Narrativas da longevidade avançada

Narrativas da longevidade avançada

As narrativas sobre a vulnerabilidade e a crescente fragilidade devem ser encaradas como processo inerente à trajetória, que se apresenta de diferentes formas.

Por Vera Brandão e Beltrina Côrte (*)

 

Ao longo da história, em diferentes culturas, a vida humana foi organizada segundo etapas do nascimento à morte. A partir dos anos 1960 iniciam-se pesquisas sobre o “percurso de vida”, que se apoiam em duas premissas: a primeira afirma que a vida individual, na sua totalidade, deve ser considerada como processo de desenvolvimento e transformação; a segunda se apoia no aspecto essencial da natureza humana – reprodução e sobrevivência da espécie, e a duração da vida humana. Analisam as interações e interdependências entre desenvolvimento biológico e psicológico, nos contextos sociais e históricos das organizações humanas, o que implica em postura interdisciplinar frente à realidade imposta.

Lalive d’ Épinay et al. (2013, p. 16) apresentam os resultados de seus estudos em dupla perspectiva: do observador/pesquisador sobre o envelhecimento, e o testemunho daqueles que relatam seu processo pessoal, em expressão livre, pois “a narrativa se constrói com carne e sangue, lágrimas e risos, composta dos fragmentos do vivido, em palavras e emoção”. Afirmam que:

A partir do olhar radicalmente subjetivo das pessoas velhas, que relatam fragmentos de sua experiência, o observador que recolhe questionários e narrativas as analisa procurando construir, de modo o mais objetivo possível, para além das trajetórias e experiências individuais – respeitando o caráter singular das mesmas – o quadro do conjunto da vida na velhice, no início do século 21.”

Em estudo realizado no Brasil, Venturi e Bokany (2007, p. 21) utilizaram abordagem metodológica semelhante, com objetivo de investigar o imaginário social brasileiro sobre a velhice, visando subsidiar debates sobre políticas públicas destinadas a este segmento “com a preocupação de dar voz aos próprios idosos – grupo populacional em geral pouco enfocado e pouco ouvido – priorizando sua perspectiva sobre o contexto sociocultural em que vivenciam o processo de envelhecimento”.

Nessa mesma linha, Brandão e Mercadante (2009, p.12), apoiadas em Argoud e Puijalon (1999), afirmam que a velhice deve ser compreendida ao mesmo tempo em que é explicada:

Se o envelhecimento é uma realidade para cada indivíduo, ela deve ser dita na primeira pessoa e vista na perspectiva e no movimento da história individual e singular de cada um. Ouvindo o idoso, o olhar que teremos sobre ele e o envelhecimento não serão jamais os mesmos.”

Verifica-se que muitas investigações na área gerontológica falam sobre os idosos em perspectiva externa a eles – o velho é “o outro” e “objeto de estudos”, e não se ouvem suas vozes. As investigações que privilegiam a palavra dos idosos se inserem na perspectiva antropológica da escuta da voz interna dos indivíduos de um grupo – seus medos, anseios, dificuldades e esperanças – fortalecendo sua autoestima, sentido de pertencimento e dignidade – valorizando o ser ainda desejante, senhor de sua vontade, mesmo considerando as perdas inerentes ao processo de envelhecimento.

Nesta perspectiva, Lalive d’ Épinay et al. (2013) apresentam depoimentos dos que vivem a longevidade avançada, de 85 anos e mais, como proposto no campo da antropologia social e cultural, apoiados nos saberes construídos e recorrendo aos métodos da sociologia e da etnologia. Entendem o “curso de vida” como totalidade composta de uma sequência de desenvolvimentos e transformações impostos pela natureza e modulados pelo ambiente social – da natureza das mudanças típicas a cada etapa da vida; as regras que lhes são associadas; a aptidão das pessoas de preservar o sentimento de identidade, mesmo considerando que a vida se constrói a partir de múltiplas transformações.

Os autores tomam como base de dados o estudo longitudinal realizado na Suíça, sociedade pós-industrial com elevado nível de vida e cobertura social bem desenvolvida. Naturalmente, existe uma grande diferença em relação à população brasileira, pois temos diferenças relevantes em relação ao nível de desenvolvimento econômico e social, e nos modos de viver e envelhecer. O processo de envelhecimento populacional pode ser observado nos vários países, com importantes diferenças no grau de desenvolvimento, mas os relatos indicam que as questões existenciais se aproximam.

Essas reflexões podem apontar caminhos futuros para os enfretamentos devidos ao aumento da população de octogenários e nonagenários, realidade que o desenvolvimento econômico e social já nos apresenta.

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No período da longevidade avançada apresentam-se dois estágios de comprometimento: a dependência funcional – atividades de vida diária comprometidas; a fragilidade – com independência relativa, mas com dificuldades em dois domínios: sensoriais, mobilidade, metabolismo energético, memória ou distúrbios psíquicos. A independência está ligada a preservação da capacidade funcional, e sem problemas de saúde relevantes.

Observa-se que nos países desenvolvidos a prevalência na população de 65 a 80 anos é majoritariamente composta de pessoas independentes e saudáveis; na faixa de 80 a 84 anos existe uma média equilibrada entre idosos frágeis e independentes; o grupo com 90 e mais é, na maior parte, dependente, com perspectiva de rápido declínio nas condições de saúde. Para Lalive d’ Épinay et al. (2013), a característica da população idosa é a extrema diversidade nos quadros de saúde, que se mostra como a maior fonte de desigualdade, mas é, por outro lado, também a idade da experiência vital do processo de enfraquecimento das faculdades físicas e psíquicas.

O processo de fragilização é inicialmente imperceptível, e seus efeitos se instalam gradualmente de modo adaptativo – as perdas leves vão sendo incorporadas “naturalmente” ao cotidiano. Mas existe um momento de desequilíbrio, causado por uma doença ou acidente, denominado de “limiar de insuficiência”, início do estado de fragilidade maior, motivo ainda de discussões teóricas em seu estabelecimento.

Como se distingue a noção de fragilização da, hoje menos utilizada, senilidade? As investigações sobre senilidade objetivam analisar o envelhecimento no plano celular, orgânico, genético, imunológico e endocrinológico, outras se interessam sobre a manifestação desse processo, e suas consequências, na vida dos idosos e das pessoas de seu convívio, suas influências ambientais e comportamentais. Considera-se que a fragilização é parte do processo de envelhecimento, mas a partir dos 80 anos inicia-se a fase que leva à fragilidade maior (Papaléo et al., 2015).

Nesse período a vulnerabilidade pode se tornar fragilidade, constituindo-se no desafio que a natureza coloca à vontade de autonomia do velho. Na realidade, a vulnerabilidade, e a crescente fragilidade, devem ser encaradas como processo inerente à trajetória, que se apresenta de diferentes formas, segundo a idade e as posições ao longo do curso de vida.

Referências
Brandão, V.; Mercadante, E.F. (2009) Envelhecimento ou Longevidade? São Paulo: Paulus.
Lalive d’ Epinay, C; Cavalli, S. (2013). Le Quatrième Âge ou la dernière étape de la vie. Presses polytechniques e universitaires romandes. Collection – Le savoir suisse: Lausanne.
Papaléo Neto, M; Kitadai, F (2015). A Quarta Idade: o desafio da longevidade. São Paulo: Atheneu.
Venturi, G.; Bokany, V. (2007). A velhice no Brasil: contrastes entre o vivido e o imaginado. In: Néri, A. L. (org.). Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas na terceira idade. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESCSP, pp. 21-31.

(*) Vera Brandão e Beltrina Côrte são editoras da Revista Portal de Divulgação, do Portal do Envelhecimento. Este texto é parte do artigo escrito por elas e publicado na Revista Kairós-Gerontologia, Edição 21, n. 1(2018).

 

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