Feliz Aniversário, Dona Fransquinha

Chegamos no dia 20 de setembro de 2011 ao Instituto do Câncer do Ceará – ICC levando para internar e tratar, um dos maiores casos de amor que já tive conhecimento. Estava ali a mãe do Lacerda, minha, Alcides, Edmilton Filho, Regina, e mulher do nosso pai Sr. Edmilton. Aos 58 anos de história com o marido, dos quais 57 com os filhos, estava cansada, quase sem conseguir pronunciar as palavras. Ainda sorria, da cadeira de rodas, estacionada junto ao quadro de São Pelegrino, santo protetor dos cancerosos. Para preencher a ficha com os dados, a enfermeira perguntou: profissão? Mãe! Esta foi a resposta para auto-identificar quem foi Francisca Freire de Melo.

Alcides Freire Melo – Teu filho *

 

A nossa Dona Fransquinha tornou-se mãe no dia 20 de junho de 1954. Amamentou e, durante longas noites acordada, cobria e apertava junto ao colo, com lençóis brancos alvejados, o primeiro filho para protegê-lo das longas noites do rigoroso inverno de junho. Embalou até o quarto filho na cadeira de balanço, feita em madeira que rangia e ajudava a ninar quando trepidava confortavelmente sobre os irregulares tijolos que ladrilhavam o quarto. Imagem e cheiro ainda hoje gravados em nossas almas.

Após vários dias amanhecerem, as quatro crias, já maiores, começaram a estudar. Dona Fransquinha, nossa mãe, pacientemente costurava à mão o futuro, juntando folhas de papel e uma capa dura, desenhada por ela, para dar a forma de um caderno. O mais perfeito da escola! Personagens dos livros da escola se juntavam às figuras folclóricas do imaginário dela, e ganhavam vida e forma no teatro improvisado e nas contações de histórias dos últimos momentos de uma infância feliz.

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A cozinha, por longos dias e anos, soltava cheiro de lenha queimada desde as primeiras horas da manhã e seguia aromatizando toda a casa, com cheiro inconfundível de galinha caipira. No final das tardes, o cheiro do bolo de milho, tapioca com manteiga da terra, café torrado no tacho e coado de pano, estavam na porta da frente convidando os peladeiros de futebol. Estes chegavam famintos dos campos de areia com os pés furados de espinhos e cacos de vidros para serem mais tarde “tratados”, “limpos” e “aconselhados”: “tenham cuidado com os vidros!”

A cidade cresceu, passamos a morar em casa com telefones identificados por bairros. Precisávamos de ônibus para chegar a uma escola, de onde não se via mais a Dona Fransquinha na varanda da casa abanando com as duas mãos. A velha máquina de costura ganhou um motor e virou elétrica. Foi um descanso para as pernas. Só as roupas que pendiam da tábua ainda eram as mesmas. Camisas eram costuradas para quatro homens: eu, meus dois irmãos e meu pai. Só os calções ganharam umas pernas maiores e, assim como as camisas, viraram compridas.

Dias e noites seguintes ficaram mais longos, mais tensos. Os filhos e a filha se tornaram adultos e passaram, especialmente eu, a ser vigiados de perto por olhares profundos e aconselhadores de mãe, da minha mãe, Dona Fransquinha. Dela, palavras precisas chegavam primeiro à alma e ao coração. Os afagos deixavam por horas seu cheiro de mãe na minha cabeça, quando víamos muitos dias amanhecendo. Ela, com sua inteligência, sabia que este era o caminho mais curto para ensinar, preparar e educar. Por respeito, nunca confundiu ensinamento com obrigação.

A sua força, resistência, resignação, beleza e porte físico foram tão determinantes, que nem um câncer a fez gritar uma única vez por 120 longos dias. Há quem diga que estas características ela recebeu como prêmio de Giovanni di Pietro di Bernardone. Bernardone trocou o nome para Francisco, Francisco de Assis. Nossa mãe, amiga, esposa, irmã já nasceu assim: Francisca. E foi, por intermédio de Assis, que recebeu toda esta força espiritual. Sorriu aqui na terra pela última vez no dia 28 de setembro, e voltou a ser luz para costurar amores, cozinhar paixões, iluminar e abrir as portas para quem chegar.

* Alcides Freire Melo, fotógrafo. E-mail: [email protected]

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