Oi Vó

Carta escrita para minha vó que faleceu por conta de COVID-19 no final de maio. Hoje a divulgo como um jeito especial de marcar uma data em que se celebra o dia dos avós. 

Vera Metzner (*)


Há três dias que você foi embora e há três dias que tento entender que você foi embora. É muito doido pensar que num instante a pessoa tá aqui e de repente ela deixa de estar né? É difícil, vó. Que mundo é esse no qual você não existe mais? Não faz sentido. O telefone toca e eu acho que é você querendo me perguntar pela milésima vez se eu já entreguei as mantas de tricô que você fez para os bebês (eu esqueci, mas depois eu levei). Eu olho a minha estante de livros e fico pensando qual o próximo que vou levar pra você. E a sensação de acordar? Dói muito abrir os olhos e lembrar que você não está mais aqui. Parece que eu ouço a sua risada e você me chamando o dia todo.

Poxa, Vó, e os tempos verbais? Ninguém ensina pra gente como é difícil conjugar um verbo no passado. “Gostava”, “queria”, “era”. É “gosta”, “quer”, “é”. Me vi hoje tendo que corrigir cada frase minha por isso. Não faz sentido.

Lembra da última vez que a gente se viu, no dia das mães? Você sabia né? Eu sabia também e você sabe disso. Os nossos olhares se cruzaram de longe e as lágrimas vieram bem devagar e a gente sabia de tudo isso antes mesmo de acontecer. Foi difícil virar as costas pra ir embora, eu vi como você também não queria se mexer. Mas nós duas sabíamos que foi o adeus (ou até logo) mais lindo possível. Foi como se fosse o nosso segredo.

E quantos segredos lindos que a gente guardou né? Lembra quando a gente foi assistir aquele ballet e você caiu no teatro? A gente combinou que não íamos contar pra ninguém senão nunca mais iriam deixar a gente sair sozinhas. Valeu por cada saída maravilhosa que tivemos depois disso e pelas risadas e olhares que a gente trocava quando alguém perguntava sobre esse dia.

O mundo tá muito doido, Vó. Não ter te visto desde aquele dia torna tudo muito surreal. Eu sei que você foi, mas eu não sei. É uma dor que vai e vem, começa do lado esquerdo do peito e sobe pela garganta e depois para os olhos. Eu ouço as nossas conversas na nossa cabeça e de repente parece que a gente tá tomando chá da tarde e você tá me contando sobre o vovô e pedindo pra eu falar mais baixo já que você é velha e não surda. Caramba, Vó, com quem eu vou tomar chá da tarde agora?

Vó

Acho que o mais doido agora é que dessa vez eu não tenho como te entregar essa carta. Foi um privilégio escrever para você ao longo dos últimos meses, foi mais um dos segredos da nossa despedida silenciosa. Despedida essa que se encerrou com as músicas que eu levei pra você ouvir quando foi embora. Eu fico olhando o celular que eu deixei tocando e tento imaginar qual delas tava tocando quando você se foi, se era Bach ou Mozart. Independente de qual seja, você não podia ir sem música.

Mas Vó, não se preocupa que eu também to feliz. Eu não esqueço que no seu aniversário de 90 anos, ano passado, você me disse que já tava bom. Eu sei que depois da minha colação de grau em janeiro você riscou o último compromisso da sua lista. Acho que foi uma troca justa, viver mais um pouquinho e estar lá com a gente e não ter que assoprar mais velinhas esse ano (foi por pouco né, daqui duas semanas ia ter que ouvir a gente cantando parabéns). Obrigada por ter ficado esse tempinho a mais, foi muito importante pra mim e pro Rô e eu sei que pra você também.

Obrigada por ser quem você é (olha o verbo de novo). Eu sei que vai ter um dia que vai ser mais fácil falar no passado e que eu vou acordar e não vou ter que me lembrar que você não tá mais aqui, mas que continua dentro de mim. Que você vai estar em cada suco de tangerina que eu tomar, em cada música clássica que eu ouvir, em cada vez que eu passar em na frente do lago aqui no térreo e em cada dança que eu assistir.

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Vó, eu sei que falei muito e que dessa vez o que eu escrevo ficou meio desconexo e sem sentido, mas acho que não tem nada que faça menos sentido do que perder alguém que a gente ama.

Manda um beijo pro vovô e pra vovó Berta. Espero que você não tenha brigado com ele falando que não teve graça essa brincadeira boba de demorar 12 anos pra reencontrar ele.

Foi um privilégio poder te conhecer e te reconhecer. Criar a nossa história, do nosso jeitinho único.   Com o tempo eu acerto o tempo verbal, mas dentro de mim eu não preciso acertar nada, você continua presente.

Beijos da sua neta favorita (a única que você tem).

28/05/2020

P.S.: Neste dia, 26 de julho de 2020, faz exatamente dois meses da morte da minha vó.

(*) Vera Metzner – Psicóloga graduada pela PUC-SP. Fez o curso de Aprimoramento em Teoria, Pesquisa e Intervenção em Luto pelo Instituto 4 Estações. Atua em clínica com jovens adultos e idosos. Estuda sobre envelhecimento e luto.  E-mail: [email protected]


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