O acervo secreto da minha memória

O acervo secreto da minha memória

Os álbuns fotográficos, certamente eram os que mais “falavam” sobre todas as décadas vividas. A eles ficou a maior responsabilidade de quase todas as histórias: a memória.

 

O armário que fica à direita do janelão de vidros é o fiel guardião, há mais de quarenta anos, de inúmeras histórias e memórias que, uma a uma, foram somando-se, entrelaçando-se e, depois fechadas no armário, para formar o que poderemos chamar de vida. Outras tantas, por medo, talvez, seguiram desviando-se umas das outras e provavelmente habitam outros armários ou simplesmente deixaram de existir. Os álbuns fotográficos, certamente eram os que mais “falavam” sobre todas as décadas vividas. A eles ficou a maior responsabilidade de quase todas as histórias. Relatam, com a precisão de anos, meses e dias, cada passagem do tempo preso naquele armário.

As lembranças surgem como quem começa a aprender a falar, sem muitas palavras, sem muito para contar. Assim são as “monossilábicas” fotos em preto e branco. As primeiras fotografias são de pequeno formato. Em uma delas, quatro meninos brincam com um cachorro peludo no quintal, com galinhas e um umbuzeiro. Outras três são de um acampamento de um grupo de escoteiros. Em páginas seguintes, chega-se à redação de um jornal. Ainda preto e branco, um retrato do maior poeta popular, Patativa do Assaré. O velório de Luiz Gonzaga, rei do baião e do Pau da Bandeira, na festa religiosa para homenagear Santo Antônio, padroeiro da cidade de Barbalha-CE.

Faz vinte anos que as mesmas fotografias, penduradas nas paredes contam as mesmas histórias de felicidades, de uns longos dias embriagados de aventura, de neve, sol e prazer. Outras, ainda “cheiram” a barro quando enlameiam os pés em atoleiros de estradas barrentas, quando a camionete 4×4 jogava lama aos lados e respingava nos filhos, crianças. Aquelas, à direita, contam sobre a areia e sol que ardiam nas dunas, ao meio dia, da praia deserta para poder abraçar, tocar todo o corpo e em silêncio poder falar de paixão.

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Os porta-retratos são de uma paixão sem números, regras ou datas. São fotografias que, mesmo sem grafia, narram com precisão os dias, horas e cada minuto da história que necessitava de todos os sentidos para compreendê-la. Cada uma delas exala sabor, aroma diferente; cada uma delas toca uma música e fala palavras únicas, belezas infinitas. Aos poucos contam as histórias em pixels, viajam e ganham outras cores pelas cidades e regiões do Brasil. Ficam monocromáticas com a neve europeia. Emocionadas com nascimento dos filhos Isadora e Rafael. O primeiro aniversário deles. E primeiro dia de aulas dos dois.

Vários objetos pelas prateleiras são responsáveis por não deixar o passado se afastar, ir embora em datas, anos, ficarem perdidos e nunca mais poderem ser resgatados. Um relógio Citizen, dourado, com mecanismo movido à corda, mesmo sem mexer um único ponteiro há décadas, recebe uma carga de corda e volta a marcar o tempo com precisão: são 16h45min do ano de 1970; faltam 15 minutos para terminar a aula de História com a professora que tinha toda a turma apaixonada por ela. Vinte minutos depois o mecanismo vai contando o tempo, marca e conta os minutos com precisão. Agora será o tempo de jogo no campinho de terra solta, que empoeira os olhos e os pés dos peladeiros de quinze anos. Para todo o tempo e mecanismo quando recebe a caderneta com as notas escolares. Quase uma tragédia!

Um vidro vazio de Bien-être que perfumou uma paixão que certamente não poderia nunca ser esquecida; nunca foi. E uma noite que nunca acabou. O vidro vazio chegou ao futuro com todas as notas aromáticas, muitas delas gravadas somente na memória desde os anos 80. Não estou certo se é o mesmo aroma. Por não estar na mesma pele parece diferente, faltam umas notas. Sem a alquimia da paixão não é permitido. Nunca poderá ser o mesmo perfume.

Um guardanapo amassado, de papel, de uma companhia aérea que não existe mais está com marcas de batom, elas atraiçoam o tempo e, mesmo sem querer lembrar o voo, lembro quando ele foi marcado de vermelho. Bem conservados bilhetes do metrô de Paris, rótulos de cervejas da República Tcheca, a rolha de um alsaciano tomado em Estrasburgo, mapas rodoviários com várias rotas marcadas. Um canivete encontrado de Vitoria-Gasteiz, cidade basca.

Quando nossas vidas são matematicamente contadas por mais de seis décadas, frequentemente, quase todos os dias, somos retirados por horas do presente e levados ao passado para resgatar nossas histórias, aventuras, viagens e paixões que deixamos ou começamos por lá. Não será para viver outra vez, mas para tornar o presente melhor.

Para quem nunca possuiu um armário, um álbum de fotografias ou gavetas onde por anos, décadas, arquivaria histórias, correrá o risco de não encontrar mais ninguém quando chegar ao futuro. Poderá ser um lugar sem alegrias, sem nenhum arrependimento, sem uma única lágrima de emoção: poderá ter chegado ao vazio, ao nada. Sua única paixão poderá ter “encontrado” um amor e estar diluída nele. Agora não resta mais nada para fazer arder, doer o peito, secar a garganta, aumentar os batimentos cardíacos…

Fotos: Alcides Freire Melo

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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