A finitude de cada dia

A finitude de cada dia

“Gostaria de acreditar que, ao morrer, vou viver novamente, que a parte de mim que pensa, sente e recorda vai continuar. Mas, por mais que deseje acreditar nisso, e apesar das antigas tradições culturais difundidas em todo o mundo que afirmam haver vida após a morte, não sei de nada que me sugira que essa afirmação não passa de wishful thinking” (Sagan, 2016, p. 253).

 

“A única verdade absoluta é a de que não existem absolutos”  (Irvin Yalom)

Livros e filmes são pérolas encantadas que guardam as secretas histórias dos dias extremos, começando no calor estonteante do sol até descansar no indecifrável escuro da noite.

Livros e filmes, quando presentados pelo amor – melhor ainda – trazem o mundo desconhecido desse obscuro objeto do desejo flertando, seduzindo nossos espaços “terrestres e extraterrestres”, do corpo e da mente: estranhas e deliciosas sensações que Deus, tão gentilmente e inventivamente, nos presenteou, quem sabe motivado pelo desejo de criação desses seres tão controversos, alienígenas que somos nós.

Assim foi quando li “Bilhões e bilhões, reflexões sobre vida e morte na virada do milênio”– Carl Sagan (1934-1996): para mim eram palavras que valiam mais que um milhão de diamantes.

Esclareço que meu interesse pelo astrofísico começou num certo dia invadido por verdadeiros tsunamis de amor; chuvas, relâmpagos e trovoadas de afeto que, nem no mais caliente dos pedidos feitos ao gênio da lâmpada, poderia eu imaginar, um dia tê-lo concedido. Bem, depois da “tempestade”, chegada a calmaria, lá estávamos nós assistindo à série “Cosmos: A Spacetime Odyssey”.

Impossível não se emocionar com a simplicidade de Carl Sagan, com a forma clara e objetiva quando fala dos mistérios, da imensidão do universo se contrapondo às questões do humano. Freud tratou do tema ao se debruçar sobre as três feridas narcísicas da humanidade.

Sim, com Copérnico, descobrimos que a Terra não é o centro do universo, com Darwin somos informados que nossa humanidade é apenas um momento num longo processo de evolução e adaptação da vida e, finalmente, com Freud descobrimos – um pouco como um soco no estômago – que a existência de uma instância “inconsciente” nos deixa um tantinho impotentes, quer dizer, sequer estamos no controle de nossos pensamentos e emoções.

Bem, retornando aos “Bilhões e bilhões” do astrofísico, cá estou eu no último capítulo “Vale da Sombra” admitindo que, apesar de tantos trabalhos que escrevi refletindo sobre o momento final, ainda sinto profunda dificuldade com textos que remetem à “Finitude de cada dia”, talvez por uma dor que já tenha criado raízes. Quem sabe Freud (ou qualquer outro teórico da psicologia) tinha mesmo razão quando dizia que as marcas sofridas na infância permanecem registradas; são sinais que revelam quem você na verdade é: não escapamos de quem realmente somos.

Chegando quase ao final dos “Bilhões…”, leio: “Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando – como faz com todos nós. É só uma questão de quando e como” (SAGAN, 2016, p. 253).

Ao presentear-me, meu amor disse: “acho que você vai gostar”. Ele tinha razão. Tão simples, né? Mas não. Penso que se realmente esse alguém é amor, sabiamente reconhece todos os recantos de sua alma, sabe exatamente, um a um, todos os esconderijos de suas dores, o que pode ser falado e o proibido.

Sim, a morte já espreitava a vida de Carl Sagan, mas na última hora, por alguma razão, ela desistia. Claro, como privar o mundo de alguém que ainda tinha tanto por fazer, descobrir, partilhar, amar? Justo não é, nunca foi, nem nunca será.

E no parágrafo seguinte, ele continua: “Aprendi muito com essas confrontações – especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora de caráter, que a recomendaria a todos – não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco” (p. 253).

Será necessário um mero anúncio, uma simples iminência da perda de elementos preciosos para alavancar essa espécie de “reconstrução” da forma como vivemos as experiências e valorizamos o dia a dia, a princípio igual e sem sentido? Quanta ironia… Como Sagan bem disse: se não fosse o risco… Afinal, nunca saberemos quanto a “tal visita” virá.

Seguindo sua linha de pensamentos: “Gostaria de acreditar que, ao morrer, vou viver novamente, que a parte de mim que pensa, sente e recorda vai continuar. Mas, por mais que deseje acreditar nisso, e apesar das antigas tradições culturais difundidas em todo o mundo que afirmam haver vida após a morte, não sei de nada que me sugira que essa afirmação não passa de wishful thinking” (p. 253).

Desejo acreditar que “encontrarei”, por que não? Mesmo sem provas, sem a validação da ciência, prefiro pensar às avessas. Consolo? Alento? Negação da verdade? Se me perguntassem o que mais me inquietou em Carl Sagan, eu confessaria que foi a afirmação: sim, tudo acaba por aqui, portanto…

Em muitas situações, a ignorância é nossa mais fiel aliada – queira você ou não.

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“Quero envelhecer junto com minha esposa, Annie […]” (p. 253). Ah, são tantos os “queros”, esses tantos por fazer, alcançar, sentir, ver. Saudades antecipadas do que sei que um dia, não mais terei, não mais serei.

“Se houvesse vida após a morte, eu poderia, não importa quando morresse, satisfazer a maioria dessas profundas curiosidades e desejos. Mas, se a morte nada mais é do que um interminável sono sem sonhos, essa é uma esperança perdida. Talvez essa perspectiva tenha me dado uma pequena motivação extra para continuar vivo” (p. 253).

Diante do desconhecido, melhor lutar pela vida, essa é a garantia do presente. Um dia, um aluno me perguntou: “Professora, desculpe, não posso escrever um texto falando de velhice. Com 18 anos, nem sei o que é ‘isso’, quem serei, se estarei aqui. É uma realidade que desconheço, assim como pensar na vida após a morte. Vivo o dia de hoje. Vamos deixar para falar de velhice se e quando ‘isso’ chegar?” Devo dizer que minha porção “engenheirística” nada respondeu, apesar dos inúmeros “psicologismos” que já estavam na ponta da língua. Na dúvida, me calei.

A morte, uma certeza

“Certa manhã no final de 1994, de pé ao lado do cartão-postal emoldurado, Annie notou uma marca azul e preta muito feia no meu braço, que estava ali havia semanas […]” (p. 255).

Como ignorar os sinais? O corpo anuncia a proximidade do inevitável e cede caminho para a extensa e dolorosa bateria de exames, medicamentos, tratamentos e toda sorte de alternativas que recorremos quando o diagnóstico chega: “Eu tinha uma doença da qual nunca ouvira falar antes, mielodisplasia. Se eu nada fizesse, fiquei espantado de escutar, as minhas chances eram zero. A ideia de que estava às portas da morte parecia uma piada grotesca” (p. 255).

A partir daí, vieram um transplante de medula, suspiros de alívio, rasgos de esperança e sofrimentos que se alternavam numa espécie de progressão geométrica entre a cura e o fim. Descrever o processo que já revelava a finitude de cada dia de Carl Sagan é desnecessário, já que a doença muito se assemelha aquele velho conhecido monstro da infância que se esconde debaixo da cama, dentro do armário e que, lentamente, mostra sua cara para nos assustar e nos golpear com a certeza de sua constante presença ao longo da vida.

“Mas, se há uma lição que aprendi a fundo, é que o futuro é imprevisível […] não há como saber nem o que o futuro imediato nos reserva” (p. 259).

Sendo assim, talvez meu aluno tivesse razão, o hoje está aí para ser vivido, com todas as tempestades de tristeza e dias ensolarados de prazer e conhecimento.

“Muitos me perguntaram como é possível enfrentar a morte sem a certeza de uma vida posterior. Só posso dizer que isso não tem sido um problema. Com ressalvas quanto às ‘almas fracas’, partilho a visão de um dos meus heróis, Albert Einstein: Não consigo conceber um deus que recompense e puna as suas criaturas, nem que tenha uma vontade do tipo que experimentamos em nós mesmos. Não consigo, nem quero conceber um indivíduo que sobreviva à sua morte física; que as almas fracas, por medo ou egoísmo absurdo, alimentem esses pensamentos. Eu me satisfaço com o mistério da eternidade da vida e com um vislumbre da maravilhosa estrutura do mundo real, junto com o esforço diligente de compreender uma parte, por menor que seja, da Razão que se manifesta na natureza’” (p. 261).

Se somos “almas fracas” é porque a dor reside justamente na perda daqueles que amamos. Medo, egoísmo em não deixar o outro ir? Talvez. Se Deus negociasse vidas… a minha sim – “que seja feita a sua vontade”, mas a do outro, não: será que Ele aceitaria?

Carl Sagan faleceu em 20 de dezembro de 1996.

O epílogo de “Bilhões…” foi escrito por sua esposa. Nele, essencialmente, Ann Druyan conta como conheceu seu amor: um afeto, uma amizade e uma admiração partilhados em todos os anos de uma feliz convivência.

Nos momentos finais, nada de Deus ou de fantasias fundamentalistas, nenhuma visão consoladora do céu ou de uma vida após a morte, apenas Ele, Carl e Ela, Ann: “Quando olhamos profundamente nos olhos um do outro, foi com a convicção partilhada de que a nossa maravilhosa vida em conjunto estava terminando para sempre” (p. 265).

“No Paraíso de Indra, dizem que existe uma rede de pérolas, dispostas de tal maneira que, quando você olha para uma delas, vê todas as outras refletidas nela” (Um Sutra Hindu).

Para você, a melhor parte de cada dia refletida no aconchego desse colar de pérolas que é a vida.

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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