Janela para vida

Janela para vida

Na janela, uma volta ao passado através das memórias da vida que dão sentido à velhice contemporânea.

 

Marie Claire Blatt (*)

Estou sentada na janela do meu quarto que fica no segundo andar de um prédio de esquina. Da minha janela posso ver as palmeiras cujos galhos se movimentam graciosamente acariciados pelo vento.

Observo o céu cinza e a rua onde, na calçada, crianças se divertem num tom alto e alegre. E de repente, num turbilhão de recordações, me vejo novamente na Vila Mariana dos anos 50.

Estou sentada na escadaria de entrada do sobrado branco com persianas verdes. O número é 740 da Rua Vergueiro. As grades de ferro me separam da rua. Eu choro. Choro porque hoje não tem lanche. A casa do lado, geminada, abriga uma família de libaneses com cinco crianças com quem adoro brincar. Mas hoje não estão em casa e o lanche tão esperado por mim não irá acontecer.

-“Marcsú”! É a voz da minha mãe “venha rápido, os pintinhos estão nascendo”.

Enxugo as lágrimas e subo rapidamente as escadas. Entro na grande sala de estar e caminho em direção ao corredor. Atravesso a cozinha e abro a porta que dá para o jardim comprido e estreito onde se avista um pequeno limoeiro e um grande abacateiro. Meu pai usou parte deste jardim para fazer criação de galinhas. Eu me divirto. Quase no final há uma casinha de madeira parecida com a casa de cachorro, mas é a moradia de Coroco. Coroco é uma galinha choca ruiva com crista vermelhinha. Ela fica lá chocando o dia todo. Só sai para beber água e mal bica o milho que meu pai deixou. A casca dos ovos está rompida e os pequeninos estão se debatendo para sair e enfrentar o mundo. Amanhã serão sete bolinhas amarelas piando e saracoteando. E lá estamos minha mãe, meu pai e eu admirando a magia da natureza.

O barulho das maritacas posando em bando nas palmeiras me faz voltar aos dias de hoje. Gosto de ver estas ‘manchinhas’ barulhentas ornar e se misturar ao verde dos galhos. Uma maritaca se aventura e cruza a linha da janela que está aberta. Eu permaneço imóvel para não assustar a criaturinha que percebe não estar em seu habitat. Subitamente se estressa, mas logo encontra a saída e voa em direção aos amigos. Esta visita inesperada me faz sorrir, pois me recordo que certa vez alguém disse “quando um pássaro selvagem entra pela janela numa residência, significa bom auguro”.

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Lembranças voltam… Ouço um barulhinho e corro até a janela da sala de estar.

– Compra e venda, compra e venda”. É o Sr. Moises que passa duas vezes por semana na minha rua. Com a cabeça cheia de fios prateados e barba por fazer, Sr. Moises está sempre com o mesmo terno cinza empurrando a carroça repleta de coisas interessantes que ele recebe das pessoas que não as querem mais. Eu aceno da janela e ele sorri. Às vezes ele para e me mostra algumas curiosidades que ele carrega. Nunca respondeu as minhas perguntas. Toda vez que ele para, tira um lenço meio sujo do bolso, passa na testa suada e guarda de novo, olha para mim e sorri.

Sr. Moises nunca está triste.

Gosto de ficar na janela da sala que dá para rua. Aí vem também o Firmino, afiador de facas e tesouras. Ele tem um carrinho de mão onde está a roda que afia e tem também outros utensílios. Uma vez ele me contou que veio do Nordeste e que lá faz muito calor. Firmino é casado e a esposa trabalha no açougue do outro lado da rua, na Rua Domingos de Morais. Ela é caixa e faz a contabilidade de todo dinheiro que entra. Eu a vejo conversando muito com Julinho, o sorveteiro, que é vizinho dela e que faz sorvetes de vários sabores. Julinho me conhece e, de vez enquanto, me dá uma casquinha de chocolate de brinde.

Din din din” é o som do bonde aberto que passa. Há alguns dias a vizinha me convidou para ir com as crianças na matinê do cine Cruzeiro, que fica no Paraíso. Fomos de bonde aberto. Não tinha muitos passageiros e foi bem divertido. De manhã cedo e de tardezinha, o bonde fica lotado e tem pessoas que até se penduram no estribo. Isto me assusta; parece que o bonde vai cair do lado.

O céu está cada vez mais fechado. Uma chuva fina começou a cair e logo irá escurecer. As maritacas desapareceram. Os galhos das palmeiras ficaram mais verdes. Fecho a janela sorrindo com a lembrança do Cine Cruzeiro da Vila Mariana que foi palco do primeiro encontro com o meu primeiro namorado, o grande amor da minha vida, o marido que já se foi.

A campainha soa, pego a minha bengala e vou abrir a porta. É minha netinha que veio me visitar!

 

(*) Marie Claire Blatt, 79 anos, natural de Paris, França, entusiasta da vida e eterna estudante. É contadora de suas próprias histórias e crônicas, musicadas, que apresenta para proporcionar lazer às pessoas da terceira idade. Participou da Virada da Maturidade 2016/2017. Pertence ao grupo de danças Israeli da Unibes que se apresenta no Festival Karmel do Clube Hebraica e em outros eventos. Também faz parte do Coral. Frequentou o Curso de Jornalismo, Repórter 60+ para se reciclar e melhorar a expressão verbal e escrita e, assim, poder ser útil. E-mail: [email protected]

 

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