O que desejo?

Esta pergunta provocou emoções, esperanças, desconfiança, ansiedade, expectativa num um grupo de idosos residentes numa ILPI.

Rita Amaral *


Neste último fim de ano, esta instituição pensou em mudar sua estratégia de presentear seus residentes na tradicional festa de Natal. Todo ano, alguns dias antes do dia 25 de dezembro, é feita a comemoração na instituição: missa na parte da manhã, seguida por um almoço especial, alguns convidados de fora, atrações musicais e por fim a chegada do Papai Noel acompanhado de seu neto “ajudante” (um voluntário idoso se veste de Papai Noel e traz seu neto para ajudá-lo) para a distribuição dos presentes.

A mudança neste ano foi a de saber de cada residente, o que gostaria de ganhar de presente. Fui convocada para desempenhar esta tarefa; sou voluntária há cinco anos na instituição. É preciso ressaltar que existe entre os residentes e eu um vínculo de confiança construído ao longo deste período.

Os residentes estão acostumados a receber sempre os mesmos presentes: sandálias e blusas para as mulheres, alguns objetos de higiene pessoal e os homens também sandálias ou camisetas. Recebi a lista de todos e fui ao encontro de cada um para perguntar-lhes: “O que o Sr (a) gostaria de receber da instituição na festa de Natal?”. Alguns não entenderam de início a pergunta achando que eu é quem seria a pessoa que os presentearia. A dúvida foi esclarecida.

O que inicialmente me pareceu uma tarefa aborrecida foi se transformando numa tarefa instigante. À medida que eu perguntava, cada vez mais me surpreendia. Fui descobrindo sujeitos sem desejo, sujeitos que num primeiro momento não tinham a mínima idéia do que desejar.

Precisamos considerar as condições de quem vive como residente numa instituição de longa permanência, ou seja uma instituição total. Goffman (2005) define instituição total como “um local de residência ou trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.”

Dentro das instituições os indivíduos realizam ações, em geral, na presença de várias pessoas, não havendo uma preocupação erespeito à sua individualidade. Muitos residentes se queixam dos “hábitos e costumes” das pessoas com quais passam a dividir um lugar à mesa ou seus aposentos. Um idoso comenta comigo que prefere ficar só no seu canto, e passa seu tempo fazendo palavras cruzadas ou lendo jornal que sua filha o presenteou com a assinatura, desde as 5h30 da manhã até a hora do jantar às 18h, na entrada da instituição numa mesa, ao invés de conviver com pessoas que ele classifica de “coitados” com os quais ele acha que não há possibilidade alguma de troca.

A forma de viver e conviver, as atitudes, idéias, sentimentos e conduta devem ser avaliados dentro deste contexto institucional. Born (2002) comenta que os asilos em geral se apresentam como lugares de estruturas constrangedoras, com critérios padronizados que não permitem a expressão individual, promovendo a despersonalização do indivíduo. Passa a existir um rompimento do padrão de vida anterior e se oferece a este sujeito uma situação de compartilhamento fechado, afastando o indivíduo do convívio social e familiar. Mas as situações de cada sujeito são muito diversas. Para alguns residentes ser admitido em uma ILPI pode significar a solução de um problema para ele e sua família: assistência médica, medicação, roupas, higiene, alimentação não faziam parte do seu cotidiano. Tenho escutado relatos de pessoas que se automedicavam sem nenhum critério ou que se alimentavam o dia todo de pão e café com leite, que dormiam em colchões na sala de parentes desprovidos de sua privacidade.

Messy (1999) assinala que durante nossa vida vamos enfrentar muitas perdas, mas vamos fazendo novos investimentos em buscas de outros objetos “uma perda não é sempre um término, muitas vezes engendra uma aquisição”. Estes idosos sabem que estar asilado é uma situação permanente nesta etapa da vida em que se encontram. Muitos estão dependentes em cadeiras de rodas, outros com visão e audição em declínio: “Estou enxergando cada vez menos, só vi que era você quando você chegou bem perto de mim…” revelou-me uma residente.

Tudo isto é muito doloroso para estes sujeitos e buscar novos investimentos se torna cada vez menos possível; vão colocando seus desejos em lugares que não são mais acessados ou em objetos que não são mais possíveis. Por estas razões, estava tão difícil saber ou perguntar-se sobre um pequeno desejo: o que gostaria de ganhar no Natal.

Para estas pessoas, eu disse que se perguntassem e que depois de algum tempo eu perguntaria novamente, dando-lhes um tempo para pensar, talvez explorar seus sentimentos, ter a liberdade de pedir, de expressarem o que desejavam.

Sujeitos que desejavam o impossível; mas revelam toda a sua tristeza por uma limitação física: um idoso cego me diz que o que ele mais queria era voltar a enxergar. Outra idosa que está numa cadeira de rodas vítima das seqüelas de um AVC me diz: “Eu quero uma coisa que eu não posso ter; que é andar”. Foi muito difícil para ela pensar em outra coisa, e acabou dizendo que gostaria de ganhar um xampu.

Muitos idosos respondiam que “qualquer coisa tá bom ou não sei”. Ante a minha insistência que seria a de cada um explorar dentro de si mesmo o que gostaria de receber, na verdade de expressar o seu desejo.

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Alguns pedidos foram muito simples, como são os residentes desta instituição filantrópica, mas expressaram seus desejos. A Sra. B. depois de responder que não queria nada, lembrou-se que gostaria de ter uma toalhinha que enfeitasse sua mesa do quarto, que fica ao lado da sua cama, hábito que provavelmente veio de sua família onde se usavam toalhas de crochê enfeitando todas as mesas da casa.

Muitas pessoas me procuraram depois para mudarem os seus pedidos: “Posso mudar o que pedi?”. Tiveram a chance de se perguntarem, de refletir.

Safra relata que:

“desejo é ontológico, é um movimento, um anseio em direção a algo bom, o que já implica a idéia da instabilidade do ser humano que é, assim, um ser em trânsito. O autor referindo-se à Santo Agostinho diz que este define o amor como uma forma de desejo que, dentro da temporalidade, se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom: seja por recuperação do que já se teve ou alcançando o que ainda não se tem. Mas o problema é que este desejo de posse implica o medo: medo de perder, medo de não alcançar, que remete de novo o homem à instabilidade, que por sua vez gera o movimento.”

O que restou de anseios nestes sujeitos que hoje são surpreendidos pela questão que lhes fiz? Perdidos nas suas desilusões? Seria possível recuperar a saúde, o vigor que já não se tem mais? Talvez a questão por onde anda o meu desejo tenha provocado um sutil olhar para dentro de si para me dar uma resposta. Posso querer o improvável, tudo ou nada! O que aconteceu neste Natal foi algo diferente dos anteriores. A questão o que eu quero, suscitou um sinal, um movimento interno, um olhar para dentro de cada um na direção do seu desejo. Desejo é sinal de vida.

Referências bibliográficas

BORN,Tomiko; BOECHAT, Norberto Seródio. “A qualidade dos cuidados ao idoso institucionalizado” IN : Tratado de Geriatria e Gerontologia. Guanabara /Koogan,2002.

BULLA, Leonia Capaverde; CLOSS, Thaísa Teixeira; VENTURA, Tatiane Andrade

A vida cotidiana do idoso institucionalizado. Faculdade de Serviço Social. Núcleo de Pesquisas e demandas e políticas sociais. NEDEPS/PUC/RS, 1997.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos . São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.

LAPLANCHE e Pontalis. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001

MESSY,Jack. A pessoa idosa não existe. Uma abordagem psicanalítica da velhice. 2 ed. São Paulo, Aleph,1999

SAFRA, Gilberto. O Diálogo entre Hannah Arendt e Santo Agostinho,segundo Safra. Aula ministrada na Pós- graduação da PUC/SP-2002.

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