Entrevista imaginária: As lúcidas reflexões de Bobbio sobre a velhice Contraponto às entrevistas que tratam o idoso como criança ou palerma

Microfone em punho, nenhuma idéia na cabeça. Repórter de tevê, sorridente e bem-intencionada, entrevista pessoas idosas no ‘baile da saudade’. Vai colhendo frases de entusiasmo e flagrantes de vitalidade física entre senhores e senhoras que rodopiam ao som de Julio Iglesias. Um velhote exibido faz piruetas em compasso de bolero. Diz que nasceu para bailar e não perde uma sexta-dançante. Sua companheira, de idade parelha, igualmente espevitada, escancara a boca de batom para dizer que ‘o amor é lindo’. Seguem-se várias tomadas na mesma linha, os casais abordados pela repórter como se fossem bebês começando a falar ou atrações de um antigo circo de cavalinhos.

Aluízio Falcão

 

Quem trata os velhos assim e os tem como incapazes de elaboração mental um pouco mais complexa deveria saber coisas registradas na história da arte e da inteligência. Rembrandt passava dos 60 quando pintou seus quadros mais importantes. As obras de Bach ao envelhecer foram classificadas entre as mais belas e Beethoven superou a si mesmo nos derradeiros quartetos. Miguel de Cervantes já contava quase 70 anos quando completou o Dom Quixote. Galileu, aos 72, produziu sua obra máxima, Os Diálogos das Ciências Novas. Laplace tinha 79 anos quando finalizou a Mecânica Celeste. Immanuel Kant, octogenário, escreveu Pela Paz Perpétua, um ensaio que passou à história.

Deixemos a história e voltemos à tevê. Além do baile da saudade, idosos aparecem outras vezes na telinha, mas sempre como criaturas de exceção. ‘Olha seo fulano, 80 anos, pratica natação como um rapaz.’ ‘Veja dona fulana, 79, nem parece.’ Também são usados como objeto de piedade. Faz pouco tempo, em novela das nove, com as melhores intenções, meteram lá um casal de velhinhos fazendo o papel de um casal de velhinhos. Tudo bem se não explorassem o estereótipo, com todos os achaques, teimosias, repetições, esquecimentos. E uma neta cruel para humilhar seus avós todas as noites e arrancar lágrimas compassivas dos telespectadores.

Quando vejo essas coisas vou conversar com um velhinho de estimação, em seu repouso aqui na estante, bem perto de onde escrevo. É Norberto Bobbio, que se inclui entre os mais influentes pensadores da Europa contemporânea. Quando vivo, mesmo na idade avançada, era procurado para dar conselhos ao mundo. Hoje, eternizado em livros, ajuda-nos a compreender o tempo e o tic-tac infinito do seu relógio.

Sua obra-prima sobre a velhice, O Tempo da Memória (Editora Campus, 205 páginas, R$ 69,00), é um pequeno livro que não pára de vender. Dele e de outros escritos do autor juntei fragmentos para uma entrevista imaginária, trazendo ponderações confortadoras para quem vê nossos idosos tratados, mesmo carinhosamente, como palermas.

Aos 87 anos o senhor lembrou alguns conceitos a respeito da faixa etária em que se chega realmente à velhice. Poderia resumi-los?

Vocês sabem muito bem que, ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou subjetiva. Biologicamente, considero que minha velhice começou no limiar dos oitenta anos. No entanto, psicologicamente, sempre me considerei um pouco velho, mesmo quando jovem. Fui velho quando era jovem. E quando velho ainda me considerava jovem até há poucos anos.

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Está em alguns de seus livros que o mundo dos velhos é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Como se dá este reencontro permanente com o passado?

O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com freqüência porque é desgastante ou embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Encontramos os anos que se perderam no tempo, as brincadeiras de rapaz, os vultos, as vozes, os gestos dos companheiros de escola, os lugares, sobretudo aqueles da infância, os mais distantes no tempo e, no entanto, os mais nítidos na memória. Mencionei muitas maneiras de viver a velhice. Alguém poderia me perguntar: – E você, como a vive? Nesta última parte do meu discurso penso ter dado a resposta. Direi em resumo que tenho uma velhice melancólica, a melancolia subentendida como a consciência do não-realizado e do não mais realizável. A melancolia é suavizada, todavia, pela constância dos afetos que o tempo não consumiu.

Explore um pouco mais o mundo da memória em que vive o idoso, tema central de suas abordagens sobre a velhice.

O grande patrimônio do velho está no mundo maravilhoso da memória, fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção. Maravilhoso, este mundo, pela quantidade e variedade inimaginável e incalculável de coisas que traz dentro de si: imagens de vultos há muito desaparecidos, lugares visitados em anos distantes e jamais revistos, personagens de romances lidos quando éramos adolescentes, fragmentos de poesias que aprendemos de cor na escola e nunca mais esquecemos; e quantas cenas de filmes e de peças de teatro, e quantos vultos de atores e atrizes esquecidos sabe-se lá há quanto tempo, mas sempre prontos a reaparecer no momento em que vem o desejo de revê-los, e quando os revemos experimentamos a mesma emoção da primeira vez; e quantas melodias de canções, árias de ópera, trechos de sonatas e de concertos voltamos a cantarolar sozinhos, acompanhando as notas murmuradas e o ritmo marcado com movimentos imperceptíveis do corpo, com a imagem daquele tenor ou soprano, daquele violinista ou pianista, daquele maestro, cujos gestos ora solenes, ora emocionados, ora imperiosos, poucos dias atrás rememoramos ao conversar com um amigo sobre o primeiro concerto que ouvimos, anos atrás, em um grande teatro da cidade (era Victor De Sabata na sinfonia do ‘Novo Mundo’). Este imenso tesouro submerso jaz à espera de ser trazido de volta à superfície durante uma conversa ou leitura; ou quando nós mesmos vamos à sua procura nas horas de insônia; outras vezes surge de repente por uma associação involuntária, por um movimento espontâneo e secreto da mente. Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver.

Fale um pouco de sua relação na velhice com a leitura…

As leituras estão se tornando cada vez mais seletivas, mais do que ler, releio. Torna-se cada vez mais difícil, portanto, fazer entrar fatos e idéias novas que não encontrem compartimentos já formados, prontos a acolhê-las. O excesso é simplificado para fazê-lo caber. O supérfluo é repelido porque já não cabe mais. Outras vezes, para fazer caber um e outro, nós os forçamos e deformamos. As pessoas dizem que não entendemos nada e que estamos superados.

E os computadores?

Inventaram esses instrumentos maravilhosos para ajudar a memória, reduzir o tempo necessário à escrita, mas não sei utilizá-los, ou utilizo-os muito mal para deles extrair todos os possíveis benefícios. Meu pai andava de bicicleta quando já haviam inventado o automóvel. Eu voltei a escrever com caneta-tinteiro (com uma letra tão ilegível que deixo meus leitores desesperados). E, no entanto, sobre a escrivaninha ao meu lado, vê-se um belíssimo computador. Diante dele fico intimidado. Ainda não consegui ter com ele a necessária intimidade para usá-lo com a desenvoltura com que outrora eu usava a máquina de escrever.

No fim desta palestra com Bobbio, ainda no desfrute de sua incomum sabedoria, ouço ou penso ouvir murmúrios nas estantes ao lado. Reconheço logo, pela rouquidão, a voz de Simone de Beauvoir. Ela insiste nas impertinências do livro La Vieillesse. Digo-lhe que muito me desagradaram suas arengas contra os idosos e que a gota d’água foi aquele relato cruel da decadência física e mental de Sartre nas páginas de A Cerimônia do Adeus. Ela resmunga um pouco mais e silencia. Então julgo escutar a voz calma de Machado de Assis, comentando, sem mágoa, o revezamento das gerações: ‘Vão os hóspedes saindo do banquete à proporção que outros chegam e ocupam o seu lugar; é a perpétua substituição dos convivas’.

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2-D2, 23/09/2006.

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