Os velhos de Domenico Starnone

Os personagens velhos trazem à tona suas intimidades e percepções dos fatos. É assim que jovens e adultos são possibilitados a conhecer velhices possíveis e o que é ser-velho no contexto em que estão inseridos.


Aos 74 anos, o professor Luiz Antonio de Assis Brasil publicou Escrever ficção: um manual de criação literária. A obra, um percurso de reflexões sobre a escrita, apresenta o ficcionar como um exercício de humanidade que pressupõe conhecimento de circunstâncias extraliterárias ressurgentes na narrativa. Ao ler seus apontamentos, pensei em muitos autores que fizeram, de vivências, arte. Depois, naqueles cuja sabedoria mistura-se a construções fictícias, transmitindo com imaginação o que há de apreensível na existência. Logo, me veio um nome: Domenico Starnone.

Eis um dos maiores escritores da literatura italiana contemporânea. Em uma entrevista a El País, corroborou com os pontos do intelectual brasileiro dizendo que a posse de um escritor é sua experiência, a partir da qual traça histórias-verdades. Estas, segundo ele, devem mostrar o que escondemos ou resistimos a ver, arranhando a superfície da banalidade, destrinchando o óbvio.

Hoje com 77 anos, o escritor, jornalista e roteirista já o fez em dezenas de romances, três deles publicados no Brasil: Laços, Assombrações e Segredos. Os títulos constituem uma “trilogia sentimental” que aborda, sem maniqueísmos, assuntos emocionais e familiares.

Muito é falado sobre as representações de relacionamentos amorosos na obra do literato. Minha leitura, contudo, foi mais atraída pela das velhices. Dos personagens da tríade, oito são ou tornam-se velhos. Três deles assumem o papel de narrador-personagem, trazendo à tona suas intimidades e percepções dos fatos. Isso é o que há de mais especial na literatura em primeira pessoa: a captação de movimentos, outrora impercebidos, pelo olhar de outrem que possui outra sensibilidade. É assim que jovens e adultos são possibilitados a conhecer velhices possíveis e o que é ser-velho no contexto em que estão inseridas.

O que nos dizem, então, os velhos de Domenico Starnone?

Um ponto exposto é o da transformação corporal. Aldo (Laços) externa sentir no corpo o peso dos anos. Ele não só duvida de sua reatividade diante de emergências, como também reclama de sua audição diminuída, memória falha e leitura confusa. Admite, ademais, os riscos em realizar ações cotidianas, como descer escadas.

O personagem também acumula passado em forma de memória. Alguns sentidos de outrora foram perdidos. Em um árduo esforço para se realizar, ele duramente labutou – e, no presente, vê suas produções como aglomerados de escritas, sem reconhecê-las como sucessos. As impressões quanto à sua esposa também contêm estranhamentos. Ao ver fotos de sua companheira cinquenta anos atrás, não a reconhece, tampouco lembra de sua juventude. Em contrapartida, rememora com clareza o sofrimento amoroso que já lhe causou, este um tanto consequente de uma ironia: sentir-se velho quando trintagenário.

Daniele (Assombrações) compartilha de algumas das percepções descritas. Contudo, apresenta particularidades em suas relações interpessoais e laborais.

Assim como Aldo, não ocupa de forma romantizada seus papéis familiares. A tarefa de cuidar de seu neto por 72 horas, além de ser recebida sem fortes afetos positivos, foi executada com dificuldade; mesmo com eventual auxílio de uma funcionária também velha, que desdenha ao ouvir que possui planos para o futuro. O avô, pois, não possui intimidade com o menino, em quem investe menos do que em si e seu trabalho.

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Este último é uma fonte de preocupação. Uma vez um ilustrador renomado, percebe sua habilidade artística se dissipando. Pouco inspirado e pressionado por prazos, deseja desenhar tanto quanto provar, a si e aos outros, que é capaz de criar. Uma contradição: um importante estalo veio do garoto, quem também considerava um empecilho à sua produtividade.

O que está em Segredos exponho com ainda mais cuidado, visto que nomear os personagens é um spoiler. No livro, há considerações doloridas e conformadas sobre o envelhecer, além da apresentação de uma resposta possível a ele, a fazedura de literatura autobiográfica. Ações da ordem do registro e do reconhecimento são consideradas importantes pelos personagens. Um acontecimento marcante da narrativa possui este viés: trata-se da entrega de um prêmio que imortalizaria os velhos laureados.

A obra, principalmente, aborda o amor. Há o afeto de filhos admirados pelas conquistas dos pais e o de netos interessados por suas histórias. Mas o romance é central na narrativa. Dois personagens namoraram na juventude e, após o término, construíram uma conexão particular, que perdurou até a velhice. Um foi refém da parceira até seus últimos anos. Já esta manteve-se conectada via paixão, mesmo quando a proximidade era inviável e havia sido esquecido o porquê de poder controlar o ex-companheiro.

Para concluir, retorno a Aldo. Transcrevo seu fluxo de consciência que mais apreciei, uma consideração sobre seu passado e presente:

“Saboreei há sorte de ser a setenta e quatro anos uma transmutação feliz da substância sideral que borbulha nas fornalhas do universo, um fragmento de matéria viva e pensante sem muitas indisposições e por puro acaso com uma escassa experiência de infortúnios. (…) Como era bom viver, como era bom ter vivido. Eu mesmo me espantei com o cotidianismo, sentimento para o qual não tenho nenhuma vocação.”

O personagem assimilou o que está entre as maiores sabedorias – a ciência do acaso, da finitude e das belezas diais. Conforme visto, Starnone apresentou possibilidades das velhices, possivelmente ocultas a quem não possui convivências com velhos, consumiu arte sobre seus temas ou assistiu ao próprio envelhecer. Mas talvez aquela seja uma de suas principais mensagens, a de lirismo em relação à existência. E não há parecer mais completo do que daqueles que existem longevos; inclusive, ficticiamente.


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Paula Akkari

Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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