Cuidando de si e cuidando do outro

Cuidando de si e cuidando do outro

Que cuidemos de nós para poder cuidar do Outro. Sejamos amantes da vida, para poder celebrá-la em cada uma das suas manifestações. O nosso desafio maior é conviver com este outro.

Suely Tonarque (*) 


Falar das minhas lutas é o que desejo nestes tempos sombrios. Narrativa de mim. Nesta época de coronavírus sinto necessidade de me passar a limpo, numa proposta ética de voltar a mim mesma e às minhas relações afetivas. Caminho diminutos passos com Foucault (1926-1984), quando ele sistematiza o “conhece a ti mesmo” de Sócrates (470-399 a.C.) da antiga Grécia, e traz para a contemporaneidade o “Cuidado de Si”.

Para Sócrates, a prática do autoconhecimento se faz muito importante, porque um indivíduo que conhece a si mesmo será capaz de conhecer tudo que existe ao seu redor. Nas palavras de hoje, Sócrates pregava conhecer como nossa vida está programada, como é a nossa dimensão de subjetividade para conseguir poder sobre si mesmo e ter uma relação autônoma consigo.

Muitas vezes eu reflito na dificuldade dessa convivência com o Outro, seja este outro, um companheiro, irmãos, avós, amigos, etc. O nosso desafio maior é conviver com este outro, independente das suas diferenças de gênero, raça, classe social. E nossa melhor convivência advém do cuidado que temos com o outro, decorrente do cuidado conosco mesmo.

Segundo a famosa antropóloga Margaret Mead (1901-1978), o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga foi um fêmur quebrado e cicatrizado. Para ela, qualquer animal que quebrasse a perna morreria: não poderia se salvar dos perigos, beber água nos rios, caçar sua comida. Seria uma presa fácil para os predadores. Em outras palavras, o que Mead sinalizava é que um osso restaurado, em um ser vivo, colocava em evidência que alguém teve tempo para ficar com esse ser, tratou da ferida, até que se recuperasse. Ajudar alguém na sua dificuldade nos tira da barbárie e marca o início do mundo civilizatório.

Proteção com amorosidade

Tenho dois irmãos e duas irmãs, sou a filha mais velha da família, hoje com 68 anos de idade; foi necessário aprender desde muito pequena a dividir tudo com eles(as) – meus brinquedos, o meu quarto de dormir e, o mais difícil, o carinho e cuidado dos meus pais.

Tinha eu 5 anos quando meu irmão mais novo nasceu. Na verdade, era muita criança em casa, uma criançada pela casa toda e muita gente (tias, madrinhas, secretárias ajudando minha mãe).

Nasci em Rancharia, estado de São Paulo, morando neste local até os 10 anos de idade. Caracterizava-se como uma cidade pequena, mas que deixou uma quantidade enorme de lembranças na minha memória. Lembranças das brincadeiras na pracinha: esconde-esconde, pega-pega, passar anel, balança caixão. Tudo muito encantador, como nos aniversários dos meus irmãos(ãs), dos meus primos e primas. Todos esses acontecimentos significavam uma festa para nós e para os adultos que nos cuidavam e nos protegiam com amorosidade.

Quando nos mudamos para Araçatuba, no interior de São Paulo, uma cidade maior, plana, asfaltada e com muitas bicicletas, todas as tardes eu descia até a casa de uma professora para estudar, preparando-me para o exame de admissão e, possivelmente, entrar no colégio estadual da cidade.

Essa viagem era feita cautelosamente, já havia adquirido o hábito do local de usar bicicletas. Andava muito, de forma que ao chegar na residência da professora ou na volta para casa, transpirava demasiadamente, atravessada por um calor de 40 graus.

Consegui então entrar no Colégio Estadual da cidade, considerado instituição educacional de qualidade, uma vez que nesta época estudar em colégio estadual era considerado “sofisticado” e dava status aos estudantes que o frequentavam.

Minhas aprendizagens de conviver continuaram cada vez mais difíceis, na entrada da adolescência. O chamamento dos “desafios de viver”, impulsionavam minhas forças e meus desejos.

Hoje, muito tempo se passou, e cada um de meus irmãos(ãs) reside em um lugar do Brasil. Minha irmã, sócia na confecção de roupas, morava comigo, mas acabou confinada nesta quarentena em seu lar oficial, em Aiuruoca, no estado de Minas Gerais. Minha hipótese é que vai continuar por lá.

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Fiquei sozinha aqui em São Paulo, agradecendo as atitudes amorosas de conhecidos e amigas(os) próximas(os), conjugando o cuidado com o Outro. Falo em cuidado de si, que vai reverberar em cuidado do outro.

Nostalgia do convívio

Tenho sentido uma “certa” nostalgia do convívio com o Outro nesta pandemia, para compreender e aceitar melhor as diferenças individuais que foram limitações em vários momentos de minha vida. Isso inclui saber que o outro pensa, sente, age diferente de mim. Não esquecer que cada ser humano é uma unidade original e única e estamos no nosso melhor, quando servimos ao Outro.

No cuidado comigo, cuido da minha rotina diária. Converso com meus irmãos e irmãs, todos os dias, em vários momentos. As muitas diferenças entre nós vão aos poucos se integrando, são benéficas, mostram o quanto somos plurais. Nesta fase de covid-19, reflito muito sobre essas diferenças, a solidão de cada um e também sobre as atitudes de solidariedade dos amigos, das muitas pessoas que conheço, enquanto empresária de moda, mas também daquelas que não tenho intimidades, mas são generosas com os outros que encontram.

cuidando de si

Tenho alguns privilégios de morar em uma “vila” (rua fechada) de ter vizinhos que se ajudam mutuamente. Recebo todos os domingos almoço e jantar da melhor gastronomia do mundo. “Delivery!”, grita a vizinha.

Meu novo vizinho me socorre quando preciso participar de reuniões on-line e o microfone está mudo. Ele chega e, em um passe de mágica, aperta um botão e o microfone funciona. Obrigada amigo!! Um outro grupo de amigas me presenteou no Dia das Mães com um aspirador de pó. Disseram que sou mãe adotiva de todas elas. Muito agradecida!!!

Uma outra amiga atravessa a cidade, com máscara que afugenta vírus, para me presentear com seus deliciosos aperitivos e diz assim: – “sei que você gosta, mesmo sozinha vale a pena. “Que delícia!!

Os meus textos, manuscritos, são digitados por uma amiga que adivinha minha letra irregular e me entrega pronto. Obrigada!!

Fico refletindo nas atitudes dessas queridas pessoas, que enfeitam, colorem e iluminam os meus dias, que na realidade, estão tão cinzentos. Que cuidemos de nós para poder cuidar do Outro. Sejamos amantes da vida, para poder celebrá-la em cada uma das suas manifestações.

Este texto foi inicialmente publicado no Instituto para o Desenvolvimento Educacional, Artístico e Científico – Ideac, onde Suely Tonarque faz parte do Grupo de Reflexões.

Imagem de destaque de Siuza Tonarque, irmã e sócia de Suely, produção e fotografia de Roberto Loutrenço e Alexs de Jesus.


Suely Tonarque

Psicóloga, mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Empresária de moda. Autora do livro "Vestir com os Desafios do Envelhecimento" (Edições Portal, 2019). E-mail: [email protected]

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Psicóloga, mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Empresária de moda. Autora do livro "Vestir com os Desafios do Envelhecimento" (Edições Portal, 2019). E-mail: [email protected]

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