Escritos coloquiais da quarentena

Escrever nos salva das bizarrices do cotidiano, da dureza da vida e da quarentena. Os idosos que têm essa ferramenta vivem mais e mais felizes. São coloquiais porque na sua maioria estou escrevendo a um grupo ou a uma pessoa.

Jane Berger (*)


Lembranças e experiências que me acolhem – Oiiiii a todos! Dei uma sumida! Mas acompanho diariamente as mensagens, receitas, comentários. Você são D+! Tenho adorado tudo, e tento ler os inúmeros textos e ver os vídeos muitos extremamente esclarecedores do que vivemos, tanto política quanto pessoalmente. Tenho também estudado um pouco (menos que eu gostaria) porque baixou em mim um espírito de arrumar e colocar as coisas em ordem que tem trazido excelentes resultados: estou achando coisas que dava por perdidas, descobri que muitas coisas sumiram ou foram levadas, não sei, mas de qualquer modo os reencontros têm feito melhor que as perdas e danos. Essas resolvi entregar para o Universo. E nossa casa tem sido aos poucos reapropriada, rearranjada, repaginada. Talvez arrumando os espaços exteriores esteja tentando entender e arrumar o espaço interior. Lembro de uma ocasião em que fui a casa da minha irmã num sábado a noite (ela já estava bastante fraquinha e doente) e fizemos um lanche depois de jogar um buraco (ela adorava e nós íamos com frequência jogar com ela e o Guido). Após o lanche levantei-me para lavar a louça e Eli imediatamente tomou a dianteira, dizendo: não há coisa melhor para atenuar nossas angústias que lavar louça. Fiquei pasma com sua afirmação mesmo porque Eli sempre foi uma Lady, e não era muito afeita aos serviços domésticos. E aí ela explicou: aprendi isso com o Antônio Lancetti (também com câncer na época e morreu um pouco antes da Eli). Uau! Disse a ela surpresa com suas palavras. Hoje, porém, tenho lembrado tanto disso, enquanto arrumo gavetas, piloto o fogão, passo minha vassoura (nova-mop) maravilhosa no chão. Tenho cozinhado muito bem e com rapidez como fazia quando Carol era pequena e passei a arrumar minhas receitas que estavam espalhadas em inúmeros cadernos. Além disso tenho arrumado muito tentando conter meu assombro com tudo o que vivemos. Quem sabe isso traga alento ao coração e me preserve desse bando de energúmenos que têm dirigido nosso país. E vamo-que-vamo pois de prato em prato, de gaveta em gaveta descubro tantas lembranças e tantas experiências que me acolhem e isso é muito bom!

A criatividade nasce da tradição – O fato é que hoje me bateu uma saudade imensa da minha mãe, do meu pai e da Eli. Minha mãe e a Eli sempre foram as principais representantes das tradições judaicas em casa. Confesso que minha família nunca foi um primor nesse quesito mas dona Fanny sempre fazia questão de manter os encontros familiares que nos trouxeram a notícia que as tradições nos remetem às nossas raízes e essas não podemos negá-las. Fazem parte do nosso modo de ser, nos sustentam e amparam em momentos difíceis. De qualquer modo os jantares de Pessach, o Halaila Hazê, o Matzá, a Keará, foram e são experiências já incorporadas e das quais eu não consigo prescindir. Lembro muito da satisfação da minha mãe ao elogiarmos as comidas maravilhosas que ela fazia tão bem (seu guefilte fish nunca mais comerei um igual) e a beleza das palavras pertinentes da Eli na hora do brinde com aquele vinho açucarado que lembravam sempre da nossa precariedade e da importância da liberdade do povo judeu da escravidão sempre relacionando com a necessidade de justiça social do povo brasileiro. E é lógico sempre havia os complementos de falas contrárias que numa mesa judaica não podem faltar. Aliás, nunca esqueço de uma piada que diz que onde há dois judeus sempre há espaço para uma discussão. Enfim, eram encontros permeados por inúmeras emoções, por cheiros, por gostos, por afetos intensos. Como esquecer tudo isso? Como viver um Seder hoje na reclusão a que estamos impostos? Há de recriarmos esse momento, fazer o possível para estarmos juntos em lembrança. E como diz Donald Winnicott: “a criatividade nasce da tradição”. Vamos experimentar uma nova possibilidade das tradições, talvez diferente no que se refere a mesa cheia de gente querida mas sintonizados entre nós com o coração aberto às vibrações dos presentes e ausentes. Hag Sameach a todos! Que possamos atravessar esse deserto e vislumbrar a Terra Prometida!

A luta entre eu e o bolo – Ontem vivi uma experiência surreal! Quisera ser como amigas que fazem bolos maravilhosos sem quaisquer problemas. Mas eu ando me achando na cozinha e resolvi fazer um bolo de chocolate para o Fran pois era seu aniversário e ele gosta desse tipo de doce. Desde quarta-feira me preparei: pesquisas de receitas, compra dos ingredientes, e ontem mãos à obra. Escolhi uma versão que mistura os ingredientes com as mãos lembrando que adoro me melecar, me lambuzar e fui curtindo cada ingrediente que se amalgamava a massa. Das únicas lembranças que tinha de fazer bolos era peneirar os ingredientes secos e no final lamber a tigela. Minha mãe não compartilhava o processo comigo e lamber os restos no final era suficiente. Na medida que a massa ia tomando forma eu fui me sentindo uma boleira nata e me perguntando porque não fazia mais bolos. Até minhas formas com furo estavam tão enfurnadas como se fossem tesouros. Demorei a achá-las no fundo de um caixa guardada na dispensa. Mas voltando ao bolo, untei a forma perfeitamente e coloquei a massa que rendeu muito. Como eu faltei nessa aula de não colocar o bolo até a borda, pus o dito cujo no forno e pensei: agora vamos a calda e aos morangos, porque eu pretendia fazer algo muito especial e saboroso. O forno estava na temperatura indicada, tudo nos conformes. E eu fazendo a calda comecei a sentir um pequeno cheiro de queimado. Fui olhar o bolo: transbordando. Mas minha teimosia e persistência sempre vão aos pícaros quando me sinto desafiada, e nessa situação era caso de vida ou morte: o bolo tinha que sair e ficar bom. Sem delongas, sem perhaps. A partir de então começamos uma luta: eu e o bolo. A massa transbordando e eu acreditando que isso ia acabar uma hora e tudo daria certo. Em vão! A fumaça do forno tomou conta da cozinha fechada a sete chaves (essa lição eu também participei: enquanto se assa um bolo não pode haver correnteza de vento) e começou a se alastrar pela casa. O Fran que estava no escritório sentindo o cheiro e os rastros da ocorrência, veio até mim e ao abrir a porta levou um baita susto. Que está acontecendo? Que loucura é essa? Tudo era uma surpresa, ele não devia participar desse evento. Mas como eu não podia mandá-lo passear (afinal estamos em quarentena) o pampeiro se formou. Veio o imperativo: desligue já esse forno! E eu: mas vai estragar a massa. Um embate se deu e eu cedi: desliguei o forno e tirei o bolo. Haviam passado 45 minutos da peleja e eu resolvi dar a vitória ao bolo. Pensei: mas os morangos com a calda podem quebrar o galho. Enquanto isso, o Fran, muitíssimo bravo, acabava com minha festa e me chamava à dura realidade de limpar o forno e acabar com aquele cheiro insuportável de queimado. Mas antes disso fui analisar os restos mortais do bolo e veio a surpresa: parte dele havia assado. A luz no fundo do túnel apareceu tênue, e eu na minha persistência de leoa, resolvi que o bolo seria desenformado. Como isso só pode ser feito com a forma morna (a receita indicava a instrução) entre esse momento e o posterior foram longos minutos de limpeza. Desmonta aqui, lava ali, esfrega, tira o grosso, panos, esponja, sabão. O maior trampo. Esse foi o presente que acabei dando ao Fran. Coitado! Trabalhou como gente grande nessa empreitada de limpar o forno. Muito bravo lógico! E eu quietinha sem dar um pio, como quando levava bronca da mãe. Acabada essa epopeia, fui ao bolo. Já morta de cansaço (não sem razão) virei sobre o lindo prato. Estava são e salvo. Experimentamos um pedacinho, super gostoso. Retomei minhas forças e fui à calda e aos morangos. Eles me salvariam. E foi o que aconteceu. No final o bolo ficou bonito, deu para cantar o parabéns a você e eu parei de achar que bolo é lobo. Até que foi mansa essa estória toda! Feliz aniversário! Feliz!

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Escrever nos salva das bizarrices do cotidiano – Conversando com a Ruth, amiga querida! Escrever nos salva da solidão e nos permite olhar para detalhes do cotidiano com lupa poética. Com a idade isso vai virando remédio. Minha mãe adorava escrever. Quando conheceu meu pai escrevia jornais para Casa do Povo. Contava meu pai que a conheceu lá mirando suas belas pernas num dia em que passou por ele. Infelizmente a vida foi muito dura com ela e os sofrimentos absurdos que ela teve que viver a apartaram da poesia e da escrita. No entanto, seus cartões de aniversário, seus recadinhos sempre foram muito sensíveis e reveladores dessa ânsia de expressão. Acredito que escrever nos salva das bizarrices do cotidiano, da dureza da vida e dos sofrimentos inevitáveis pelos quais temos que passar. Até por isso penso que os idosos que tem essa ferramenta vivem mais e mais felizes. Eu sempre estimulo meus pacientes a escrever: sonhos, pesadelos, dificuldades. É assim que eles vão destinando suas angústias. Cada caso é um Ruth! Mas os adolescentes ansiosos que atendo anotam muito. Anotar não deixa de ser uma forma de se fazer presente e de existir. Em idosos imagino ser uma forma de inscrever a memória, de dar contorno a ela. Assisti recentemente um filme belíssimo “Nostalgia da Luz” (Patrício Guzman) e no final dele o narrador diz “a memória tem uma força de gravidade. Sempre nos atrai. Os que tem memória são capazes de viver no frágil tempo presente. Os que não a tem não vivem em nenhuma parte”. Penso que anotar tudo, não deixa de ser esse tênue fio entre o existir presente e que em um segundo se torna passado e do qual precisamos nos apropriar para seguir existindo. Sei lá! Será que ajudei ou atrapalhei mais?

Fafavor pá nois – Ontem foi o maior BO! Tudo começou com o ferro de passar roupas! Aquele objeto do qual tento me livrar, mas que às vezes ainda é necessário. Sempre penso que um dia voltarei a usar meu vestido de linho que eu tanto adoro, ou quem sabe aquela blusa branca. Esperança é a última que morre! Mas voltando para o BO, cansada, querendo aproveitar um pouco dessas férias estranhas que estou tendo e aproveitando que ontem viria minha ajudante dar aquela força que desde sempre eu precisava, fiz zilhões de planos. Acabar de reler aquele livro para as aulas da Escrevedeira, ouvir música, dançar, caminhar no sol (mascarada e tudo) e quem sabe começar o livro que chegou do Valter Hugo Mãe que acabara de chegar pelo correio. Dia promissor! Tomei meu café da manhã animada com tantos projetos e estimulada pela leitura. Sem mais, recebo aquele comentário que mudaria tudo: “ esse ferro de passar fica aqui estorvando… e se a gente guardasse em algum lugar desse armário?”. Ouvi aquele comentário com certa reserva, mas não querendo ser indelicada respondi: “Mas esse armário está uma bagunça! Precisaria arrumar!”, tentando dissuadir a Isa do seu intento. Para que que eu fui falar isso? Isa logo veio com a solução: “É rapidinho! Eu tiro essas coisas, eu chamo, a senhora põe tudo no lugar e ajeita o ferro”. Ok, respondi, sem saber que ali meus planos iriam todos dançar. Enquanto isso o Fran acabava seu café da manhã e eu fui ver meu WhatsApp. O livro sobre a mesa chamou minha atenção e no que eu o abri, veio o chamado: “Pronto! Já tirei tudo do armário… agora é só guardar”. Isso se dirigia a mim, o que naquele momento não era esperado nem desejado. Mas pensando bem, eu não podia atrapalhar o serviço doméstico. Levantei-me e fui à área de serviço, acreditando que em 10 minutos retomaria meus planos. Qual o quê! Ao chegar no local vi anos de desarrumação espalhados pelo chão. Isa, na sua boa vontade, abriu aquela parte do armário em que o Fran guarda suas ferramentas e que provavelmente nunca tinha visto uma arrumação nos últimos 20 anos. Eram cobras e lagartos, ou melhor, pregos, parafusos, brocas, dos mais diversos tamanhos e formas, ferramentas de vários tipos, tudo muito sujo e marcado pelo tempo e pelo uso. Sem contar com todos aqueles pequeninos instrumentos herdados do meu pai, aquela alma que arrumava tudo e guardava objetos dos mais diversos tipos usados nas suas esculturas e nos consertos que ele fazia como ninguém. Aquela profusão de coisas acompanhada das lembranças e emoções trazidas pelas lembranças do tempo, me impactaram sobremaneira. Fiquei chapada! Sem reação, pensando como ia explicar isso ao Fran que já estava indo para o escritório trabalhar. Pensei: vou primeiro ajeitar as prateleiras que me competem e no final chamo o Fran para finalizar o serviço. Mesmo porque o território das ferramentas era dele e eu não ia invadi-lo. Minha parte acabei rapidamente. Agora precisávamos ir à luta com as ferramentas, cobras e lagartos! Para minha surpresa quando expliquei o ocorrido ao Fran ele logo topou arrumar, não reclamou, mas com um porém: você me ajuda Juju? Percebi ali que meus planos de férias tinham ido para o espaço e me lembrei da estória do Sérgio Simone que indo trabalhar teve uma pane em seu carro e parou num mecânico. O cara topou arrumar mas ia pedindo ao Sérgio as ferramentas de modo absolutamente jocoso: “Fafavor pá nois! Pega aquele alicate ali moço? Fafavor pá nois pega aquela chave de fenda ali moço? E assim Sérgio, refém do mecânico, virou seu auxiliar sem que o quisesse sê-lo. Isso virou um jargão na nossa casa. O Fafavor pá nois quando proferido é sempre aquele pedido sedutor e irrecusável, mas nem sempre consentido. Pois é, voltando para o armário Fran começou o Fafavor de modo muito amoroso e delicado: Juju, dá uma olhadinha, o que tem nesse saco?….Juju, coloca esses preguinhos em um vidro… Juju, você pode separar as coisas dessa lata? Enfim, me vi envolvida num Fafavor pá nois total. Sem saída! Foram umas 2 horas e meia de juntar, separar, organizar pregos, parafusos, e inúmeros objetos com estórias diversas, com muita emoção, com risos e comentários hilários, sem precedentes. E lá se foi minha leitura, minha caminhada, minha dança. De fato, dancei bastante, pois acabada nossa empreitada já era hora de fazer o almoço. O livro ficou para trás, mas em compensação o yakissoba ficou ótimo!

Jane berger

(*)Jane Berger – Psicóloga clínica formada pela PUC-SP. Trabalho em consultório com crianças, adolescentes e adultos. Nas horas vagas faço escultura, leio, e agora na pandemia dei para escrever. E-mail: [email protected]

Foto destaque de Lum3n de Pexels


Cuidar

O objetivo do curso, na modalidade remota, é o de refletir e discutir a respeito da visão que  os profissionais  que trabalham, e ou estudam o envelhecimento têm sobre os significados do cuidar de si. Examinaremos propostas sugeridas no sentido de levantar alternativas e reflexões sobre qualidade de vida e cuidados para os indivíduos que trabalham e ou pretendem trabalhar com o segmento idoso. Será permeado por Oficinas que envolvem práticas de relaxamento e criatividade.

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