pensar uma forma de realizar esses rituais minimamente on-line, para que as famílias tivessem a oportunidade de se despedir, por mais que eles não pudessem substituir os rituais feitos fisicamente”, conta a pesquisadora.

A própria Deisy passaria por essa situação ao perder seu avô, precisando vivenciar o luto através de aplicativos e redes sociais. Isso lhe despertaria a atenção para a importância de plataformas mais humanizadas. “Queríamos alguma ferramenta mais empática, na qual as pessoas pudessem realmente entrar naquele ambiente”, relata.

“A ideia inicial era tentar atender a uma demanda específica da pandemia, algo sobre o qual ninguém estava pensando”, explica Almas, coordenador do LabArteMídia. “Ninguém podia ir ao cemitério e vivenciar o luto, e identificamos aí um problema de saúde pública muito grande: não se falava da saúde mental dessas pessoas. Por isso, uma vez que tudo foi para o on-line, pensamos que poderíamos tentar fazer esse ritual on-line também.” Segundo Almas, na busca por tratar o afeto digitalmente, o Transcender pretendia ser uma alternativa às interações limitadas das reuniões por videoconferência.

Para cuidar dos aspectos psicológicos envolvidos no projeto, Almas convidou pesquisadores do Laboratório de Estudos Psicossociais: Crença, Subjetividade, Cultura & Saúde (InterPsi) do Instituto de Psicologia da USP. Já para garantir o suporte digital, foi chamado o Laboratório de Robôs Sociáveis da Escola Politécnica da USP. Com isso, a coordenação dos trabalhos ficou com Almas, Deisy, os professores Wellington Zangari, do Instituto de Psicologia, e Marcos Barreto, da Escola Politécnica, e Daniel Lima, doutorando pela ECA e integrante do LabArteMídia.

Com o tempo, contudo, o projeto precisou de transformações. A falta de apoio financeiro adequado fez Almas e seus colaboradores promoverem uma reestruturação no Transcender, que em 2022 migrou sua atuação para o badalado e instigante metaverso. “Por que não discutir se dentro do metaverso caberia o afeto?”, questiona o professor. “E, se cabe o afeto, como podemos criá-lo lá dentro?”

Para Almas, o metaverso é um espaço ainda em construção e seu futuro depende do que está sendo feito concretamente nele. “Se nós não colocarmos algo como o Transcender, que é evidentemente afeto humano, dentro do metaverso, ele não se tornará humano. E aí o metaverso, como qualquer ferramenta, sem humanidade, é simplesmente ferramenta.”

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Foto: Reprodução

A ideia de migrar para o metaverso trouxe também novos parceiros ao projeto, como Marcos Simplicio, professor da Escola Politécnica e responsável pelas tratativas que deram à USP sua primeira terra no metaverso. Trata-se de um espaço localizado nos Estados Unidos de Marte (United States of Mars, ou simplesmente USM, no original) pertencente à Radio Caca, uma fundação envolvida com criptomoedas, NFTs e Maye Musk, a mãe do empresário Elon Musk, dono da Tesla Motors.

Simplicio explica que a doação recebida pela USP é o equivalente a um ganho de terras no mundo real, com a diferença de que essas terras estão no ambiente virtual da Radio Caca, situadas em espaço “nobre” do metaverso, próximo à praça central da área de New Harvard. Ainda segundo o professor, não há contrapartidas específicas para a doação. “O que se espera é o desenvolvimento de experimentos científicos usando a plataforma. Podem ser experimentos na área de educação, psicologia, técnicos, etc.”

Conforme conta Simplicio, a USP concluiu neste mês a resolução das questões jurídico-financeiras para o recebimento das terras e agora se prepara, finalmente, para dar os primeiros passos no metaverso com o Transcender. “Como o processo de ‘posse’ no USM é regido pela posse de tokens registrados em blockchains, a dificuldade toda se encontrava no fato de a USP não ter uma conta dessa natureza para receber a doação.”

Remodelado para o metaverso, o Transcender conta agora com uma lista extensa de parceiros, que incluem os convênios internacionais com a Rádio Caca e com a University Blockchain Research Initiative (Ubri), patrocinada pela empresa Ripple, responsável pela criptomoeda de mesmo nome. Também colaboram com os trabalhos pesquisadores do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento da ECA, da FFLCH, do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) e da Faculdade de Direito (FD), todas da USP, além do Museu da Pessoa, da rede Games for Change América Latina, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“O espaço Transcender é a primeira experiência de metaverso da USP”, comemora Almas. “E isso é legal porque ela traz o afeto, a saúde pública e a saúde psicológica, além de trazer as comunicações e as artes.”

A perspectiva é que a plataforma propicie a vivência de rituais de despedidas, nos quais as pessoas, através de seus avatares, possam se reunir para criar homenagens aos falecidos, lançando mão de fotos, vídeos, sons e outras mídias. Essas homenagens se tornariam então memoriais, que poderiam ser visitados e ampliados posteriormente. Almas explica que o projeto não está sendo desenhado para nenhuma religião específica. “O importante é a experiência afetiva do ritual.”

Mesmo com o projeto ainda em fase inicial, concorrendo atualmente em um edital da Fapesp, Almas não descarta a possibilidade de ampliação do Transcender para uma ferramenta mais abrangente, que possa servir para a vivência de uma série de rituais, como nascimentos. “O que nós queremos entender é: será que isso resolve a questão de afeto para o ser humano? Será que o metaverso vai nos ajudar a resolver questões humanas?”, questiona o professor.

(*) Texto de Luiz Prado e Arte de Rebeca Fonseca, do Jornal da USP. Foto destaque: Freepik


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