Os velhos de Woody Allen

Os velhos de Woody Allen

“A vida, a morte, o universo vazio, o sentido da existência e o sofrimento humano são como qualquer outra coisa”, maior aprendizado dos velhos de Woody Allen


Alerta de spoiler: o texto abaixo contém revelações dos enredos dos filmes.


Nesses dias, li uma matéria que comparava o visual de Diane Keaton no Óscar de 2020 com o de Rita Lee. A semelhança entre as duas me fez sorrir, afinal, admiro as duas velhas. Gostei de pensar na atriz, que conheço há mais de uma década. Ela tem 75 anos e diz ser a única estrela hollywoodiana que nunca se casou. Em suas falas sinceras acerca da velhice, outra raridade em seu meio, alega não pensar em aposentadoria e estar aberta a contratos para atuar. Também revela praticar fotografia, estudar decoração e escrever – em fevereiro, lançou um livro no qual conta a história de seu irmão, institucionalizado após apresentar um quadro demencial.

Seus filmes de que mais gosto são os assinados por Woody Allen. Aceito o fato de uma pessoa tão controversa ter contribuído enormemente ao cinema.

Diferente de Keaton, o diretor é conhecido por ser angustiado. Contudo, em entrevistas recentes, quando já octogenário, mostrou-se menos infeliz. Apesar das dores físicas decorrentes do efeito do seu envelhecer, externa ter muita disposição. Será que ele ainda pensa que não há benefícios na longevidade, ou compreendeu a amiga, que afirma ver a vida mais leve com o decorrer do tempo?

Empenhado em rodar um longa por ano, o leitor de Freud e Dostoiévski afirma que só parará quando desprovido de apoio financeiro. Com mais de 50 títulos, registrou as vicissitudes de seus sentimentos e suas elaborações intelectuais. Alguns deles sobreviveram ao passar do tempo, outros, datados, hoje resumem-se em objetos de estudo.

Rememorando os trabalhos do cineasta, foquei no seu olhar neurótico à velhice. Pois, vejamos alguns dos velhos que criou em sua trajetória:

O primeiro ao qual me atento é o Professor Leopold (José Ferrer), de Sonhos Eróticos Numa Noite de Verão (A Midsummer’s Night Sex Comedy, 1982), que se passa por volta de 1900. Apesar de ser um intelectual, o personagem afasta-se do estereótipo de “velho sábio”.

Desde a primeira aparição do velho, quando sai da Universidade cercado de estudantes homens, sendo galanteado por fazer o mínimo, é nítida sua respeitabilidade e elegância. Ele discursa a respeito de seu saber científico e ceticismo na metafísica, ou seja, um projeto de vida, uma elaboração que levou décadas e ainda estava inacabada.

A seguir, encaminha-se o clímax: o físico e sua noiva Ariel (Mia Farrow, com então 37 anos) vão passar um tempo na casa no campo de Andrew (Allen) e Adrian (Mary Steenburgen). Outro convidado é Maxwell (Tony Roberts), amigo galanteador do anfitrião, que levou a enfermeira Dulce (Julie Hagerty). Quando reunidos, são logo tomados por fantasias proibidas.

Ao contrário do que o senso comum intuiria, o único personagem desinteressado em sexo não é o idoso. Esse incita uma disputa fálica com Maxwell ao flertar com Dulce, quem cativa pela inteligência e instiga pelo sigilo que os encontros requeriam. A paixão não é consumada devido a intercorrências, mas a expectativa basta para que externe seu desejo e sua ambivalência quanto ao matrimônio iminente.

O final do filme, no qual entra em cena um componente sobrenatural, é o que há de mais rico nele: Leopold morre subitamente. Aos olhos de todos, seu espírito mostra-se bem resolvido com o falecimento corporal. Entendedor de sua castração, apresenta um exemplo de como partir. Ainda, demonstra que os limites da prepotência trazem urgência ao viver e, enfim, é viável estar errado quanto às certezas nas quais nos baseamos.

Então, pulemos mais que 20 anos: em Igual a Tudo na Vida (Anything Else, 2003), pela primeira vez o roteiro de Woody é focado em um casal de uma geração anterior à sua. Nele, vive Dobel, velho excêntrico que é tomado como mentor do jovem protagonista Jason Biggs (Jerry Falk).

O personagem destaca-se por sua vasta cultura e misteriosa experiência de vida. Seu humor é duvidoso e seus aforismas soam insólitos em um primeiro momento. Entre seus pertences, estão armas e apetrechos para sobrevivência em florestas – a Segunda Guerra deixou-lhe marcas que o “pupilo”, também judeu, não compreende: “você faz parte de umas minorias mais perseguidas da História”, ele alerta, tentando conscientizá-lo sobre o antissemitismo mascarado no cotidiano.

Cabe ao velho o oferecimento de conselhos amorosos, financeiros e (anti) psicanalíticos, que mesmo confusos, fizeram sentido. Também assume as demonstrações sobre não engolir desaforos, conforme visto na cena em que vandaliza o carro de um brutamontes que o desrespeitou no trânsito. E, partindo do princípio de que o maior tormento do amigo, o medo do fim, era comum a todos os seres, transmite seu maior aprendizado: “a vida, a morte, o universo vazio, o sentido da existência e o sofrimento humano são como qualquer outra coisa”.

O longa termina com a desistência repentina de Dobel em acompanhar Jason em sua mudança de cidade, que ele mesmo havia estimulado. Suas orientações, contudo, seguem reverberando nos escritos e afetos do rapaz, que conclui ter convivido com uma pessoa “estranha, triste e improvável”, de quem “lembrará com carinho”.

Três anos depois, Woody resgata sua inspiração na sobrenaturalidade e retorna às telas com outro papel de homem idoso. Em Scoop – O Grande Furo (Scoop, 2006), vive o desajeitado mágico Sidney Waterman.

Sid conhece a estudante de jornalismo Sondra (Scarlett Johansson) em seu show. Quando a sós, um de seus apetrechos é sintonizado com o Mundo dos Mortos e materializa o espírito de um jornalista, que dá as cartas para desmascararem um criminoso. Então, a inusitada dupla embarca em uma jornada investigativa na qual fingem ser pai e filha.

Há quem diga que a película homenageia comédias dos anos 40. Não captei a proposta, meu parecer é de que o diretor estava inseguro quanto a suas piadas. Entretanto, confesso ter assistido ao longa sugestionada por seu posicionamento em uma entrevista de 2010: “não vejo graça em atuar mais (…) Imaginem como é frustrante fazer um filme com a Scarlett Johansson e ver um outro cara ficando com ela”. A colocação é tão machista que, para não me estender, prefiro faltar a respeito, embora convenha apontar que a velhice não autoriza irresponsabilidades.

Destaco, então, a única parte interessante da obra, a representação da fugacidade da vida. Seu personagem é assassinado pouco antes de fecharem o caso. Em sua passagem pelo Aqueronte, divertindo-se com outras almas, enuncia que a morte não é desvantagem alguma.

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Mais adiante, Woody escala Larry David para interpretar Boris Yellnikoff, seu alter ego em Tudo Pode dar Certo (Whatever Works, 2009), que considero o seu melhor trabalho do século XXI.

O protagonista é físico, mas muito distinto de Leopold. No seu monólogo inicial, em que quebra a quarta parede, além de contar que já foi cotado para um Prêmio Nobel, mostra-se niilista e casmurro; descreve-se como “homem esponja, cercado por micróbios”. Também externa conhecer angústias acerca da morte. Um diálogo com sua ex-esposa, simultâneo a uma crise de pânico, ilustra seu sofrimento:
“- Estou morrendo!
– Devo chamar uma ambulância?
– Não agora! Um dia!”

O enredo é desenvolvido a partir do encontro do protagonista com a jovem Melody (Evan Rachel Wood), que abriga em sua casa. A inicial resistência do velho é golpeada por sentimentos paternais, que depois assumem formas românticas. Conforme previsto, o namoro entre os dois não vinga, tampouco é o cerne da comédia dramática, desenrolada como uma crítica aos costumes.

Desde o começo, sabe-se que o andar manco de Boris decorre de uma tentativa de suicídio. Nas cenas finais, ocorre outra cujo insucesso resulta em um encontro que deu certo. É possível associar a cena à colocação psicanalítica de que um mesmo sintoma pode levar à vitória ou ao fracasso,até mesmo resumi-la à coincidência: a mensagem consiste na possibilidade desejar mesmo quando os sentidos são de difícil apreensão.

No ano seguinte, em Você vai Encontrar o Homem dos seus Sonhos (You Will Meet a Tall Dark Stranger, 2010), Allen misturou alguns de seus assuntos favoritos com amarguras quanto à velhice.

As histórias do filme são interligadas e aparecem paralelamente. Anthony Hopkins vive Alfie, septuagenário às voltas com ideias de mudanças em sua vida. Ele não cede, acaba seu casamento de mais de quarenta anos, investe em sua saúde/aparência e se casa com uma mulher jovem, bela e infiel.

O narrador é enviesado, insinua haver incongruência entre os quereres e a idade do velho, tomado como tolo ao não perceber o interesse da nova parceira por seu dinheiro. Ele também vitimiza Helena (Gemma Jones), a velha que abandonou. Considerada um estorvo por sua filha ocupada com as próprias crises, a dor da senhora só foi amenizada em consultas com uma vidente chegada a clichês.

Se o fim de Alfie consiste em arrependimento e revisão de seus atos, o da ex-esposa também não foi feliz. Quando ela criou uma nova expectativa romântica, não foi correspondida pois o pretendente ainda estava ligado à companheira falecida. Seu único subterfúgio, o misticismo, passou a ser enxergado com dubiedade. Não há esperanças, tampouco ressentimento: o longa exibe como a realidade pode ser preenchida, com uma sucessão de escolhas e acontecimentos frustrantes.

Após a incursão pela obra do velho Allen, percebe-se sua forte coerência autoral. Sem esconder que seus filmes são sublimações, o diretor sempre externou desassossego quanto à vida e à morte, essa um de seus poucos novos porvires.

Se suas obras, como todas, são reativas e relativas ao contexto social no qual foram elaboradas, assistir a elas é aprender sobre um tempo e as velhices de outrora, algumas semelhantes às contemporâneas. Uma vez abertas a significações diversas, nos convidam a reflexões e incitam emoções que podem ocasionar sensibilidade na escuta, empatia e demais comportamentos transformativos.

Enfim, voltando à atriz que conhece Woody há décadas: em meio às polêmicas, Diane Keaton se calou a respeito de querer participar de seus futuros filmes. Gosto de pensar que sua última declaração se refere à capacidade de Allen de captar e desvendar mecanismos da sociedade em sua arte: “confio no meu amigo”.


Paula Akkari

Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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