Memória e cultura do bairro Sé

Assim inicia-se a participação de Arnaldo que, como os outros narradores, tem como ponto de referência o centro da cidade de São Paulo. Há muitos anos este não é mais um espaço residencial, sendo sua característica o comércio e os serviços. Deste modo o grupo de narradores procurou relatar sua vida na cidade a partir de seu centro, local de passagem, de trabalho e ponto de encontro, onde todos viveram sua juventude, a maturidade e que até hoje é seu referencial mais forte. Presenciaram, como testemunhas atentas, as mudanças cotidianas que transformaram de modo radical esse espaço da cidade São Paulo.

Vera Brandão, Marcy Bernadete Garbelotti, Terezinha do Carmo Silva

 

Arnaldo veio morar em São Paulo, no bairro de Pinheiros, em 1957. Após um curto período trabalhando nas Indústrias Reunidas Matarazzo… prestei um teste no Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais S/A, que ficava em um prédio antigo de 3 andares, na esquina da rua da Quitanda e Álvares Penteado. Logo em seguida mudamos para rua São Bento …em frente a famosa Leiteria Pereira, hoje Bar e Restaurante Guanabara.

Lembra da demolição de muitos prédios para construção do metrô no Largo São Bento e das transformações na Praça da Sé. Sua namorada, hoje esposa, trabalhava no prédio Mendes Caldeira e, após o expediente de ambos, era a praça o local de seus encontros, sendo a Catedral um lugar que os atraia pela arquitetura e como local de oração. Ele recorda:

Saíamos da Catedral, tomávamos lanche no restaurante Gouveia, que ficava ao lado do Mendes Caldeira, eu ia para escola e ela para casa… Hoje eu guardo a lembrança de ter assistido a implosão do prédio Mendes Caldeira, que foi a primeira a ser realizada no Brasil, para aumentar a nossa famosa Praça da Sé considerada o Marco Zero de São Paulo.

Apesar da destruição do prédio, entre tantos outros da cidade, ele permanece como parte da paisagem interior e referência na história vivida pelo narrador. Outra lembrança marcante é a da mistura de ruídos, compondo a trilha sonora característica de uma cidade que cresce e se transforma. Ele recorda do barulho ensurdecedor do trânsito, do som das máquinas de escrever e somar, dos telefones no Banco, onde trabalhou muitos anos, e do bate-estaca na construção do metrô. Somam-se a estes, outros sons …

Subia a escada rolante da Galeria Prestes Maia …saindo na Praça Patriarca onde constantemente tinha o homem do realejo com sua música e o periquito tirando sorte …as duplas caipiras tocando viola ….o acordionista tocando a música do 4º Centenário, de autoria do Mário Zan ….o bater das horas do relógio da Igreja de São Bento … Mas o que eu mais recordo foi um show do cantor Nelson Gonçalves, na Praça Eduardo Prado ….um repertório inesquecível!

Á lembrança dos sons juntam-se os aromas e sabores das pizzarias, da feijoada do Gouveia, da Salada Paulista onde comia-se de pé, no balcão, saborosos lanches … maionese de batata servida com croquete de carne, salsicha ou linguiça …da famosa coxinha do restaurante Guanabara …do Café do Centro, na rua do Comércio… torrado e embalado na hora que aromatizava a rua… do Ponto Chic e o sanduíche Bauru …

As lembranças do passado, preservadas e relembradas por Arnaldo, se completam com o relato das inúmeras atividades que fazem parte de seu cotidiano até hoje. Dinâmico, fez parte de 2000 a 2003 do Grande Conselho Municipal do Idoso e no período, em parceria com ABAESP, desenvolveu um trabalho de luta pela melhoria das condições de transporte e saúde para os idosos, ajudando também a divulgar o Estatuto do Idoso.

Hoje estou na quarta gestão da diretoria da ABAESP, onde participamos de movimentos políticos e reivindicamos melhorias para os aposentados, pensionistas e idosos.

Alguns dos sons trazidos por Arnaldo também fazem parte das recordações de Cândida, a Candinha. Descendentes de portugueses e nascida em São Paulo em 1923, no bairro do Brás e criada no Belenzinho, ela lembra:

Que saudades das badaladas dos sinos da Igreja de São Bento anunciando a hora da Ave-Maria …dos sons emitidos pelos velhos realejos, com suas musiquinhas e os periquitos que, iludindo corações, traziam alegrias para rapazes e moças “casadoiros”…

Recorda também do apito das fábricas, que marcavam os turnos de trabalho, do apito do guarda-noturno que nos “diziam” que estavam cuidando da nossa segurança, e dormíamos tranquilos! …o som dos bondes passando pelos trilhos e os “tlim-tlim” tocados pelos seus sininhos. Os sons das serenatas, noite adentro …enchiam nossos ouvidos de magia e fascinação. Como era agradável ficar sentada nos bancos de jardins e praças onde havia coretos … e as bandinhas tocavam valsas e dobrados … Eram sons inesquecíveis!

Traz recordações de fatos marcantes da história da cidade, como da Revolução de 30 quando os soldados gaúchos se instalaram perto de sua casa, na rua Julio de Castilho … nossos inimigos … usavam um lenço vermelho … nos ensinavam as músicas que eles cantavam: Terra gaúcha meu bem/ Terra de nossa paixão? Quem for um bom gaúcho/ Vai fazer revolução. Do “sermão” que levou em casa ao cantar a música, e dizer com quem tinha aprendido!

Da revolução de 32 quando tocava o alarme (da escola)… porque o “vermelhinho” estava se aproximando de São Paulo para bombardear a cidade. Era um pavor! …A luta dos paulistas pela Constituição envolvia a todos, moços, velhos, crianças …eu tinha 8 anos …vibrava com todo movimento e tinha São Paulo no coração.

Emocionante foi o dia em que foi instalada luz elétrica em minha rua, era 1937. Foi uma grande festa que durou até meia-noite … Em 1938 aconteceu uma coisa espantosa. Era uma linda noite estrelada, estávamos brincando na rua quando apareceu no céu de São Paulo o Zepelim. Todos ficaram surpresos e a cidade parou para ver aquele “bicho” grande, que flutuava no céu. Foi uma experiência inesquecível!

Cândida relembrou a época de juventude e dos bailes com músicas românticas, tocadas por orquestra ao vivo, as roupas elegantes, a gentileza dos rapazes… do cine Rosário na rua São Bento, das lojas bonitas do centro da cidade em especial do Mappin e Clipper que também trazem recordação dos deliciosos chás da tarde com muitos quitudes e música ao vivo. Mas tem uma lembrança marcante onde se mesclam sons, cheiros, sabores e muitas emoções.

A Confeitaria Vienense, na rua Direita, era um ambiente bem europeu. Serviam tortas maravilhosas ao som de violinos, tocando valsas de Strauss, Chopin e outros compositores. Era muito romântico e inebriante! …Os estudantes das Arcadas iam paquerar as normalistas da Caetano de Campos e de outras escolas próximas. A paquera consistia na troca de olhares ardentes e românticos ao som de músicas como Fascinação. Bons e saudosos tempos!

No final de seu relato ela declara:

A lembrança dos episódios relatados provocou em mim a seguinte reflexão: a vida é uma caixa de segredos, que nos surpreende a cada momento!

Caçula de uma família com três irmãos, bem mais velhos, Delícia nasceu em 1942 em Jaguaruna, Santa Catarina, e foi muito mimada.

Cresci solta como o vento, fugindo de tomar leite fresco, por causa do cheiro, mas gostava de frutas que sempre tive a disposição para pegar no pé… pêssego, laranja, pêra, maçã …sempre tinha rosca e biscoito de polvilho, bolo de fubá, pão caseiro …Nunca se comprava nada, tudo era produzido na fazenda. Tomei banho de rio, brinquei de balanço em árvore, andei de cavalo em pêlo … fui uma menina muito feliz.

Mas sua vinda para São Paulo aos 20 anos não foi a continuação desta infância feliz e despreocupada. Casada aos 14 e mãe aos 15 anos, Delícia aos 19 já estava separada do marido, atitude que não foi aceita pela família. Só, vem para a cidade onde seu despreparo, inseguraça e solidão muito a fizeram sofrer. De outro momento difícil, vivido em 1974, resgata a memória de um edifício da cidade que contém parte importante da sua história – o prédio da Federação Espírita da cidade de São Paulo, rua Maria Paula. Ela relata que um voluntário me atendeu e conversamos 3 horas seguidas …naquele dia as começaram a mudar …estudei, achei uma nova direção e tornei-me voluntária na própria Federação … onde continuo até hoje.

Entre tantos sabores da infância por ela lembrados destaca, no entanto, o de um doce saboreado junto com seu segundo marido Jan, em um período mais estável de sua vida adulta. Ela compartilha então com Cândida, a recordação do mesmo espaço:

Um dia ele me levou para conhecer a famosa Confeitaria Viena, na rua Barão de Itapetininga, fomos tomar o chá da tarde …um pianista estava tocando uma música de Bethoven. O ambiente era muito elegante e sofisticado… muitas senhoras usavam pequenos chapéus e luvas brancas …não era este o meu costume interiorano e achei tudo maravilhoso. Neste dia experimentei, pela primeira vez, uma fatia de torta de limão … um doce fino e sofisticado… até hoje é o meu doce favorito.

Os momentos difíceis não impediram seu desenvolvimento e ela conta:

Hoje faço parte do Conselho Gestor de Saúde, do Grande Conselho Municipal do Idoso, trabalho na Câmara Municipal …tenho 3 netos, sou amiga da minha filha. Fiz as pazes com a vida e estou aqui contando minha história de amor e gratidão por São Paulo.

Diego também veio para São Paulo já adulto. Nascido na cidade de Mondariz … terra das águas minerais, castelo, fortaleza, fonte romana… província de Ponte Vedra, região da Galícia, Espanha. Aí estudou e trabalhou até 1951. Neste ano vem para trabalhar junto com o tio em Salvador onde fica até o ano de 57. Finalmente vem para São Paulo. Depois de passar por outros empregos é admitido no Banco Francês e Italiano para América do Sul S/A, na rua XV de Novembro. Pouco depois, em 1962, conhece Maria Vitória …de cinturinha, olhos azuis, totalmente família… e dia 1º de Dezembro fomos ao altar da Nossa Senhora do Ó, Matriz da Freguesia.

Dos primeiros tempos na cidade relembra que ainda não existia a avenida 23 de Maio pois ali era um córrego que vinha da Igreja do Paraiso, que foi demolida para construir a estação do metrô …com chácaras e hortas. Lembro que a água era a céu aberto até chegar na praça da Bandeira com a 9 de Julho… e sumir no Anhagabaú, nos encanamentos que já existiam…

As lembranças da Praça da Sé trazem as modificações por ela sofridas nos últimos anos e também as ligadas aos encontros da colônia espanhola. Diego relata:

Do lado esquerdo (da Praça) os edifícios que existiam desde a rua Santa Tereza foram derrubados, inclusive o do cinema Santa Helena muito frequentado …quando do projeto de fazer a estação Sé do metrô …que deu margem aos jardins superiores, com uma paisagem nova e moderna …Houve tempo que a colônia espanhola, todos os domingos se reunia no fundo da praça para conversar, etc e tinha no café Moka …o local de encontro. Frequentavam também a Pastelaria Modelo e a casa de comida “Um dois, feijão com arroz”, que era de espanhóis. Após o encontro havia a Santa Missa, todos os domingos na cripta da Cadetral, oficiada por um padre espanhol. Nos meses de julho, mais ou menos no dia 25, que é dia de Santiago Apóstolo – padroeiro da Espanha, havia apresentação da sociedade espanhola “Casa de Galícia” e depois a Santa Missa solene.

Neste trecho de seu relato vemos a presença forte e ativa dos emigrantes espanhóis que vieram, em diferentes épocas, para a cidade formando com outros grupos de imigrantes e migrantes o caleidoscópio de culturas que caracteriza a cidade de São Paulo.

Entre tantos sons da cidade Diego traz, como Álvaro, os característicos de uma agência bancária incluindo o das máquinas de contar células e seletora de moedas …muito barulhenta, tanto que eu usava um abafador nos ouvidos.

Recorda também as horas do relógio da praça da Sé, do Mosteiro de São Bento e …do carrilhão da Catedral da Sé, com seus 50 sinos. As sirenas dos carros do Corpo de Bombeiros, quando saíam do comando na Praça Clóvis, dos bondes, do apito dos guardas de trânsito e das britadeiras, na época das transformações urbanísticas na centro de cidade. Completa:

A cidade de São Paulo tem um som no subsolo do antigo Banco de São Paulo, hoje Espaço da Juventude na rua XV de Novembro, que é da água de um córrego existente …E barulhenta era a máquina de moer cana …para sair a famosa “garapa” no café Alhambra, que existe até hoje na esquina do Largo do Café com a rua São Bento.

Recorda ainda outros espaços importantes de seu cotidiano na cidade como o Mercado Municipal, onde fazia algumas compras antes de ir para casa na Freguesia do Ó, a Ladeira da Memória parte de seu trajeto diário na época anterior ao casamento, e o Viaduto do Chá onde na década de 60 era gostoso passear vendo as senhoras e senhores vestindo-se …como na Espanha, onde nasci e a garoa e do vale que se via em volta…

Acompanhando as lembranças dos lugares, os sons, os aromas e sabores dão mais vida ao relato, e Diego recorda do pão com manteiga e o café com leite da Leiteria Bancário, na rua da Quitanda …dos saborosos pastéis com caldo de cana da Pastelaria Modelo e, em vários pontos da cidade o cachorro quente e o churrasco grego…

Tantas lembranças deste centro antigo da cidade …lugar de fé, de encontros com os patrícios da longínqua Espanha, de trabalho e de lazer, de namoro… vida vivida intensamente, no Marco Zero da cidade de São Paulo, e que se mostra vibrante nos relatos de Diego.

Como poeta e declamador assim Fernando, nascido em Fortaleza em 1929, se apresenta. Sua viagem a São Paulo, a chamado da mãe doente, foi tumultuada por um incidente no qual ele e outro passageiro quase perderam o ônibus, depois de uma parada mais longa à beira da estrada. Tiveram que tomar um táxi para alcançá-lo, já na estrada. Devido ao nervoso por que passou diz que …minha primeira impressão de São Paulo foi péssima.

Apesar da primeira impressão não muito favorável ele, que mora ainda hoje na esquinas das avenidas Ipiranga com Rio Branco, refletindo sobre a cidade atualmente, e sua degradação, diz que …estas caminhadas nas ruas do centro traz as lembranças de quando cheguei em São Paulo …tudo era diferente mais humano.

De suas recordações dos espaços da cidade conta, com certo pesar, um fato ocorrido no Largo São Francisco quando foi convidado pelo Centro Acadêmico “11 de Agosto” a dar um recital poético. Fernando convidou muitos amigos e familiares para o evento, porém, no dia marcado, os funcionários da faculdade entraram em greve e não houve tempo de avisar ninguém.

Na porta da faculdade já tinha muita gente me aguardando …não tive alternativa, declamei no meio da rua, em atenção às pessoas que deixaram suas residências para prestigiar o meu trabalho que …foi coberto de êxito. Para mim foi a maior experiência declamar na porta da faculdade do Largo São Francisco…

Mas Fernando se mantém ativo e teve sua recompensa, pois participando de vários eventos da cidade …já ganhei várias medalhas, prêmios e diplomas. Faço parte do movimento “Viva o Centro” e do movimento “Pensamento Ecológico”.

José nasceu em São Paulo em 1930, numa família mineira de 5 irmãos. Suas lembranças da cidade são inúmeras das quais destaca: a participação do 4º Congresso Eucarístico realizado no vale do Anhangabaú em 1942 …a entrega ao povo da Catedral da Sé …no dia 25 de janeiro de 1954 …4º Centenário de São Paulo …e do parque do Ibirapuera …a entrega do metrô em 25 de janeiro de 1974 …a demolição do edifício Mendes Caldeira …e do cine Santa Helena.

Morador da Bela Vista, ele gosta de passear pelo seu bairro e pelo centro. Narra com detalhes históricos o percurso a pé pela cidade, registrando os diferentes sons de uma grande metrópole, do sons do trânsito, passando pelo das passeatas de grevistas, com tambores e cornetas, até o som do samba na quadra das escolas até raiar o dia…

Lembrando de eventos que marcaram sua vida: a festa de Corpus Christi …os paroquianos se reuniam na praça da Sé de onde saía a procissão percorrendo as ruas do centro …com encerramento da missa campal e a benção do Santíssimo …lembra das meninas nos seus uniformes – saia azul, verde ou marrom, conforme a escola, blusa branca …essas meninas cresceram e mocinhas usavam vestidos de fino gosto e saia na altura do joelho… dos bailes organizados por Francisco Petrônio, na Casa de Portugal, onde todos iam vestidos com elegância. Diz:

…também uma fotografia viva do Páteo do Colégio onde funcionava a central de polícia e um pronto socorro …garoto peralta que fui, passei no pronto socorro várias vezes. Na sala de atendimento os acidentados de natureza leve eram colocados numa cadeira de metal, e o médico e o enfermeiro faziam os curativos. Tenho em minha memória que devo ter sentado nesta cadeira por 3 ou 4 vezes.

Dos odores da cidade destaca o cheiro forte de gás da Usina na rua do Gasômetro.

Era uma redoma de aço e ferro armazenando alí sua produção. Pessoas com problemas de bronquite, asma e outras doenças do aparelho respiratório passeavam por lá …Atualmente esta redoma continua no local, mas foi desativada e tombada pelo patrimônio histórico.

Finalizando, ele declara seu sentimento em relação à cidade:

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São Paulo é dura, às vezes até irreverente, mas é benigna, acolhedora e contagiante. Quem toma conta destas plagas, e não a esquece jamais, é seu protetor – São Paulo – o apóstolo de lutas e vitórias.

Descendente de italianos de Carrara e Forli, e de espanhóis de Madri, assim se apresenta a próxima narradora:

Na pia batismal recebi o nome de Leonella Giovannini, que conservo até hoje …brasileira, paulistana, nasci no dia 20/11/1929, na rua Coronel Moraes…Pari

As lembranças dos sabores e odores levaram Leonella a infância vivida …em casa com quintal grande, com plantas, flores, árvores frutíferas e animais …mas certos cheiros se sobressaem …café coado na hora, goiaba, manga e mexerica cortadas… As flores eram diversas exalando um agradável perfume pelo ar, pricipalmente quando chovia …todos sabem que não há nada que se compare ao cheiro mágico da terra molhada…

As marcas da infância ficam para sempre …na infância adorava quando minha mãe cozinhava batatas com água e sal e deixava reservada …na frigideira grande colocava alho picado, cebola, pimentão vermelho e verde cortados em tirinhas e deixava dar uma leve fritura. A seguir colocava as batatas e tomates cortados em rodelas e despejava três ovos batidos, esperava um pouco …estava pronta uma deliciosa e perfumada fritada. Como espanhola também fazia um belo acebolado com manteiga no qual eram fritas morcela (chouriço) …dessa fritura exalava, além de outros, um acentuado aroma de erva doce. Até hoje, se fecho os olhos e imagino a cena, consigo sentir esse perfume.

Suas lembranças neste item são inúmeras e além dos odores e sabores familiares, sem esquecer do pão feito, no forno do quintal, pelo avô italiano Pedro, inúmeros outros misturam-se e aparecem no seu relato, como as famosas confeitarias, casas de chá e leiterias, ponto de encontros e flerte á época.

Os sons trazidos à lembrança são também os primeiros da infância, no Brás, os sinos nos pescoço dos cabritos e os “cabriteiros” vendendo leite nas ruas, do barulho dos animais no quintal e do “cantar sonoro” do canário belga …o sino das igrejas …a matraca dos vendedores de biju …a gaita dos amoladores de faca …o som do rádio, da marca Cacique …e um dos mais marcantes o do bonde …o cobrador …recebia o dinheiro e puxava uma cordinha, acoplada a um relógio com marcador, cujo som era “dim-dim”, e as pessoas faziam troça dos cobradores dizendo: – Dim-dim, dois pra a Light e um pra mim…

Suas lembranças trazem os cinemas, com pianistas tocando ao vivo antes do início da sessão, o comércio elegante da rua Barão de Itapetininga …parecia uma rua parisiense …das pessoas que trajavam-se com apuro. Recorda com detalhes os tecidos e modelos usados por homens e mulheres, os trajes adequados para os diferentes eventos sociais, as melhores lojas de tecidos como casa Hasson, Tecelagem Francesa, Dorella, o Empório Toscano e suas famosas capas de gabardine, Lassalvia e Etam de lingerie e roupas íntimas, entre tantas outras. Cita também a famosa mercearia Casa Godinho, fundada em 1888, até hoje em funcionamento na rua Líbero Badaró, onde seu pai é, ainda, um lembrado cliente.

Mercearia Casa Godinho
Praça da Sé – 1909

Conta minuciosamente os detalhes das roupas usadas e os bailes que …frequentava nos salões de baile do Pacaembu, Trianon e do Hotel Esplanada …o baile que mais me marcou aos 18 anos …os vestidos eram longos e os sapatos podiam ser forrados do mesmo tecido …ainda não existe “máquina do tempo” …mas se existisse escolheria o ano de 1950, quando eu tinha 20 anos, pois esse foi um ano dourado da minha vida!

Leonella, formada na escola industrial Carlos de Campos, trabalhou dos 16 aos 46 anos no Instituto Universal Brasileiro até sua aposentadoria e diz que …hoje, aos 74 anos, ocupo meu tempo livre fazendo pequenos cursos, assistindo palestras, visitando exposições e museus e me interessando pela sua vida, minha amada São Paulo!

Em 1938 nascia em Ponta Porã, em uma grande família de paí sírio e mulçumano e mãe brasileira e Adventista do 7º Dia, Maria da Glória.

Igreja da Consolação e prédio redondo

Casa grande, com quintal enorme, pomar com árvores frutíferas variadas, horta com fartura de legumes e verduras …um jardim cheio de cores e sons – zumbidos das abelhas, trinado de passarinhos – calor, sol, céu azul…

Desta infância traz ainda as lembranças da conversa, no inverno, perto do fogão de lenha, papai lendo livros de aventuras em árabe …a mais bonita era a historia de Antar, um herói negro, valente e forte. Vovó Laura (materna), mulher forte, ia para o campo montada num cavalo enorme (hoje eu acho que não era tão grande…) e controlava o gado. Era ela que matava ovelhas, carneiros e frangos com uma faca pontuda e muito afiada em golpe certeiro. Os muçulmanos, judeus e adventistas não comem carne de animal estrangulado, existe um ritual para sacrificar. Nunca fomos proibidos de presenciar a matança …era uma correria incrível, todos falando e correndo …enfim, era prenuncio de mesa farta e acolhedora.

É deste tempo também o cheiro do pão fresquinho, bolo, carne, aves, peixes assados, estou viva, estou em festa, forno aceso fico excitada, me dá vontade de contar, dançar conversar e convidar alguém para compartilhar …mais tarde na cidade grande, aqui em São Paulo, descobri que o cheiro da fome é mais forte, dolorido, desperta o apetite com agressividade. Quando aqui cheguei morava perto de Mercado Municipal, no edifício São Vito, decadente, mas não promíscuo…Naquela época o cheiro de alimento era uma tortura, estômago vazio, salivando de vontade de comer qualquer coisa… Então, quase corria para chegar à Ladeira Porto Geral, onde vendiam churrasquinho grego e um suco morno de laranja diluído com água…

Neste trecho vemos delineada a passagem de uma vida em família, calma e farta para momentos de dificuldades e solidão na cidade grande. A morte prematura do pai e a falta de preparo da mãe para gerenciar as lojas da família levaram a família à pobreza, mas …mamãe fortaleza, mamãe energia, mamãe sempre linda, olhos azuis e aparência frágil (mas só aparência) …criou os filhos na dura batalha sem esmorecer. Hoje ela tem 97 anos.

Outro episódio traz novamente a mãe que, com esmero e carinho, confecciona em renda verde malva …o vestido mais lindo que eu usei na minha vida …me senti a própria Cinderela, para sua formatura, momento vivido com as alegrias do 3º lugar na turma, e a agonia e tristeza pela perspectiva de não poder participar da festa.

Superando a fase difícil Maria da Glória trabalhou na Mesbla e …por fim fiz concurso e fui trabalhar no banco – Caixa Econômica do Estado de São Paulo …fui escolhida para ser secretária do presidente do banco, por ser comunicativa e alegre.

As suas lembranças marcantes, da vida adulta na cidade, estão ligadas a rua Direita frequentada diariamenta ao longo de seus 30 anos de trabalho, e a praça da Sé.

Praça, palco de manifestações, comícios reivindicatórios, comícios de candidatos a cargos eleitorais …ditadura, manifestações de estudantes, tão jovens, cheios de ideais …exército em prontidão, bombas de efeito moral, cheiro forte, fumaça, ardência nos olhos, latidos de cães, brucutus vomitando soldados …que puxavam, arrastavam, batiam, prendiam. Brasileiros contra brasileiros …correria, debandada …e depois o silêncio quebrado pelo badalar do relógio da igreja da Sé.

Considera a festa marcante, a festas das festas, ocorridas na praça a das Diretas Já …os gritos presos nas gargantas durante anos e anos de ditadura …gritos de júbilo …o Hino Nacional brasileiro lindo, cantado por Fafá de Belém …som inesquecível, som inebriante cheio de fé e esperança.

E o movimento dos “Caras Enrugadas”, precursor dos “Caras Pintadas” pelo pagamento do aumento de 147%, devido aos aposentados. Mas lembra também de épocas anteriores, década de 60, quando sentava com as amigas para lanchar nos bancos da praça, embaixo das majestosas palmeiras, e partilhar os sonhos …estudar, casar e ter filhos, um marido bonito, rico e muito bom …combinar passeios – Vamos ao cinema? Tomar um chocolate na leiteria Vienense?

Ao falar dos sons do centro de cidade, Maria da Glória nos apresenta, de maneira especial, um retrato fiel da vibração de São Paulo, de ontem e de hoje.

Rua Direita, rua Álvares Penteado, rua São Bento, e outras ruas do centro velho, são uma parafernália de sons, pregões das lojas: – Olha o preço, entre, entre. Aqui você acha de tudo, tudo mesmo, pelo menor preço … – Precisa de dinheiro? Aqui temos o menor juro e o prazo mais longo … – Olha o relógio moça, está bonito e barato…

Sons de cds piratas, músicas sertanejas, disquetes …cantores de Los Andes, com instrumentos de sopro melancólicos, batidas surdas, verdadeiro lamento …pedintes com vozes chorosas – Pelo amor de Deus, uma esmola! …a loja de discos com músicas num volume ensurdecedor …de repente a gritaria – Olha o rapa! e o barulho das bancas sendo desmontadas …a correria …a banda do Peru – bandinha conhecida que há mais de 20 anos acompanha as atividades do Sindicato dos Bancários …Mas o som mais gostoso que já ouvi …o velho realejo, manuseado por um velho homem que gentilmente falava: – Olha o futuro …pergunte sobre negócios, namoro e casamento- …eu parava, dava uma moeda e com o coração acelerado, na expectativa de jovem, recebia do bico do periquito um papelzinho, que dependendo do pedido era branco, azul ou rosa…

Completa dizendo:

Durante esses últimos 30 anos, morando, trabalhando no banco e como diretora do Sindicato dos Bancários e atualmente presidente da ABAESP …estou diariamente no centro velho. Para mim este pedaço de São Paulo é uma festa constante …as lojas, restaurantes, botecos e barzinhos, sons, ruídos, cores, é meu cotidiano …adoro andar no centro, me sinto alegre, participativa e com muita vontade de viver …a praça da Sé me fascina, me subjuga e sempre sinto vontade de dançar, rodopiando nela…

Moro em São Paulo, dos milhões de habitantes, das oportunidades, da concretização dos sonhos. Sinto a cidade como um útero gigantesco, acolhedor, de mãe … correspondo este amor com o amor de uma filha grata …orgulhosa. Quando recebi o título de Cidadã Paulistana me agigantei, voei na imensidão da metrópole …me integrei com tanta força no asfalto das ruas, no cimento e concreto dos prédios, nas árvores e flores dos jardins e parques … que me senti a própria São Paulo!

O amor por São Paulo, tão bem expresso na narrativa de Maria da Glória, foi uma constante deste grupo que se reuniu para reviver as histórias vividas no centro e berço da cidade. Como os outros participantes, Minerva declarou em seu primeiro depoimento:

Hoje é dia do meu aniversário! Setenta anos de amor por esta querida e amada São Paulo, que acolhe a todos que aqui chegam de braços abertos …Para você São Paulo, hoje em meus setenta e quatro anos todo o meu carinho…

Há setenta anos Minerva, filha de libaneses de Zahle e nascida em 1930 em Jaboticabal, descia com a família na estação Júlio Prestes. Passou a infância em Moema e aos 15 anos mudaram-se para Vila Clementino …uma rua calma e pacata, sem calçamento e iluminação. Nossa casa era a preferida para nossas reuniões, bate-papo e festinhas dançantes. Por incrível que pareça aos dezessete, dezoito anos todos nós jovens, inclusive os rapazes, brincavam na calçada de passa-anel, lenço atrás e telefone sem fio. Lembro-me dos carnavais …o corso na avenida Brasil e na avenida Paulista …brincadeiras sadias e inocentes, onde todos se divertiam …um dos meus tios nos levava em um clube do edifício Martinelli para brincar o carnaval … quanta saudades…

Uma de suas mais marcantes lembranças é a das festas do IV Centenário da cidade.

25 de janeiro de 1950, estavam todos no vale do Anhangabaú, minha família e eu, aguardando os festejos …ao cair da noite sobrevoa o vale um avião …repentinamente grandes holofotes iluminam o avião e começa a cair uma belíssima chuva e prata …triângulos prateados. Foi uma festa deslumbrante para uma jovem que contava apenas 20 anos …até hoje guardo na memória este momento maravilhoso.

Minerva casou-se e teve 3 filhos. Depois da separação dedicou-se à sua criação. Participou do coral da ACM e de inúmeras apresentações destacando uma, feita em 2002 final de um concurso, quando ficaram em 3º lugar …justamente na Sala São Paulo, antiga Estação Júlio Prestes, na qual eu desembarcara há quase setenta anos. Foi uma emoção indiscritível.

Trabalhei durante 27 anos no SSP/Detran, onde me aposentaram na compulsória. Mudei-me para o centro da cidade – Praça Júlio de Mesquita – …e em setembro de 2003 fui eleita presidente da Ação Local São João/Júlio de Mesquita e estou me empenhando ardorosamente na recuperação da nossa querida praça.

Pedro nasceu em 1927 na Espanha e veio ainda bem pequeno para São Paulo. Recorda da infância e da amizade entre os vizinhos …verdadeiros irmãos, que se identificavam …uma fonte perene de harmonia e paz. Lembra quando aos 4 anos, no carnaval de 1931 …mamãe tinha confeccionado uma fantasia de pirata e junto com meu irmão fomos com Zeca ( um vizinho) a um passeio, com autorização do papai, ao Parque Trianon para exibir nossas fantasias, que nos enchia de orgulho…

Relembra quando após a Revolução de 32 acompanhava a mãe pois …devido a escassez de gêneros alimentícios, o Estado fornecia uma cesta básica para cada família, havendo longas filas…

Mas no ano seguinte o pai, que já havia comprado um terreno na Vila Carrão inicia, com ajuda do irmão e dos amigos, um mutirão para construção da casa da família.

De onde eu venho?
Percurso de casa até o centro

Logo após mudamos, iniciando uma nova era para nossa família. Como o terreno tinha 520 m …papai fez um pomar que era sua adoração. Nesta altura, com 12 anos, tirei o primário e ingressei no Instituto Profissional masculino na rua Piratininga, Brás. Faltando um ano para diplomar-me pedi demissão para ajudar meus pais …fui admitido na 1ª indústria textil do bairro, iniciando o aprendizado de tecelão …seis meses e já tinha me formado como profissional com remuneração, para a época, das melhores profissões, para alegria de meus pais. Com 20 anos, trabalhando na mesma indústria, encontro minha cara metade …dois anos depois chego ao casamento que permanece …apenas 54 anos com amor, netos e bisnetos.

Reynaldo trabalhou desde os 9 anos e até os 14 foi engraxate, ajudou na feira, no açougue, foi marcineiro, aprendiz de ourives e em um jornal. Trabalhando de dia e estudando a noite, em 1961 vai trabalhar no Banco Itaú e segue carreira bancária por 30 anos.

Nascido em São Paulo em 1945, neto de italianos, e morador da Bela Vista desde o nascimento, fala com carinho do bairro. Remarca a festa da padoeira Nossa Senhora Achiropita em 15 de agosto comemorada com grande festa. Lembra dos inúmeros filmes rodados no bairro …das cantinas. Da infância relata:

Nesta rua 13 de maio lembro ainda de um senhor italiano que passava com várias cabras para vender o leite. Eu ficava no portão com a caneca na mão …depois era só atravessar a rua para ir buscar um pão bem quentinho na padaria Basilicata…

No bairro onde nasci, Bela Vista, cheiro, aroma e sabor não deixam de rodar nos ares …da fábrica de paçoca e pé de moleque …vinha aquele cheirinho gostoso de amendoim …o cheiro do café torrado do Café do Centro …na rua Martiniano de Carvalho uma fábrica de torrone …na avenida Brigadeiro Luiz Antonio a padaria Italdoce, hoje Confital, onde se fazia saborosos panetones e doces tipo italiano …o pão da Basilicata e o molho de macarrão da cantinas. À noite …o aroma da flor dama da noite nas casa da rua dos Ingleses e da rua dos Franceses.

Os sons da cidade são lembrados como dos vendedores de bilhete, o amolador de facas, as lambretas, o bonde …e não podemos esquecer a sirene da Gazeta e, ao meio dia, os sinos da Igreja de São Bento. Lembra do ruído de uma máquina, do tempo de ourives …Pla Pac …Pla Plac… quando ela subia e descia para estampar a figura da medalha …e da rotativa do jornal Shoping News e dos linotipos que ficavam na oficina …quando chegava a quinta feira começava a correria porque …até sábado tinha que rodar o jornal …e no domingo pronto para a entrega nas residências. Era um barulho tremendo, mas a satisfação quando chegava no final e tinha dado tudo certo …e o barulho passava despercebido.

Reynaldo casado há 30 com Nadie e um filho, encerra seu relato dizendo:

Hoje aposentado faço parte da CONSEG – Conselho de Segurança do Estado, do bairro da Bela Vista. Terminando quero agradecer aos imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, alemães, japoneses – enfim a todas as raças que vieram fazer com que esta cidade se tornasse uma das mais belas do mundo.

Após tão vibrantes e detalhados relatos pouco nos resta acrescentar, eles expressam toda dinâmica, barulhenta, caótica e incomparável vida da metrópole. Os narradores viveram e vivem com paixão, o cotidiano de São Paulo. Deixam também um exemplo de participação cidadã na vida da cidade, pois a maioria participa de alguma ação para sua melhoria, que comunidade de origem para alguns se tornou a comunidade de destino de todos.

Confraternização/Encerramento – 06/06/2004

O Projeto Memória Viva – Cidadania Ativa foi realizado em parceira pela SMS/ Cogest – área temática de saúde do idoso – e o NEPE/PUC-SP e com patrocínio da Novartis Biociências S.A no período de outubro de 2003 a junho de 2004. O espaço para realização dos encontros foi cedido pela ABAESP – Associação dos Bancários Aposentados do Estado de São Paulo. As coordenadoras agradecem a colaboração de Zenaide Silva, Renato Nogueira e Jandira dos Santos na organização dos encontros e digitação dos textos.

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