O preço do abandono afetivo dos idosos

O preço do abandono afetivo dos idosos

Independentemente de qual seja a condição do idoso, há um irretocável abandono afetivo sofrido por ele, já que afeto não se vende e ainda que vendesse não se saberia em muitos casos onde o “fornecedor” poderia ser encontrado para suprir a “demanda”.


A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição Federal preveem ao idoso o direito a ter segurança na velhice, fazendo referência ao dever que a família, a sociedade e o Estado têm de amparar as pessoas maiores de 60 anos, conferindo-lhes dignidade e bem-estar. Quando nos deparamos com a discussão acerca deste direito, considerada juridicamente como norma de proteção integral ao idoso, a primeira coisa que vem à mente, muitas vezes, dos que se propõem a refletir sobre ela, é o amparo econômico que é devido “pelos mais novos a favor dos mais velhos”, em um raciocínio simplista e equivocado.

Quando a legislação fala em proteção integral faz referência sim às necessidades materiais e econômicas de um idoso que precisam ser amparadas, mas igualmente abrange a assistência afetiva e psicológica que devem lhe ser prestada. E é aí que, incontáveis vezes, a conta não fecha.

Prestar assistência efetiva e psicológica é, inúmeras vezes, muito mais complexo do que garantir ao idoso a satisfação de todas as necessidades materiais sobre o que ele necessita. Afeto não vende na farmácia, não está na prateleira do supermercado ou em qualquer estande de vendas de um corredor de um shopping qualquer.

O que se sabe pelo dito popular é que há coisas que o dinheiro não consegue comprar, e a assistência afetiva e psicológica é um bom exemplo disso.

São muito comuns os casos de idosos que são custeados por seus filhos ou netos ao serem colocados em instituições de longa permanência de grande renome, por exemplo, com irretocável aparato às suas necessidades clínicas e de saúde e que têm as despesas pagas em tudo de material que o dia-a-dia nestes lugares exige, como fraldas, medicamentos, profissionais especializados etc.

Os boletos chegam e são pagos, as necessidades chegam por mensagens de e-mail ou de whatsapp, enviadas pelas Instituições, e são prontamente providenciadas com o pagamento das despesas que desencadeiam, muitas vezes até mesmo por um terceiro que recebe a ordem de quitar um boleto, de fazer um depósito.

Mas, igualmente são muitos os casos de idosos que estão morando nestes lugares, com todas as despesas pagas e que nunca mais recebem, desde que lá chegaram, a visita, o abraço ou simplesmente o olhar de qualquer dos seus, daqueles que um dia lá os colocaram ao concluírem que nestes locais os idosos serão mais bem tratados, agindo dentro da máxima de que propiciam bem-estar indiscutível ao pagarem tudo o que se faz necessário no dia-a-dia das novas moradas.

Tantos são os idosos que possuem suas fragilidades e limitações, alguns problemas de saúde sem grandes necessidades de aparatos médicos e que residem com suas famílias, sendo tratados como objetos, sem voz e nem vez.

Não é incomum que nestas situações os familiares que “cuidam” destes idosos alardeiem que “fulano é velho e doente”, sem olharem para as condições e os desejos reais destas pessoas, colocando-as em rotinas que não lhes proporciona satisfação afetiva e/ou psicológica, como convívio com amigos e demais familiares com quem sempre teve uma história de vida porque agora “o cuidador X é que é responsável pelo fulano velho e doente e, como tal, sabe o que é melhor para ele”.

Toda a afetividade vivida e construída por idosos nestas condições até o momento em que eventuais limitações mudem suas rotinas é esquecida e engavetada em qualquer armário da casa que o acolhe. Como um móvel qualquer da mesma casa ele igualmente passa a ser visto: há quem se preocupe com sua limpeza e sua aparência tantas vezes, mas não há qualquer olhar para com o que ele sente ou deseja.

São muitos os relatos de idosos independentes, que moram em suas casas e que realizam suas atividades de forma autônoma, mas que não sabem sequer onde seus filhos e seus netos realizam suas atividades diárias, onde estudam ou trabalham.

Há casos de pessoas idosas que nem mesmo os endereços dos filhos ou dos netos possuem para casos de emergência, ainda que a emergência seja só a vontade de conversar um pouco e de diminuir a saudade das lembranças de toda a história que os une (ainda que sejam capítulos não tão bons, já que nem só de alegrias se faz a vida de ninguém).

Nestes casos sequer se cogita sobre qualquer tipo de auxílio material ao idoso, tornando a situação ainda mais complexa, vez que tantas e tantas vezes as condições econômicas da pessoa mais velha não lhe possibilita viver com o mínimo de dignidade e ela se vê perdida porque não sabe nem mesmo onde encontrar quem lhe deve, legalmente, proteção e auxílio.

Independentemente de qual seja a condição do idoso, há um irretocável abandono afetivo sofrido por ele, já que, como dito, afeto não se vende e ainda que vendesse não se saberia em muitos casos onde o “fornecedor” poderia ser encontrado para suprir a “demanda”.

O descaso sofrido por qualquer deles em termos afetivos não pode ser medido em números, já que é impossível dimensionar a dor do outro ou saber quantificar o que qualquer pessoa sente.

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Todavia, inegavelmente, há um abandono afetivo que pode ser juridicamente questionado em muitas situações. Não se trata de acionar o Poder Judiciário para que um juiz decida sobre o “dever de amar”, já que isso ou faz parte da natureza humana e de qualquer relação, ou não faz, e o juiz de direito, enquanto ser humano e dentro de suas limitações igualmente existenciais e legais, não tem poderes para impor medidas desta natureza.

Trata-se de uma situação na qual o juiz, ainda que não disponha de elementos legais objetivos para decidir sobre o caso que lhe é apresentado, utilize da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do costume para decidir sobre cada caso.

Em algumas situações o abandono afetivo sofrido pelo idoso é hábil a garantir-lhe um ressarcimento moral por todos os abalos que sentiu em decorrência das atitudes praticadas pelos seus, por aqueles que têm o dever legal de ampará-lo não apenas materialmente, mas em igualdade de normatização, afetivamente também.

Este tipo de situação ainda é muito mais comum quando está envolvida uma criança ou um adolescente, que muitas vezes sofre o abandono de um de seus pais e que tem o Poder Judiciário acionado pelo pai ou pela mãe que é presente para que o abandono afetivo de que foi vítima o menor seja ressarcido por quem se fez ausente.

Todavia, a legislação ampara em condições de igualdade a proteção especial que deve ser dada aos idosos, exatamente pela fragilidade que o passar dos anos traz à existência humana, tornando necessário um respaldo mais abrangente aos que vivem mais.

Em consonância com as mesmas normas que incumbem ao Estado, à sociedade e à família proteção aos idosos, torna-se um dever de todos mais atenção para que o cumprimento do amparo afetivo às pessoas mais velhas seja uma realidade.

Ao tomar conhecimento de situações que levem à reflexão sobre ser cristalino o abandono afetivo sofrido por qualquer idoso, é papel de todos buscar pela justiça e acionar o Poder Judiciário para que a realidade vivida por aquele que viveu mais se reverta.

Não se trata de judicializar o restabelecimento de relações humanas e familiares e/ou de buscar restituições econômicas pelo abandono sofrido, mas de levar ao conhecimento do Poder Judiciário casos de pessoas que em idade já muitas vezes bastante avançada precisam ter a ser favor a aplicação de normas vigentes, no caso, para que tenham a seu favor a satisfação do amparo afetivo que o ordenamento lhes salvaguarda.

Caberá então ao Poder Judiciário, consideradas as especificidades de cada situação, decidir se há ou não um dano moral evidenciado em decorrência do abandono afetivo sofrido, fazendo surgir como consequência o dever de ressarcir aquele que foi abandonado com mais de 60 anos.

É importante ter em mente que antes de se falar em valores econômicos, estamos tratando de valores humanos, e que estes possuem cifras incalculáveis.

Uma sentença judicial muitas vezes pode acabar repercutindo em um pagamento que, quando quitado, causará uma ferida ainda mais profunda do que os fatos que desencadearam o processo da qual ela é decorrente.

Em algumas situações o dinheiro recebido não será capaz de apagar as cicatrizes deixadas em idosos por aquele que pagou a seu favor tudo que lhe foi imposto.

O abandono afetivo é comumente praticado por quem desconhece o valor das relações humanas, o que explica serem estas mesmas pessoas as que continuam sem entender qualquer dos seus significados mesmo após anos de litígios judiciais.

Antes de qualquer ação judicial a conciliação é a medida mais recomendada, sendo que, em casos como este, recomenda-se que ela seja pautada em valores humanos, os mais acertados fundamentos jurídicos quando a questão é a afetividade e aparato psicológico, já deles advém consequências inúmeras vezes absolutamente impagáveis.


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Natalia Carolina Verdi

Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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Advogada, Mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, Professora, Palestrante, Autora, Presidente da Comissão de Direito do Idoso para o ano de 2022, junto à OAB/SP – Subseção Penha de França. Instagram: @nataliaverdi.advogada www.nataliaverdiadvogada.com.br E-mail: [email protected]

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