Morte, dinheiro, planos de saúde…

Por que as empresas de seguro saúde não oferecem bônus aos pacientes que estão dispostos a dispensar cuidados médicos no final da vida? Essa é uma ideia fria, calculista, utilitária e pouco “americana”? Ou a ideia deveria ser discutida porque, dependendo do estudo, 40%, 60% ou até 80% de todo gasto médico de uma pessoa ocorre nos últimos 12 meses de sua vida? Será uma forma interessante de analisarmos se estamos priorizando qualidade de vida ou quantidade de vida? Se for para priorizar qualidade de vida, a ideia pode ser boa? Ou esse tipo de proposta gera uma reação negativa imediata por tocar em vários tabus: morte, dinheiro e planos de saúde…

Camila Appel *

 

morte-dinheiro-planos-de-saudeUm podcast do Freakonomics, sugerido pelo leitor Fabio Storino, reflete sobre um comercial de TV imaginário: um doente em seu leito de morte, ao lado dos familiares, debate sobre os altos custos de estender um tratamento médico que lhe proporcione uma sobrevida de uns três meses. O paciente tem a opção de não fazer o tratamento e ganhar um bônus de seu seguro saúde, num plano chamado de “o pôr do sol magnífico”. Aí, o comercial passa imagens atraentes desse dinheiro sendo gasto com uma última viagem inesquecível, um último desejo ou um investimento financeiro deixado aos netos.

A ideia partiu de um ouvinte do podcast questionando por que as empresas de seguro saúde não oferecem bônus aos pacientes que estão dispostos a dispensar cuidados médicos no final da vida. Ele diz: “quando um paciente recebe um diagnóstico terminal, as empresas de saúde terão informações suficientes que ofereçam uma estimativa dos custos que ele teria com tratamentos médicos pelos próximos 6 a 24 meses. Para os pacientes dispostos a dispensar esse tipo de cuidado, o bônus seguiria de acordo com a seguinte fórmula: um bônus imediato de 50% da diferença entre o custo atual do cuidado médico padrão e os cuidado paliativos. O paciente manterá o controle da opção, mas esse benefício se abrirá imediatamente a ele. A empresa de seguro saúde teria um ganho real e ajudaria a desincentivar o excesso de consumo de cuidados médicos nos últimos meses de vida”.

Veja algumas ponderações apontadas durante o bate papo do podcast, entre economistas e médicos:

Esse tipo de proposta seria um pesadelo de relações públicas para as empresas de seguro saúde, porque iria parecer que elas desejam manter o paciente fora do hospital, impedindo que eles tenham acesso à quimioterapia e a outros tratamentos somente para poupar dinheiro;

A ideia seria de difícil aceitação porque tratamento médico não é apenas uma questão econômica, é uma questão ética, quase religiosa;

É uma ideia fria, calculista, utilitária e pouco “americana”;

A ideia deveria ser discutida sim porque, dependendo do estudo, 40%, 60% ou até 80% de todo gasto médico de uma pessoa ocorre nos últimos 12 meses de sua vida;

É uma forma interessante de analisarmos: estamos priorizando qualidade de vida ou quantidade de vida? Se for para priorizar qualidade de vida, a ideia pode ser boa;

Esse tipo de proposta gera uma reação negativa imediata por tocar em vários tabus: morte, dinheiro e planos de saúde;

É uma forma de transferir a responsabilidade para o paciente em definir quando a vida dele terminará (e tirar das mãos dos médicos e do governo) – oferecendo a opção de ele abrir mão de um cuidado médico caro e transferir esse dinheiro para seus netos ou uma instituição de caridade, por exemplo;

A ideia não teria aceitação porque a maioria dos Estados dos Estados Unidos não aprova o suicídio assistido, o que indicaria uma dificuldade dos vivos em aceitar a opção de alguém pela morte;

Pode ser visto como uma forma de colocar um preço na vida humana;

Como seria a viabilização do pagamento ao paciente? Quais impostos o governo deveria cobrar, seria diferente em cada Estado ou igual no país inteiro?

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Não existe um mercado funcionando em empresas de saúde. Você não sabe quanto custa um serviço médico. Nem a enfermeira sabe quanto custa um serviço, como o eletrocardiograma, por exemplo. É como perguntar para uma vendedora de camisetas quanto custa a camiseta e ela não saber responder. É assim que compramos serviços de saúde. As pessoas não consomem o serviço diretamente porque uma empresa paga pelo serviço por elas. Essa dificuldade em precificar atrapalharia a proposta;

O foco deveria ser em oferecer o maior conforto possível aos pacientes e seus familiares e não pensar em dinheiro e centavos (como a ideia sugeriria);

Há um paradoxo interessante porque os próprios médicos, em geral, não optam por intervenções em seu leito de morte. Não se vê um médico morrendo numa UTI. Quando é a vez deles, querem ser deixados em paz (um médico que fala no podcast diz que não gostaria de ser reanimado, não quer passar por tratamentos para câncer, etc);

Não é só porque a vida possa ser estendida por meio de cuidados médicos que ela deva ser estendida a qualquer custo (em detrimento de qualidade). E se você já pagou por esse cuidado médico, porque não receber algum bônus caso não utilize esse tratamento?

Há uma mudança em andamento, sutil mas há, de como o sistema de saúde americano olha para a morte.

O que fazer em caso do paciente mudar de ideia no meio do caminho? E se ele for internado em um hospital quando tiver inconsciente, por exemplo.

Muitos pacientes sentiriam-se obrigados a pegar o bônus por causa da situação financeira de sua família;

Um dos médicos do podcast coloca a questão de que os médicos deveriam ser pagos para falar sobre a morte iminente com seus pacientes. Pois essa conversa exige habilidades especificas e tempo, além de ser desgastante emocionalmente para o médico. Hoje, os médicos recebem mais por prescrever quimioterapia a seus pacientes do que por conversar com eles sobre seus desejos.

Essa conversa incentivaria pacientes a falarem sobre seus desejos no final da vida. Se querem ser ressuscitados ou não etc.

É muito difícil dizer quando alguém vai morrer (acertar prognósticos), o que inviabiliza a ideia;

É difícil para os pacientes saberem qual é a melhor opção e tratamento para eles. Qual é a minha real chance de cura ou de sobrevivência com qualidade? Quantos meses ou anos a mais eu viveria?

Em primeiro lugar, deveria haver uma conversa médico-paciente, honesta, sobre o que é realmente importante para ele. A primeira pergunta seria: como você gostaria de receber suas informações médicas. A segunda: qual é sua compreensão sobre sua situação. A terceira: o que é importante para você. A quarta seria: o que você espera do futuro, e a quinta: você já pensou em algum momento em que poderia estar muito doente, já pensou em testamento vital? Essa conversa mudaria completamente como as pessoas buscariam tratamento médico no final da vida. E faz com que se comportem como médicos, por pensarem no benefício que algo trará e o quanto esse benefício vale a pena ou não;

A dificuldade do médico falar sobre morte com seu paciente seria um grande problema.

Ao invés de uma proposta como essa, deveríamos iniciar o uso de cuidados paliativos com antecedência – no diagnóstico de uma doença e não apenas em sua fase terminal. Isso mudaria todo o cenário – para melhor. As pessoas teriam um melhor gerenciamento de sintomas e de dor e as famílias estariam menos estressadas. No final das contas, acabariam vivendo por mais tempo e não menos. E um bom efeito colateral é o de que a maioria das hospitalizações seriam evitadas.

A discussão não é simples e me parece ser um jogo de ideias válido de ser imaginado, por compreender um aspecto fundamental no que se refere a cuidados médicos no final da vida: direto à autonomia. Termos autonomia para tomar decisões, para nutrir uma conversa franca com médicos e familiares sobre um possível fim e como desejamos viver esse momento. Se a autonomia estiver comprometida (por questões físicas como um estado inconsciente), há formas de garantir que desejos sejam executados, com documentos como o testamento vital. Como a médica paliativista Ana Claudia Arantes diz: a morte é um dia que vale a pena ser vivido.

* Camila Appel é formada em administração de Empresas pela EAESP-FGV e mestre em Antropologia e Desenvolvimento pela London School of Economics (LSE). Trabalhou com microcrédito no Unibanco e estagiou na ONU. Em 2009, estudou dramaturgia na New York University e passou a se dedicar à escrita teatral. Escreve romance de ficção científica e tem peças teatrais, com as já encenadas “A Pantera” (2009) e “Véspera” (2011). Fonte: Acesse Aqui

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