Homem é tudo igual

O telefone tocou passava da meia-noite. Do outro lado da linha, a inconfundível voz de um dos maiores nomes da música popular brasileira exclamou: “Descobri! É ‘gestatório’!”. Era a palavra que faltara em meio à entrevista realizada na véspera para se referir à liteira que serve para transportar o papa em ocasiões solenes: “Cadeira gestatória”. Chico Buarque é um escritor e compositor obcecado pelas palavras. Uma obsessão que o persegue durante seu processo criativo.

Fernando Eichenberg / Fotos João Wainer

 

Avesso a religiões e outras crenças, suas bíblias são os volumes de dicionários; as orações, suas canções e romances. “Gestatório” tem, como primeira definição, “relativo a gestação”; e “gestar”, no sentido figurado, é “trazer e levar palavras”. O verbete tem tudo a ver com o inquieto personagem, que confessa sentir uma “sensação desagradável” quando está “parado”, seja na música ou na literatura. Três anos após o lançamento do best-seller Budapeste e oito anos passados desde o lançamento de seu último CD, Cidades (1998), o ex-estudante de arquitetura volta ao “urbanismo cultural” e põe na praça um disco chamado Carioca.

Muito próximo de chegar aos 62 anos (no próximo 19 de junho), Chico também tem dificuldade em ficar fisicamente parado. Além de jogar peladas três vezes por semana no seu campo no Rio, defendendo as cores de seu time, o Polytheama, ele é um veterano caminhante. Em suas andanças pelo calçadão do Leblon e de Ipanema ou como um aplicado flâneur nas ruas de Paris, assobia novas melodias, cria versos e imagina o desenrolar das histórias de seus romances. Uma das dificuldades que enfrenta é quando o interrompem no meio do caminho: “Não posso dizer que estou trabalhando, porque ninguém vai acreditar. Então digo que estou me exercitando, que meu personal trainer está vindo atrás e não me deixa parar”, diz, rindo.

Na tarde de uma quarta-feira da primavera européia, no entanto, Chico Buarque permaneceu sentado numa cadeira da sala de seu apartamento em Paris por exatas duas horas e meia (com pausas para buscar água na cozinha ou ir ao banheiro) para falar ao gravador da Trip. A conversa, entre momentos mais graves e outros bem-humorados, discorreu sobre criação, música, literatura, política, futebol, mídia, arquitetura, psicanálise, sexo, drogas e hip hop.

Nesta edição a Trip debate a importância que uma boa relação com o lugar em que moramos e com a nossa cidade tem para a felicidade de cada um. Você estudou arquitetura na USP. Você acha que teria sido feliz como arquiteto?

Eu sei que não seria um bom arquiteto. Às vezes fazia um trabalho de estagiário em escritório de arquitetura, e eu borrava tudo com nanquim, ficava uma porcaria. Eu não tinha gosto pela coisa técnica da arquitetura. Na verdade, não tinha talento para isso. Fui para a arquitetura por exclusão, não sabia para onde ir. Pensava “vou ser escritor”. Mas não adianta estudar letras, tinha de ter uma profissão. Nenhum escritor vivia de ser escritor. Meu pai era professor, os outros escritores tinham outra profissão. A exceção clássica era o Jorge Amado. Eu não ia ser advogado, nem médico, nem engenheiro, nem administrador, e fui para arquitetura, que tinha alguma coisa a ver com arte.

Teu último romance tem o nome de uma cidade e teu CD anterior se chama Cidades. De qual cidade você mais gosta e por quê?

Eu gosto do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e moro, mesmo, há 40 anos. Fui com dois anos para São Paulo, estive em Roma, mas com 21 anos voltei para o Rio para fazer um show e fiquei. É a cidade onde sei morar melhor. Cidade não é só gostar, tem de saber morar.

Você já disse que durante muito tempo resistiu à idéia de ser carioca. Eu sempre me senti carioca, o que acho meio chato é a coisa do bairrismo, de “ah, sou carioca”.

Não me sinto um carioca da gema, do chopp em bar, até já fiz isso muito. Mas essa coisa do cariocão não tem muito a ver comigo, da mesma forma que acho paulistice chata, baianice chata, mineirice chata.
“São Paulo é detestável, um desastre, a cidade que não deu certo. Estou falando da arquitetura, do urbanismo…”

E São Paulo? É uma cidade onde não gostaria de morar. Mesmo porque a cidade hoje tem muito pouco a ver com a São Paulo da minha infância. Eu era criança e ia para o Rio todas as férias. E, além de ter a família, os primos, a praia, quando chegava no Rio tinha sempre a sensação de que estava chegando numa cidade grande. Quando chegava, geralmente um tio ia me buscar e eu vinha pela beira-mar vendo aqueles prédios todos, aqueles anúncios luminosos. Era uma coisa assim de estar chegando à capital, à metrópole. Quando voltava para São Paulo estava voltando para uma cidade de província, uma cidade quase de interior. A rua onde eu morava – que hoje é uma rua muito chique, cheia de lojas de grifes, a Taiarana, que virou a Vittorio Fasano [onde fica o hotel Fasano] – era uma rua de terra, a gente jogava futebol ali. Hoje vou para São Paulo e não conheço mais a cidade. Não sei andar em São Paulo. Se me derem um carro, não vou saber sair dirigindo.

É uma cidade que, hoje, você não aprecia?

Eu tenho laços afetivos com São Paulo, amigos lá, mas a cidade é um desastre. Era uma cidade amável nos anos 50, se podia gostar dela. Hoje em dia acho impossível alguém gostar. Estou falando da cidade, da arquitetura, do urbanismo. Se vai falar da vida noturna, cultural, dos restaurantes, hotéis, médicos, aí é muito boa. Mas a cidade é detestável. É um desastre, é a cidade que não deu certo. Lá no Rio, às vezes dá no noticiário “temporal em São Paulo”, e aí vêm aquelas imagens da marginal. Não se pode viver assim, engarrafado.

Como foi sua relação com a análise?

Não me dei bem com a psicanálise. Fiz três vezes e larguei as três. Uma acho que era junguiana, outra freudiana, nem lembro mais. Não gostei, não me dei bem. Antidepressivo nunca tomei. Remédio é só para dormir, em último caso. Evito me viciar nessas coisas. Tomo às vezes, quando preciso, um Dormonid. Mas se puder não tomo nenhum e bebo vinho. Com um vinho e mais uns placebos, umas besteirinhas, e mais umas idéias na cabeça eu consigo dormir. Mas é difícil. Eu prefiro evitar ficar dependente. Mas a seco não dá para dormir, simplesmente não dá, você deita e não consegue. Não sei como se faz para dormir.

Você já teve depressão?

Depressão, depressão, não. Talvez eu não seja a pessoa mais feliz do mundo, sei o que é angústia, mas não sou uma pessoa deprimida e nem dada a depressões. Angústia criativa eu sei o que é. Nas três vezes em que entrei para a psicanálise foi um pouco por isso, assombrado por um período de infertilidade criativa. Não conseguia fazer nada, e aquilo foi me angustiando, e aí entrava na análise. Por algum motivo, alguma hora eu começava a fazer música, mas não acredito que isso se devia à análise. Quando eu começava a fazer uma música ou algo assim eu me dava alta. Hoje lido melhor com isso. A experiência ajuda, você se diz “paciência, isso é normal”. Você passa por períodos mais brilhantes e outros mais opacos.

Durante algum momento de sua vida já passou pela sua cabeça a idéia de se matar?

Não, nunca. Gosto muito da vida, não quero morrer, não. Com tudo o que há, eu quero viver, viver bastante. E viver bem. No futebol eu já anunciei que eu iria pendurar as chuteiras em 2022. Anunciei no campo. Até vai ter uma festa, o pessoal quer fazer um churrasco. Mas isso já faz alguns anos, e agora estou achando que 2022 é cedo, vou estar com 78 anos. Estou com vontade de adiar um pouco [risos]. Você podendo fazer algumas coisas boas até mais adiante dá para viver.
Retratos em branco e preto: abraço em Bob Marley, antes de pelada no Rio, em março de 1980. Abaixo, caros amigos: Manuel Bandeira e os parceiros Tom Jobim e Vinicius de Moraes. E no exercício de dois hobbies, o futebol de botão e o bar

Qual é a música?

A música se chama “Subúrbio”.

Você teve alguma obsessão durante a criação de Carioca, seu novo disco?

É um trabalho obsessivo. E cada vez mais. Para você começar a escrever uma canção não precisa de um motivo forte. O motivo às vezes não é forte em si, mas acaba se tornando forte pela obsessão. “O que eu faço com isso? Tenho de fazer uma música.” Mas você não sabe por que aquilo apareceu na tua cabeça. E você não vai sossegar enquanto não transformar em canção, em verso. Eu lembro que a última música que fiz fiquei dois meses tocando, não vinha a letra, e era meio diferente, uma música meio espanhola. E acabou que não tem nada de espanhola. E ficava fazendo aquele desenho harmônico mil vezes por dia. Mudava uma coisinha no dia seguinte e regravava. É sempre uma coisa obsessiva. Trabalho obsessivamente.

E a música “Outros Sonhos”?

Pois é, para você ver, tem coisas também que vêm lá de trás, e emergem. “Outros Sonhos” vem de um mote que meu pai cantava. A música acho que é chilena. Depois fui descobrir que os versos foram musicados por um autor chileno, mas também por um autor argentino. Tem um tango do Carlos Gardel que diz a mesma coisa. Enfim, estes versos são anônimos: “Soñe que el fuego helaba, soñe que la nieve ardia, y por soñar lo imposible, soñe que tu me querias”. Meu pai cantava muito isso [repete os versos cantando]. Cantava muito, só quando eu era garoto. Mas, de repente, volta. Volta e começa a ficar te perseguindo, e fica um “tenho de fazer esta música”.

Você vai fazer um aquecimento para a turnê num show em Berlim, como parte dos eventos culturais da Copa do Mundo, e vai aproveitar para assistir a dois jogos da seleção brasileira. Qual você acha que deve ser a composição do “quadrado mágico” do técnico Parreira?

Eu não entendo nada de futebol, nada de tática. Eu quero ver os melhores jogadores ali, todos juntos. Mas tem o Ronaldo e o Ronaldinho. Kaká está muito bem. Adriano não está muito bem, mas pode entrar. O Robinho acho ótimo. Acho que o Juninho Pernambucano também pode jogar. O Edmílson devia jogar também, porque avança. Eu gosto de jogadores que vão para frente. A defesa fica cheia de buracos, mas aí é problema do técnico. Eu não sei, não entendo mesmo, gosto de jogar e de ver. De ver jogadas criativas, ver gol, os passes, os dribles. Gosto menos de ver defesas brilhantes, beques que atrapalham as jogadas do ataque. Para mim eles atrapalham o espetáculo.

O fato de ser um dos compositores mais importantes da música brasileira já influenciou na sua maneira de produzir? A responsabilidade atrapalha?

Não, porque na hora de produzir você sai do zero. Não sai do trampolim, do pódio. Você não está de salto alto. Você tem de estar descalço. As pessoas imaginam que o artista pensa nele o tempo todo. Que fica se olhando no espelho, se achando o máximo. E você age como uma pessoa normal, porque você se sente uma pessoa normal. E aí as pessoas dizem “tá lá o artista fingindo que é uma pessoa normal”. Quando vou escrever, não sou nada.

Você escuta rap?

Eu até ouço às vezes. E até ouvi, por dever de ofício, quando pensei no rap para “Ode aos Ratos” [do musical Cambaio, em parceria com EduLobo, e gravada no novo disco]. Depois desisti de fazer um rap, pensei “não, essa coisa já está um pouco vulgarizada, já está todo mundo fazendo, vejo até em anúncio de TV, não vou fazer rap, não”. Mas aí fiz essa embolada, que é um pouco um rap, um pouco falada. Uma coisa já antiga, nordestina, mas que tem a ver com a divisão do rap.

E a música eletrônica, o que acha dela? Já dançou ao som de um DJ?

Não sou muito bom de dançar. Aliás, uma vez eu dancei, mas foi num lugar em que não era preciso dançar muito. Não sei o que era. A pessoa que estava comigo reclamou que não era tecno, que era house, ou que era house e não era tecno. Eu não entendia nada daquilo. Isso foi aqui em Paris. Mas as luzes piscavam e você não precisava dançar. Meio que mexia assim [faz o gesto], e você olhando de fora via algo como robôs dançando. Se é assim, então tá bom, você não precisa ser um Fred Astaire para brilhar na pista. Aí entrei, dei meus passos e tudo bem.

Você tem iPod?

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Não, nem sei direito o que é isso. Eu ouço falar, mas não sou bom nisso. Não sei lidar muito bem com informática. Só sei o básico. Até hoje não consegui entender como se faz para gravar um CD. Tenho tudo lá em casa, mas aí quando fui fazer as músicas e tive de mandar para o Luiz Cláudio Ramos, que é o arranjador, tentei e não consegui. E aí recorri ao velho gravador cassete. Foi à moda antiga.

Telefone celular você usa pouco e de forma utilitária, mas a Internet se tornou parte de sua vida. Aqui em Paris e quando viaja eu sei que você freqüenta cibercafés. Como é isso?

Freqüento para saber notícias do Brasil, e sempre tem essa coisa de correspondência. Eu comecei a ter só por necessidade imperiosa, para troca de e-mails com os tradutores, quando começaram as traduções de Budapeste. Quando fiz Budapeste usava o computador como uma máquina de escrever, com o Word. Não tinha Internet. E aí passei a ter para isso, para o contato imediato. Antigamente, isso era feito por telefone, por fax, era complicado, e o e-mail facilita muito a vida. Mas também você perde um pouco de tempo ali. Antes, ficava jogando paciência, que era uma espécie de aquecimento dos dedos para começar a escrever. Durante todo o tempo em que fiz meu livro tinha esse ritual. E agora, em vez da paciência, tem o Google, sei lá, para fazer uma pesquisa, ver uma sacanagem.

E o que você acha do sampler no trabalho de criação musical?

Você está achando que vai me pegar, que eu não sei o que é sampler, né? [Risos.] Mas eu sampleei uma vez, também não sou tão bobo assim, não. Foi numa música chamada “Tempo e Artista” [1993], em que eu queria um serrote. Tentaram localizar um cara que tocava serrote em São Paulo, mas parece que já tinha morrido. E a referência que tenho do serrote é a introdução de “Ne me quitte pas”, do Jacques Brel. E aí o que nós fizemos? Sampleamos a introdução de “Ne me quitte pas”. Nessa você não me pegou.

Já passou pela sua cabeça trabalhar com outras pessoas para se aventurar em outros caminhos musicais?

Eu tenho impressão de que não faço tudo sempre igual [risos]. São 12 músicas, 12 canções bem diferentes. Com tratamento orquestral diferente para cada uma. Cada uma é uma história à parte, com exceção de duas músicas que são bem coladas, porque a temática é a mesma. Uma é a continuação da outra. “As Atrizes” e “Ela Faz Cinema”. Mas assim mesmo são diferentes. Uma é um choro-canção, outra é uma bossa nova.

Tem alguma crença?

Não, nada. Sete anos em colégio de padre foi bom para não gostar muito de Igreja. Eu não gosto de nada, sempre achei meio esquisito. As minhas lembranças de Igreja hoje são sempre muito sombrias. Um dia, em Roma, minha mãe conseguiu uma audiência – não particular, claro, mas uma audiência restrita, com umas 100 pessoas – para ver o papa. Quando apareceu o papa, o Pio 12, fiquei com um medo dele, daquele velho. Ficamos numa sala, e aquele cheiro de incenso que me enjoa, e esperando, esperando, e em pé. E a minha mãe, que é católica – meu pai, é claro, não estava ali –, levou os sete filhos para ver o papa de perto. Depois de sei lá quanto tempo, apareceu o papa numa… não sei como se chama esta cadeira, tem um nome em latim, depois eu vejo. E ele passando carregado pelos soldados da Guarda Suíça. Ele com aquela batina branca, sendo carregado, cheio de almofadas brancas, e aí minha irmã mais nova falou alto “a papa é folgada, não é?” [risos]. Foi a única coisa que me relaxou. Enfim, eu me afastei completamente da Igreja. Já perdi a fé lá na escola de padre.

Você diz, mesmo assim, ter tido uma experiência positiva no trabalho com a Organização de Auxílio Fraterno.

Isso era bacana. Eu tenho conhecidos, amigos, que são padres da igreja progressista, mas sempre achei meio esquisito. Não acredito muito que eles acreditem naquela coisa da Igreja, nos dogmas. Mas esse padre André, canadense, levava a gente para dar cobertor e sopa para mendigos ali na Estação da Luz. Lembro de chegar lá e os mendigos ficarem assustados. A gente ia chegando como se fosse se aproximando de índios. Esse padre era legal. Lembro que quando chegou lá só falava francês, e a gente achava legal porque ele jogava vôlei junto com os alunos. Eu comecei a ensinar português para ele. Tinha a manchete no vôlei, e eu dizia “ô, a punheta, padre, bonita a punheta” [risos]. Eu ensinei português para o padre e ele me ensinou a ver os mendigos na Estação da Luz. Mas hoje não tenho religião nenhuma, não gosto de religião.

Atualmente acha que falta romantismo nos relacionamentos?

O beijo e o sexo ficaram fáceis demais, perderam o valor da conquista, como você disse uma vez? Isso já existia. No pós-pílula, anos 60 e tantos, já era assim. Eu não peguei isso na minha formação sexual, e é uma pena, gostaria muito de estar me formando sexualmente agora [risos]. Naquela época, as primeiras experiências sexuais já eram mais tardias do que hoje porque você tinha menos informação. Hoje, um garoto de dez anos está sabendo o que um garoto de 15 daquela época não sabia. E a formação sexual se dava com prostitutas ou com empregadas domésticas, que faziam um pouco prostituição também. No meu caso foi isso, minha primeira mulher era uma empregada que dava… ela não dava, cobrava, baratinho até. Era a empregada de um amigo da turma, que tinha essas liberalidades. A gente sabia, e tinha aquela fila [risos]. E depois, as prostitutas e tal. Namoro não chegava às vias de fato. Eu tive várias namoradas com quem rolava uma forma qualquer de sexo, mas incompleto. Já depois, nos anos 60, eu já com 20 anos, começou uma certa liberação. Então, que bom que a questão é mais aberta, menos traumática, menos hipócrita. O que me preocupa é que às vezes parece que há um certo enfado, que não existe mais a vibração que existia pela própria facilidade com que as coisas são obtidas. Pode ser. Mas pode ser impressão minha.

Você já tomou Viagra?

Eu sou contra essa coisa de dependência, tenho medo disso. Não sou contra Viagra, não, porque provavelmente eu vá ter de recorrer a ele. O que eu acho um pouco preocupante é esta idéia de ter um Viagra sempre à mão para facilitar as coisas. E tem gente nova que toma por medo de fracassar. Isso pode se tornar um problema, você vai precisar de Viagra para ficar de pau duro sempre. Pode até fazer uma experiência, mas criar mais essa dependência… queria não. Não sei, estou falando isso hoje, amanhã pode ser diferente.

Você já brochou?

Claro que já. Todo mundo já brochou, menos o Ziraldo [risos]. Ele diz que nunca brochou. Isso faz tempo. As pessoas falam muitas coisas. Tem outro que falou que teve mil mulheres. Eu digo: “Bom, mas, então, não foi bom nunca, para comer mil”. O cara não é velho, tem vinte e poucos anos, e comeu mil. Mesmo que tenha comido uma por dia… Não acho uma vantagem comer mil mulheres.

Você já foi cantado por homens?

Já fui cantado por homens. Não foi adiante [risos]. Eu achei graça até. Era garoto, recebi uma proposta mirabolante. Achei engraçado. Quando eu era garoto talvez achassem que eu pudesse ser veado, eu era um menino atraente. Mas nunca fui veado, não. Pensando bem, já faz muito tempo que não tem um homem que me faz uma cantada.

“Nunca fui na heroína, nunca me piquei. Foi o básico: fumei, cheirei, tomei ácido… e larguei isso tudo. Maconha ainda posso eventualmente fumar aqui e ali”
Como foi sua experiência com as drogas?Experimentou um pouco de tudo?

Não experimentei tudo. Nunca fui na heroína, nunca me piquei. Foi o básico: fumei, cheirei, tomei ácido. E larguei isso tudo. Na verdade nunca fui um bom maconheiro. Eventualmente posso até fumar. Por exemplo, já me foi recomendado para dormir, eu tenho esse problema de insônia. Mas não dá certo comigo. Não me dá leseira, nem larica. Me deixa excitado. Aí eu preferi a cocaína, mas parei também, parei há muito tempo. Maconha ainda posso eventualmente fumar aqui e ali, não vejo muito mal. Mas não sou adepto.

Você é a favor da legalização de alguma droga?

Sou. E cada vez mais. No Brasil, nos países pobres principalmente, a quantidade de vítimas que o tráfico de drogas faz é muito maior que a de vítimas das próprias drogas. No Brasil, no Rio de Janeiro, moleques de nove, dez anos já estão cheirando cocaína, porque manejam, vendem cocaína. Envolve às vezes uma quantidade muito grande de crianças, adolescentes, acaba com a vida dessa gente, morre gente pra burro. Fora a violência toda que o próprio tráfico vai desencadeando. É claro que você não pode pensar em liberar abertamente o consumo de drogas se não tiver um interesse internacional. Senão, cria-se um problema. Você pode ir a Amsterdã e fumar sua bagana e tal, mas não pode sair de lá com o negócio. Se produzissem legalmente cigarros de maconha, se fossem vendidos nas tabacarias, no Brasil, como aliás digo numa música, não vejo que o dano… quer dizer, haveria, claro, um problema de saúde pública, como com o cigarro, como com as drogas farmacêuticas, o consumo de álcool.

Como é sua relação com a política hoje?

Você já disse experimentar um certo fastio da política. Não vejo grandes novidades na política. Nem vejo muito espaço para grandes mudanças, sinceramente. Já não alimentava grandes ilusões de grandes mudanças com o governo Lula. Achava bonito isso, de ele ser eleito. Bom para o país um operário ser eleito e chegar à presidência da República. Mas também não achava que íamos ter transformações profundas na sociedade. É difícil. E agora ficou provado que é mais difícil até do que se imaginava.
Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC]… mas qualquer um vai no jornal e manda que o Lula é um merda. Se os candidatos forem Lula, Alckmin, Garotinho, voto no Lula”

Crises do mensalão, CPIs sobre corrupção, a queda do ministro Antonio Palocci, eleições se aproximando… Como você vê esse momento do Brasil e do governo Lula em particular?

Não vejo com nenhuma satisfação especial. Não é um assunto que me entusiasma, não. Mas, enfim, fazer o quê? Podemos falar disso também, até porque as pessoas estão muito exaltadas. Não sei por que as pessoas estão tão exaltadas assim. A argumentação política cedeu lugar a ofensas pessoais, e parece que isso vai se agravar nestes meses que vêm por aí. Não há muito argumento. Porque no fundo, no fundo, honestamente, não vejo como um próximo governo, com quem quer que seja eleito, possa ser muito diferente desse governo Lula, assim como o governo Lula não foi muito diferente dos governos que o antecederam. As notícias de corrupção, mensalão estão na ordem do dia porque são mais recentes, mas elas também repetem práticas similares de governos anteriores. Todo mundo sabe disso. Claro que o governo do Lula é mais vulnerável hoje porque é a vidraça, porque o próprio PT ajuda a jogar pedra na sua vidraça, ao contrário dos partidos mais conservadores, que, por mais que se debatam lá dentro, não saem atirando uns nos outros. Eu fico vendo este pessoal do PSDB e do PFL indignados na TV. Peraí, vamos falar sério, né? Vocês não podem estar tão indignados, surpresos com o nível de corrupção, que não é maior do que foi no governo anterior. Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC], que é nociva, na Constituição. Todo mundo sabe o que aconteceu, as falcatruas, as tentativas bem-sucedidas de abafar CPIs. Então fica reduzido a quê? O sujeito gosta deste ou gosta daquele. Ou tem simpatia ou alguma vantagem pessoal a levar com governo tal. Eu não tenho isso, não quero proximidade nenhuma com poder nenhum. Mas eu fico um pouco espantado com o grau de agressividade das pessoas. Eu conheci o grau de agressividade do PT, sei como é. Eu já falava isso, tem muito chato neste PT. Ficam enchendo o saco da gente, enchendo o saco dos artistas, cobrando isso e aquilo. Isso acho até que vai acabar um pouco, porque acabou a idéia de que o PT é um partido superior aos outros. Agora, também não vejo por que nesse clima que se instalou no país as pessoas se sentem no direito de ofender o Lula, de enxovalhar. Qualquer um vai para o jornal e manda “e o Lula?”, “é um merda”, “é um bosta”. As pessoas não gostam que se diga, mas isso evidentemente traz um preconceito de classe muito forte. São pessoas que não admitem, até hoje não engolem o fato de o Lula ter sido eleito, ter ocupado o Palácio da Alvorada, ele com a dona Marisa. Então, se na próxima eleição os candidatos forem o Lula, o Alckmim, talvez o Garotinho e uma dissidência à esquerda, eu voto no Lula até por isso. Não posso dizer que estou satisfeito com o governo dele, mas não vejo vantagem nenhuma no governo voltar às mãos do PSDB e do PFL. E, se o Lula for reeleito, acredito que ele, ao contrário do Fernando Henrique, possa fazer um segundo mandato melhor do que o primeiro. Até porque estará livre de uma porção de malas e de gente que atrapalhou. Ele vai ter de governar mais, escolher as pessoas, estar mais atento, mais presente. Mas não gosto da idéia de ele sair escorraçado, pela porta dos fundos, as pessoas xingando, quando não fizeram isso com o Fernando Henrique, nem com o Collor ou o Sarney.

A crítica da imprensa já te incomodou no passado, ao ponto de afetar sua produção. Como você lida com isso hoje?

Isso teve mesmo. Nos anos 80 foi barra-pesada. Você cansa, né? Tomando muita porrada, você vai perdendo a vontade de se expor a mais porrada. Eu tinha de ler o Jornal do Brasil com capacete, porque tinha porrada em tudo que era seção. Até a seção de gastronomia dava porrada. A Folha de S.Paulo, numa época, também era uma coisa barra-pesada. Isso, durante uns dez anos, foi muito chato. Principalmente uma certa imprensa paulista muito, muito agressiva. Depois melhorou um pouco. Hoje, não sei. Às vezes tenho a intuição de que algo está se armando [risos], que estão ali atrás, na esquina, espiando, “ele vai passar agora”, prontos para dar porrada. Mas as porradas também com o tempo vão doendo menos, você vai ficando um pouco mais calejado.

Você pensa na velhice, sente ela chegar?

Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos, tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é assim mesmo. Mas não estou me queixando, não.

Você tem medo da morte?

Medo não, mas quero distância [risos]. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e imaginação, com vontade de criar coisas. Noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, um livro. Formidável. Posso morrer assim.

O Tom Jobim disse que “a gente só leva da vida a vida que a gente leva”. O que você levará da sua vida? Não vou levar nada. Alguma coisa deixarei. Umas musiquinhas, uns livros, filhas, netos. Vou deixar umas coisas bonitas. Coisas que valeram a pena.

Na Trip # 144 o “Mito” solta o verbo. Fala também sobre o golpe de 64, o dia em que teve um pesadelo com Zeca Pagodinho, a vontade de ser o Capitão Marvel, suas inspirações misteriosas, a timidez em cima do palco, a morte da MPB, o medo do ócio e a saudade da boemia.

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Fonte: Revista TRIP – Disponível Aqui 

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