Entre a 1ª e a 2ª onda de Covid-19, vai dar uma de Carolina?

Ante a 2ª onda de Covid-19 é oportuno nos indagarmos: o que os idosos farão com esse tempo demais e a rotina de menos?  O que foi pensado e ofertado para entrar nesse lugar da rotina roubada? 

Evaldo Cavalcante Monteiro (*)


Este é o quarto texto da série A velhice e a Covid-19, cujo propósito é trazer uma reflexão. Ele parte do que se tem chamado de a primeira onda da pandemia para pensar nos acertos e erros quanto à condução deste processo no que diz respeito aos serviços destinados aos velhos. Mas “o tempo não para”(1), a pandemia não acabou e como “ainda estão rolando os dados”, abre-se uma janela nesse tempo enquanto a segunda onda não vem.  Ainda ressabiados, já temos algumas questões: o que fizemos ou deixamos de fazer em prol dos velhos? E o que podemos fazer por nós e pelos velhos enquanto dura a janela? Ao final, quem sabe, podemos tirar lições deste momento.

Até aqui, os dados do Ceará são: 4,13% dos idosos institucionalizados,ou seja, 68 idosos morreram por Covid-19, segundo mídia local; o Ceará contava com 9.337 óbitos, desses 78,39% foram de idosos, ou seja, 7.320, segundo a plataforma IntegraSUS, em 07 e 20 de outubro de 2020, respectivamente. 

A cronologia

É necessário que seja revisto o processo. Elaboramos um ordenamento cronológico dos fatos que consideramos relevantes da pandemia. A OMS decreta pandemia por Covid-19 em 11 de março; constata-se o primeiro caso de Covid-19, em Fortaleza – CE, 15 março; têm início o distanciamento social e a interrupção dos grupos de idosos, 20 de março; constitui-se a Frente Nacional de Defesa das ILPIs em março; constatado o incremento da violência contra o idoso, saltando de três mil em março para 17 mil em abril; constitui-se a Frente Nacional de Defesa dos Conselhos em abril; aumento das restrições do isolamento social, 8 de maio; Retomada Responsável da Economia, 28 de maio, dividida em fases, leva 63 dias; a assistência social estabelece seu regime de retomada gradual em agosto; realizada audiência pública na Assembleia Legislativa para debater o retorno seguro das atividades de grupos de idosos no cenário de pandemia, em 21 agosto; a assistência social retoma o atendimento presencial, mantendo suspenso o grupo de idoso em setembro.

Nem tudo é o que parece

A cautela e prevenção teriam sua razão de ser. A pandemianos chegou com uma predileção por acometer pessoas idosas, a gerontofilia, abordada no primeiro texto da séria. Esta concepção seria respaldada pela mortalidade dos velhos: “92% na França e em Portugal, 90% na Suécia, 89% no Reino Unido” (CÔRTE, 2020). As medidas preventivas adotadas foram: nas instituições de longa permanência – ILPIs, seriam proibidas as visitas, entradas ou circulação de quem não era da equipe de trabalho; nos grupos, haveria a suspensão da atividade, evitando a  circulação dos idosos para chegarem aos grupos e se aglomerarem. É oportuno nos indagarmos: o que os idosos farão com esse tempo demais e a rotina de menos?  O que foi pensado e ofertado para entrar nesse lugar da rotina roubada? 

Embora a acepção gerontofílicasustente as intervenções, estafoi confrontada por meio da pesquisa brasileira. O estado que tem o maior percentual de velhos no país teve a menor taxa de óbito, o Rio Grande do Sul (ALVES, 2020). Caso esta relação fosse direta e exclusiva, a mortalidade teria que ser, forçosamente, alta. Portanto, deve haver outros fatores intervenientes, os quais não foram identificados ainda, mas que contribuíram com a transmissão e morte. Uma leitura que engloba estes fatores tem sido denominada de sindemia, mas isto será visto em outro escrito.

Em virtude disto, nos é lícito pensar que ação protetiva esteve estritamente ligada à dimensão biológica da pandemia, sobretudo quando comparada ao contexto internacional. Senão vejamos: a Sociedade Espanhola de Geriatria e Gerontologia chamou a atenção para a diminuição da mobilidade e do convívio social poderem desencadear as síndromes geriátricas, o surgimento de ansiedade ou depressão, e demandou, ainda, que as autoridades sanitárias buscassem o equilíbrio entre a prevenção e o direito dos idosos a uma vida “o mais normal possível”, teriam “solicitado a manutenção [dos] meios de comunicação (telefone, videoconferência…)” como forma de interação social e o aumento do atendimento aos idosos com atividades físicas, sociais e ocupacionais com seus respectivos profissionais; segundo Moran (2020), nos EUA, no período de distanciamento social, os trabalhadores de prevenção ao suicídio teriam encontrado “maneiras criativas” de experimentarem a tecnologia para “manterem as pessoas engajadas remotamente”; o trabalho social das comunidades “podem realizar intervenções para reduzir o estresse mental e prevenir o suicídiodurante este período crítico”; a OMS/OPAS, por seu turno, tem produzido trabalhos que chamam a atenção para o impacto na saúde mental do isolamento social. Elemento que temos destacado aqui.

Apesar desse esquecimento da saúde mental dos idosos, ações individuais, isoladas, e pontuais buscaram avançar na manutenção dos vínculos via teleatendimento: nós que estávamos nesse front, fosse no atendimento grupal ou na ILPI. Nesta condição, pudemos sentir, ouvir e ver o impacto da restrição do convívio social. As queixas dos idosos têm sido de insônia, labilidade emocional (choro fácil e imotivado), medo do contágio, ansiedade pela duração da quarentena em si e pelo breve retorno à normalidade, além das dificuldades de relacionamento com familiares e com trabalhadores da instituição e da imposição de limitações internas de contato social, no caso das ILPIs.

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Esse sofrimento psíquico ante o isolamento social foi reiterado para nós e constatado por alguns alunos na Disciplina Prática Gerontológica em teleatendimento ocorrido em uma ILPI em agosto. Isto apareceu na entrevista realizada pelos alunos com elas e estava a olhos vistos no atendimento. Elas estavam mais magras, reservadas, apáticas, com pouca verbalização. Houve um choque ao vê-las, pois a impressão que tínhamos é que se lhes havia sido aplicado um catalizador no seu processo de envelhecimento. Minayo nos tem sinalizado, em sua pesquisa, que o isolamento social é fator preponderante no incremento de suicídio nesta faixa etária. Isto não nos sinalizaria uma facticidade?

O saldo da pandemia

Ante a análise acima, podemos inferir que tentar controlar o evento por covid-19 apenas com medidas para deter o contágio tem sido nocivo à população, sobretudo à idosa, por ignorar as recomendações internacionais quanto à saúde mental. Ignorar este impacto pode trazer consequências ainda mais graves. Além disso, os idosos têm sido lembrados como objetos de cuidado e não como sujeitos; eles não têm sido ouvidos quanto a questões que lhes dizem respeito. Há que se considerar, ainda, que a rotina tem uma dimensão protetiva, tema tratado no segundo texto da séria; um aspecto positivo, deste momento, foi ter havido uma mobilização de parte da sociedade civil para as questões dos velhos, um novo despertar; a  pandemia  tornou necessário de acesso à internet e à tecnologia digital, que passam a constituir a cidadania após a primeira experiência pandêmica, seja como elemento de trabalho, seja como elemento de integração social, sobretudo para os velhos, tanto no teleatendimento quanto na interação social.

Por fim um desafio posto a todos nós, individual e/ou coletivamente, é a superação das diferenças sociais diante dos fatores velhos e novos a serem superados. Portanto,  devemos colocar este propósito na agenda, na pauta e, sobretudo, na prática política e administrativa. “Eu bem que mostrei… É hora … de aproveitar …” a janela do tempo, não vamos dar uma de Carolina, deixar o tempo passar na janela, e dizerem:  Só Carolina(2) não viu. Então mãos às obras.

Notas
(1) Cazuza in https://www.vagalume.com.br/cazuza/o-tempo-nao-para.html.
(2) Carolina, de chico Buarque, in https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/carolina.html

(*) Evaldo Cavalcante Monteiro – Terapeuta Ocupacional, Especialização em Gerontologia Social, Administração Hospitalar, Abordagem Sistêmica da Família e Método Terapia Ocupacional Dinâmica, Mestrado em Gerontologia Social e Doutorado em Educação e Professor da Especialização em Gerontologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. E-mail: [email protected]

Foto destaque de Kaique Rocha no Pexels

Atualizado no dia 09/11/2020 às 13h13


psicologia

O presente curso parte da compreensão que o estudo do envelhecimento humano é um campo multidimensional, multiteórico e comporta interlocuções com diversas abordagens teóricas e campos da psicologia. Partiremos da teoria desenvolvimental do ciclo de vida, do paradigma do LifeSpan, para estabelecer diálogos possíveis com algumas correntes teóricas e as áreas da psicologia tais como: a clínica; a social; a educacional e a da saúde dentre outras.

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