Onde é o meu lar?

A quarta narrativa da velhice que trago para os leitores do Portal é de Antonio, que conta sobre sua chegada a São Paulo e entrada em uma casa de repouso, seu lar.


Eu me chamo Antônio e vou contar para vocês sobre o dia em que eu entrei em uma casa de repouso. Não sei nem se esse é o nome certo a se dizer, às vezes fico meio confuso com tantos nomes, tem uma sigla que eu nunca lembro quais são as letras, mas que quer dizer a mesma coisa, só que de um jeito mais chique. Sinceramente, na minha opinião, no final dá tudo no mesmo. Eu fui um cara muito sozinho na minha vida, cresci com meus avós, trabalhei desde cedo na roça, e na cidade fiquei sem lar.

Sou do interior de São Paulo, uma cidadezinha chamada Pindamonhangaba, o nome chega a ser maior que a própria cidade. A fazenda dos meus avós se chamava Coruputuba, eu passei os primeiros 18 anos da minha vida trabalhando lá, cuidando das galinhas desde bem pequeno, colhendo as frutas, cortando lenha para colocar na lareira, levando mercadoria para a cidade. Meus pais não eram pessoas lá muito bacanas, pelo que meus avós me falam, eles nunca tocavam muito no nome deles e em uma certa idade eu desisti de continuar perguntando.

Eu nunca gostei muito de estudar, mas eu ia para a escola na cidade todo dia até completar o primeiro grau, meus avós não me incentivaram a continuar os estudos, porque para eles não fazia diferença, o que eu tinha que aprender não seria ensinado nas escolas e sim na fazenda. Quando eu fiz 18 anos, eu queria muito ir para a cidade grande tentar a vida, decidi juntar as minhas poucas roupas, algum dinheiro que eu tinha das gorjetas que eu ganhava nas entregas de mercadoria na cidade e fui embora. Nunca tive de cuidar dos meus avós, eu sabia que eles estavam muito bem sozinhos.

Na cidade grande achei que logo conseguiria emprego, desci do ônibus já pronto para trabalhar, aluguei um quarto em uma pensão por 5 dias, era todo o dinheiro que eu tinha conseguido juntar, mas achei que seria o suficiente, porque quando eu conseguisse um emprego, eu logo saberia quanto eu poderia pagar em um aluguel, de forma que não fiquei muito preocupado com isso. Passei aqueles cinco dias correndo atrás de emprego, batia de porta em porta, mas nada, diziam que eu não tinha carteira assinada.

Eu nem sabia direito o que era uma carteira de trabalho, nem para que eu precisava disso, eu só pensava no quanto esse pessoal de cidade grande era cheio de burocracia. Eles só precisavam me dar uma pá, uma enxada e iriam ver o que eu sei fazer, não preciso de nenhum papel para me dizer que eu sei trabalhar, mas se não tinha outro jeito, fui atrás disso para conseguir trabalhar. Fui no lugar em que me mandaram, mas tudo tinha que pagar para tirar o documento para trabalhar, mas como, se eu não estava trabalhando? Aquilo não fazia o menor sentido, eu já estava ficando irritado de estar na cidade grande.

Meus cinco dias de aluguel do quarto da pensão acabaram e eu fiquei sem ter para onde ir, nesse momento eu fiquei em desespero, eu já não sabia mais o que fazer para procurar emprego, só queria uma oportunidade para ter meu ganha-pão e poder sobreviver. Fiquei quatro anos morando nas ruas, foi muito difícil, eu passei muita fome, muito frio, eu senti muito medo em vários momentos, na verdade achei que iria morrer algumas vezes quando fiquei muito doente e simplesmente tinha que ficar no corredor de um hospital enorme esperando alguém me atender ou morrer, o que acontecesse primeiro.

Demorei quase um ano para ter coragem de pedir esmola, mas ainda sim, eu sempre pedia uma oportunidade de emprego e explicava que eu não era um mendigo, sempre fui trabalhador, mas ninguém acreditava. Não tinha nem dinheiro para voltar para a fazenda dos meus avós, eu também nem sabia mais se eles estavam vivos, se a fazenda ainda era deles… Decidi que não valeria o custo voltar lá e dar com a cara na porta.

Um belo dia andando pela Cracolândia em São Paulo esbarrei com uma mulher, ela era um pouco mais velha e me disse que trabalhava com abordagem de rua, eu não fazia a menor ideia do que era isso, mas expliquei que eu não era daquela região, pois não fazia uso de drogas pesadas, só fumava cigarro quando tinha algum trocado, tomava uns gorós quando sobrava e quando algum colega me dava, eu fumava maconha, mas foram poucas vezes que tive a oportunidade de fumar, apesar de ter adorado a sensação. Ela me explicou várias coisas sobre o trabalho dela que eu não entendi, mas se era para me arrumar um lugar para ficar e um trabalho, eu não iria recusar e nem ficar reclamando.

Eu nunca me esqueço da sensação de ter entrado na casa de passagem que tinha lá na Mooca, eu nem lembrava mais há quantos anos eu não tinha uma cama, já fazia um bom tempo desde a última vez que eu tinha tomado um banho, foi uma sensação única. Lembro que havia algumas pessoas que ficavam reclamando de tudo, mas acho que eles não passaram pelo que eu passei, porque se tivessem passado, não iam estar reclamando de nada, ali era muito bom para quem não tinha nada.

Lembro que eu passei a ter uma rotina cheia de coisa, tinha um monte de serviços para ir, um monte de profissional para conversar, aquela papelada toda e aqueles documentos que eu precisava fazer. Eles me ajudaram a fazer e eu não paguei nada, nem conseguiria se quisesse também, só achei chato, porque eles queriam muito que eu estudasse e fazia anos que eu nem lia e nem escrevia mais, tinha perdido o jeito. Demorei quase seis meses para aceitar a oferta de estudar num negócio que terminava os estudos mais rápido. Em oito meses fiz uma entrevista para ser pedreiro de uma obra ali na Barra Funda, fiquei indo e voltando todos os dias pegando condução durante quatro meses, foi cansativo, mas eu não estou reclamando, só estou falando que foi difícil, mas foi bom.

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Quando eu estava próximo de completar um ano lá eles me chamaram para conversar. Disseram que eu já estava bem encaminhado, e começamos a procurar algum lugar ali pela Barra Funda para eu ficar e me organizar. Eles me ajudaram com tudo, até me ajudaram a achar alguns móveis para começar, tudo usado, mas muito bom. Eu nunca me esqueço do dia em que saí daquela casa, foi uma emoção de tristeza e alegria, estava triste por sair dali e deixar algumas pessoas que eu gostava, mas estava feliz de finalmente estar saindo dali para ter uma casa.

Vivi naquela casa na Barra Funda por mais de 30 anos, nunca tive interesse de casar e nem de ter filhos, eu mal cuidava de mim mesmo, não tinha tempo e nem dinheiro para pensar em uma família. Trabalhei como pedreiro em vários lugares diferentes em toda a cidade de São Paulo, fiquei pensando no quanto talvez meus pais e meus avós se orgulhariam, se soubessem o tanto que eu conquistei, mas isso não fazia diferença, eu não sabia mais do paradeiro deles. Fazia tanto tempo que eu já nem ligava mais para isso.

Quando fiz 67 anos eu estava fazendo uma obra lá na Vila Mariana, e não me esqueço desse trabalho, estávamos reformando o telhado de uma sobreposta muito bonita e eu escorreguei na calha e caí no chão. Fraturei a minha coluna feio e o médico me disse que eu não poderia voltar a trabalhar. Ele me perguntou se eu tinha aposentadoria, eu disse que não, porque eu sempre trabalhei como autônomo e nunca gostei dessas burocracias do INSS. 

Tinha algumas economias guardadas, então eu decidi esperar os três meses que eu precisava ficar de repouso, porque pensei que eu conseguiria voltar a trabalhar, se minha coluna ficasse boa, mas ela não voltou a ficar boa. Mal conseguia ficar em pé de novo e aí começou a me bater o desespero. Só pensava naquele tempo em que eu morei na rua e no quanto eu não queria passar por aquilo de novo, então eu decidi fazer a única coisa que eu podia fazer: fui atrás do pessoal da casa de passagem que me acolheu anos atrás, pessoas que podiam me ajudar.

Peguei metrô e fui até lá pedir ajuda, já não eram mais aquelas pessoas da época em que eu estive lá, mas eles mexeram lá no computador e lembraram de mim, não sei bem como, mas eu expliquei que eu tinha um cantinho que eu precisava pagar aluguel e que não entendia nada desse negócio de aposentadoria. Foi ali que, pela primeira vez, ouvi falar sobre casa de repouso.

Tem gente que diz que esses lugares são ruins, mas eu não tinha direito de achar nada ruim, porque eu não tinha outra coisa e eu não queria voltar a morar na rua, então aceitei. Um pessoal de um outro serviço me ajudou a vender meus móveis, levantar mais um dinheiro para eu ter uma verba e fui morar na casa que eu moro até hoje. A casa de repouso é simples, mas eu tenho um quarto que eu divido com mais dois outros senhores, tenho seis refeições no dia que são bem servidas. Não é o lugar onde eu queria finalizar a minha vida, porque eu encerro esse ciclo com a impressão de que eu não conquistei nada do que eu queria.

Contei a minha história para que as pessoas entendam o quanto é importante estudar. Eu achei que era bobeira, porque meus avós sempre disseram que as coisas que realmente importam a gente aprende com a vida, mas não é bem assim. Precisamos ter estudo para poder crescer na vida, para que você possa construir algo que é seu, principalmente um lugar para você poder chamar de lar.

Foto destaque de Alcides Freire Melo/Portal 


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Thaís Teixeira Carvalho

Formada em Serviço Social, especialista em Gerontologia. Atuou durante 4 anos em uma ILPI filantrópica e desenvolve conteúdos nas redes sociais sobre serviço social e envelhecimento. E-mail: [email protected]. Instagram: @longevamente. Linkedin: https://www.linkedin.com/in/tha%C3%ADs-teixeira-carvalho-b64aa945/. Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCH9LmmAkYe1uicMQZ1L0W1Q

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