“Eu quero estar vivo na hora da minha morte”

Em Portugal, 70% dos portugueses não tem acesso a esse cuidado em final de vida. Antes de tratarmos de uma questão tão complexa, a morte assistida – eutanásia, talvez devêssemos, governantes e sociedade civil, voltarmos o nosso olhar para a área de cuidados paliativos com mais atenção e, claro provendo maiores investimentos.

Nazaré Jacobucci (*)


A morte não faz parte de uma categoria específica: é uma questão que atravessa os tempos e, sobretudo, é uma questão humana”. (Renata Rezende Ribeiro).


No dia 20.02.20 o Parlamento português aprovou 5 projetos de lei que prevê a despenalização da eutanásia em Portugal, mas o processo está ainda numa fase inicial e segue-se agora um longo processo até que o fim da criminalização da morte assistida seja uma realidade. Todos os cinco projetos de lei levados a votação foram aprovados e serão discutidos na especialidade. Os trabalhos na Comissão de Assuntos Constitucionais permitirão agora que seja trabalhado um texto único e final. Este também é o objetivo dos socialistas.

No entanto, em Portugal ainda se faz necessário avançar em um outro tema; os Cuidados Paliativos. Aproximadamente 70% dos portugueses não tem acesso a esse cuidado em final de vida. Penso que antes de tratarmos de uma questão tão complexa, a morte assistida – eutanásia, talvez devêssemos, governantes e sociedade civil, voltarmos o nosso olhar para a área de cuidados paliativos com mais atenção e, claro provendo maiores investimentos. E, neste olhar, caberia também prover mais qualidade de trabalho para os profissionais que estão na lida diária dos cuidados paliativos e o esforço que fazem para proverem tais cuidados.

Penso que a maioria dos pacientes que, estejam sendo bem cuidados em seu processo de finitude não pensarão em morrer, pensarão em viver até morrer. Reafirmando a frase de Winnicott “Eu quero estar vivo na hora da minha morte”.

No meu curso de mestrado tive o privilégio de conviver com pessoas extraordinárias e profissionais igualmente incríveis. Uma dessas profissionais é Cristina Madeira, uma enfermeira que atua em cuidados paliativos numa região denominada Alentejo. Cristina é uma dessas enfermeiras que ama o que faz e entende da arte de cuidar. Ela escreveu um texto para um jornal local (Diário do Sul, em 08.10.2019) em que ela faz uma pequena reflexão, sobre a vida, sobre a morte e sobre o cuidar como uma forma única e individual. Abaixo vou reproduzir o texto de Cristina, que me autorizou a compartilhá-lo na íntegra.

“O Sentido da Vida…”

“Integrar a própria morte, com todas as dúvidas e dificuldades, com receios e inseguranças, mas com a certeza que sem nunca sabermos quando é o dia, apenas sabemos que esse dia chegará. Faz cada vez mais sentido em qualquer fase da vida de alguém aprender a viver, para que possa também saber morrer. “Aprendam a viver e saberão como morrer; aprendam a morrer e saberão como viver” (Schwartz, 2006).

Tenho boas memórias do tempo em que via os doentes numa longa varanda ao sol e onde as equipas de profissionais faziam o que melhor sabiam com os recursos que dispunham, ouviam as preces dos que sofriam e rezavam com as famílias que, muito pouco podiam esperar daqueles que visitavam e que muitas vezes sucumbiam às malvadas doenças que teimavam em aparecer. De cuidados paliativos em 1990 pouco se ouvia falar no Alentejo, onde cresci, morria-se maioritariamente de doenças cardiovasculares e a morte era negada e encarada como derrota para muitos profissionais de saúde, um fracasso, uma frustração, eram essencialmente profissionais treinados para a doença aguda. “A morte não é pois, uma possibilidade, algo de eventual, mas um fato inexorável da própria vida e um fato com o qual as sociedades, em geral, e os profissionais de saúde, em particular, deverão aprender a lidar” (Barbosa et al., 2016).

Aprofundar a essência da vida e aquilo que de fato faz sentido é o que faz toda a diferença, os pormenores, o querer dançar quando já se perdeu a mobilidade dos membros, as emoções sentidas, o medo de envelhecer, o perdão e até o dizer adeus aqueles que mais amamos; a nossa família. Comecei a questionar a minha existência, a minha vida e obriguei-me a tomar decisões conscientes e com um único sentido, o alívio do sofrimento, porque mesmo sem doença podemos estar descontentes com a nossa existência e com algumas escolhas que fazemos. Tantas vezes ouvimos nos últimos dias de vida de uma pessoa, questões como – “por que não fiz aquilo que deveria quando era novo?”; “por que não tomei aquela atitude na altura certa?”; “por que não investi naquilo que mais sentido fazia para mim?”, tantas questões se colocam quando percebemos que a nossa vida é finita e essencialmente se achamos que a proximidade a esse dia está chegando. Cuidar de pessoas com doença crônica e progressiva, dá-nos uma visão diferente daquilo que somos e daquilo que queremos ser. Permite-nos tentar viver a nossa vida de uma forma mais autêntica e com sentido.

A OMS em 2002 definiu cuidados paliativos como: “uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes – e suas famílias – que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso a identificação precoce de tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, como a dor, mas também dos psicossociais e espirituais”. Perceber que o sofrimento de alguém está agravado por ter longe o filho que reside no estrangeiro, ou aquela mãe que cortou relações com a filha por ciúmes do irmão, ou simplesmente aquela paciente que sempre viveu sozinha e que agora não tem ninguém que cuide dela, faz-nos pensar sobre as atitudes que habitualmente temos durante a nossa existência, que a atitude de quem ajuda o outro pode ter um impacto positivo ou negativo na que recebe, determinando a sua receptividade à oferta.

Quando a doença surge, percebemos que estamos aqui de passagem e que a finitude é real e pode não estar assim tão distante quanto aquilo que sempre achamos. Para Marie de Hennezel, os que vão morrer ensinam-nos a viver, “A morte, essa que todos havemos de viver um dia, a que fere os nossos próximos ou os nossos amigos, talvez seja o que nos leva a não contentarmos em viver à superfície das coisas e dos seres, o que nos move a penetrar na sua intimidade e na sua profundeza” (Hennezel, 2000).

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Ser enfermeira é para mim um enorme prazer na dedicação e na valorização do outro como alvo dos meus cuidados de forma única e individual. Cuidar de alguém, é uma tarefa de grande importância para o outro porque ele confia em nós para que lhe seja aliviado o sofrimento que advém de uma alteração no decurso da sua vida, com o aparecimento de uma doença grave que o irá levar à morte. É, para todos, difícil conviver diariamente com a morte, a perda, a finitude daquilo que sempre achamos ser para sempre. A morte é, efetivamente, aquilo que quando nascemos temos mais certo na nossa vida, porque todos iremos morrer, só não sabemos como, nem em que condições.

Cabe-nos a nós profissionais de saúde cultivar um ambiente acolhedor e livre de sofrimento para que esse momento inevitável seja o menos doloroso para quem parte e também para quem fica, pois este é que terá que conviver com a ausência daquele que fazia parte da sua vida e que inevitavelmente irá morrer. Conviver com a morte quotidianamente não é banalizá-la, mas sim viver a vida intensamente e valorizar cada minuto, como se fosse o último, aproveitando tudo o que é belo e nos faz sentido, como tal é para mim muito importante a comunicação com o doente mas também, com a família que experimenta momentos difíceis e muito angustiantes sem saber o que fazer, nem tão pouco o que dizer, porque tudo acarreta muito sofrimento, porque a inevitabilidade da perda existe.

Cada doente deixou o seu ensinamento na minha vida e ajudou-me a tentar ser cada vez melhor e procurar conhecimento para prestar cada vez mais melhores cuidados com base na evidência e na ciência. “Aqueles que passam por nós não vão sós nem nos deixam sós” (Antoine de Saint-Exupéry, 2009). Neste sentido, “vivo, sem dúvida, mais intensamente, com uma consciência mais aguda, aquilo que me é dado a viver, alegrias e tristezas, mas também todas essas pequenas coisas quotidianas que são óbvias, tal como o simples fato de respirar ou de andar” (Hennezel, 2000).

Viver é sem dúvida um desafio, o corpo é apenas uma parte, porque somos muito maiores do que a soma das partes físicas, somos valores, pensamentos sobre o bem e o mal, temos emoções, discernimento e intuição e sem dúvida que as nossas vivências são também uma parte muito importante na construção do nosso ser único e individual e viver a trabalhar com estes doentes deu-me uma visão unificada de cada pessoa e de cada momento”.

(*) Nazaré Jacobucci – Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Medicina da Universidade de Lisboa. Psicóloga Especialista em Perdas e Luto. Especialista em Psicologia Hospitalar. Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC). Site: http://www.perdaseluto.com. Colaboração: Cristina Madeira – Enfermeira na Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos do ACES – Alentejo Central.

Referências
BARBOSA, A. et. al. Manual de Cuidados Paliativos. 3. ed. Lisboa: Núcleo de Cuidados Paliativos – Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2016. p. 691-735. (Coleção: Cuidados Paliativos).
HENNEZEL, M. Diálogo com a Morte. Portugal: Casa das Letras, 2000. 174 p.
RAMOS, D.; FRAZÃO, J. Despenalização da eutanásia avança em Portugal. Cinco projetos de lei seguem para discussão. Correio da Manhã [online]. 21.01.2020. Disponível em: https://www.cmjornal.pt/politica/detalhe/despenalizacao-da-eutanasia-avanca-em-portugal-cinco-projetos-de-lei-seguem-para-discussao
SAINT-EXUPÉRY, A. O Principezinho. Porto: Aster Editora, 2009. 96p.
SCHWARTZ, M. Amar e Viver: Lições de Um Mestre Inesquecível. Tradução: Vera Faria. Cascais: Editora Pergaminho, 2006. 114 p.
WORLD HEALTH ORGANIZATION [site]. Palliative care. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/palliative-care


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