Medo de quê?

O problema de segurança que tanto preocupa as pessoas hoje em dia, me parece, não era algo muito preocupante na Ribeirão de 1943. Já falei em algum lugar que eu, aos nove ou dez anos, muitas vezes me levantava de madrugada pra tocar os sinos da igreja e chamar as velhinhas pra missa das seis. Saía de casa antes das cinco e meia, quase sempre no escuro e sozinho.

Waldir Bíscaro

 

As quermesses lá do Asilo Padre Euclides, no alto da cidade, aconteciam sempre no mês de setembro. O asilo se localizava na quadra encostada ao cemitério e era no espaço que dava para a avenida da Saudade que se montavam as barracas da quermesse, a roda gigante, o trenzinho e outras atrações. Em tempo de vacas magras, no início dos anos quarenta, aquela quermesse era sem dúvida o maior evento popular de Ribeirão Preto.

As maiores empresas locais é que patrocinavam a montagem e o funcionamento das diversas atividades da quermesse. Essas mesmas empresas designavam seus empregados para os trabalhos nas várias barracas.

Meu pai, por exemplo, trabalhava na firma do Diederichsen – Antigo Banco Construtor – e às vezes cabia a ele cuidar da barraca da “pesca milagrosa” e eu, estando por lá, me fazia de auxiliar da pesca e me achava o próprio rei da cocada.

Mas em 1943, aos meus nove anos, meu pai não foi escalado. É que naquele ano ele sofrera cirurgia da hérnia. Lembro-me que ele permaneceu quase um mês no hospital e outro tanto em casa, medicininha avançada aquela…

Era quase certo que nesse ano eu não iria à quermesse, mas, em um domingo, o Leo, meu amigo e vizinho, me convidou a ir com ele e seu pai até lá. O pai do Léo trabalhava em uma barraca patrocinada pela Cervejaria Paulista que fabricava a famosa NIGER, uma cerveja preta encorpada que, infelizmente, desapareceu.

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Falei com meu pai sobre o convite do Leo e ele concordou, mas pediu que voltasse antes das onze. E pra lá fomos nós.

Acontece que a dupla criança e quermesse é um combinado difícil de se alinhar e o tempo foi passando e quando o relógio marcou as onze, fiquei preocupado e procurei o Léo. Insisti que já estava na hora de voltar, mas o pai dele teve algum problema pra resolver e pediu que eu esperasse só mais um pouco e logo mais voltaríamos todos juntos.

O tempo passou e quando chegou à meia noite, perguntei de novo e nada. Achei que não devia esperar mais e falei com o Léo que eu ia me mandar. Ele não acreditou que eu tivesse coragem de sair naquela hora, sozinho e caminhar até a Vila Tibério, a quase três quilômetros de distância. Era muito perigoso, ele falou.

Eu achei que devia ir e fui. Já tinha esperado demais.

No começo, senti um pouco de medo. Não havia ninguém nas ruas que eram até bem iluminadas. De vez em quando passava um “carro-de-praça”, uma pequena carruagem de quatro rodas pneumáticas, puxada por dois cavalos.

Desci a Avenida das Saudades, segui pela Saldanha Marinho, entrei na Duque de Caxias, atravessei a linha da Mogiana – o guarda-linha me viu, mas não falou nada e fui em frente – subi a Avenida Antártica e peguei a Rodrigues Alves, até minha casa.

Só sei que cheguei em casa quase uma hora da madrugada, meu pai me atendeu e lhe expliquei o ocorrido. Ele concordou comigo e eu senti sua aprovação.

Era assim o seu Tonico. Não desperdiçava energia bronqueando, só pra mostrar autoridade. Ele me passava segurança, diferente do que acontecia com a maioria de meus colegas que até contavam como vantagem as surras que levavam de seus pais, por qualquer motivo.

Seu Tonico nunca encostou as mãos em mim. Hoje, percebo que minha ojeriza por toda forma de autoritarismo está no sangue e posso me lembrar com orgulho de meu velho, um simples operário, muito sábio.

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