Convivendo com outros Pais? Um estudo sobre as filhas cuidadoras de idosos com Alzheimer

Introdução

A síntese dos indicadores sociais de 2004 do IBGE (2005) revelou que a proporção de idosos na população brasileira é cada vez maior. Em 2000, 30% dos brasileiros tinha de zero a 14 anos, e os maiores de 65 anos representavam 5% da população. Em 2050, esses dois grupos etários se igualarão: cada um deles representará 18% da população brasileira. Tais números revelam a importância das políticas públicas relativas à previdência, diante do crescente número de indivíduos aposentados, em relação àqueles em atividade. Também, se tornam cada vez mais importantes, as políticas de saúde voltadas para o idoso: se em 2000 o Brasil tinha 1,8 milhão de pessoas com 80 anos ou mais, em 2050 esse contingente poderá ser de 13,7 milhões.

Deusivania Vieira da Silva Falcão – pesquisadora mentora e Dra. Júlia Sursis Nobre Ferro Bucher Maluschke *

 

Acompanhando esse processo de envelhecimento, prevê-se um aumento na prevalência de doenças crônico-degenerativas, sendo a doença de Alzheimer (DA) a mais comum entre elas e, outras demências irreversíveis, as quais se tornarão cada vez mais relevantes no âmbito da saúde pública. A DA atinge cerca de 17 a 25 milhões de pessoas no mundo, considerando-se sua prevalência 1 a 1,5% entre os 60 e 65 anos e 45% após os 95 anos de idade. No Brasil, calcula-se que 1.200.000 de pessoas sofrem do mal de Alzheimer, muitas das quais ainda não possuem o diagnóstico porque ainda se espera muito para tomar providências quando um idoso apresenta problemas de memória. Como na maioria dos países a população morre com idade cada vez mais avançada, a incidência do mal de Alzheimer aumenta na mesma proporção (Canineu, 2002) constituindo um problema de saúde pública em todo o mundo. Estima-se que, só no DF, a doença afete 3,5 mil homens e mulheres acima dos 65 anos de idade.

Nesse cenário, a transição demográfica e a transição epidemiológica apresentam, cada vez mais, um quadro de sobrevivência de idosos na dependência de uma ou mais pessoas que suprem as suas incapacidades para a realização das atividades de vida diária. Estes sujeitos são na maioria das vezes, familiares dos idosos, especialmente, as mulheres, que, geralmente, residem no mesmo domicílio e se tornam as cuidadoras de seus pais, maridos, sogros e filhos (McGoldrick, 1995). Aliás,não é apenas no Brasil que as mulheres são as “grandes cuidadoras” dos idosos incapacitados: a maioria dos pesquisadores e dos dados coletados pelo mundo indica que, salvo por razões culturais muito específicas, a mulher é a cuidadora tradicional (Kinsella & Taeuber, 1992).

O presente estudo é uma pequena parte da tese de doutorado da autora, pois são relatados apenasresultados parciais da pesquisa piloto. Para este artigo apresentam-se os resultados dasinvestigações realizadas através de entrevistas com as filhas cuidadoras primárias de pais com adoença de Alzheimer. Objetivou-se investigar: as atividades de cuidado exercidas; quais os principaismotivos que levaram a cuidar do pai/mãe; como se sentem cuidando deles; e quais as outrasatividades que desenvolvem quando não estão cuidando dos mesmos. Este estudo visa fornecersubsídios que auxiliarão não somente na compreensão da temática em pauta, mas também nafundamentação de propostas sócio-políticas, educacionais e de apoio junto a famílias envolvidas coma situação. Aliado a essas questões, evidencia-se o fato de que são poucas as pesquisas sobre essetema na realidade brasileira.

Método

Local do Estudo e Participantes:

A pesquisa foi realizada no Centro de Referência em Assistência à Saúde do Idoso e Portadores daDoença de Alzheimer situado no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Participaram da pesquisa15 filhas cuidadoras de meia-idade, nível sócio-econômico médio, cujos pais (5 pais e 10 mães) eram atendidos nesse Centro.

Instrumento e Procedimentos:

A partir da revisão bibliográfica elaborou-se uma entrevista aberta com roteiro semi-estruturado. Apósa aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, a pesquisadora apresentou o parecer solicitando permissão junto ao coordenador do Centro deReferência para desenvolver a pesquisa. A partir desse momento, foi realizado um levantamento daamostra da pesquisa através dos prontuários dos pacientes atendidos pela equipe multidisciplinar doCentro, obedecendo aos critérios de inclusão. Por meio do prontuário, averiguavam-se: o diagnósticoclínico da doença, o resultado do mini-exame do estado mental, os aspectos das relações familiaresdo idoso, com quem o paciente morava, a avaliação psicológica do familiar cuidador, etc.

Após a seleção das possíveis participantes da pesquisa, telefonava-se para cada uma solicitando apresença junto ao centro em data e horário marcados. Vale ressaltar que no contato por telefone, reforçavam-se perguntas (ex.: como está o sr.(a) __ (idoso)? Quem cuida do sr.(a) __?) com o intuitode confirmar alguns critérios de inclusão e de eliminar a possibilidade do paciente ter falecido. Nocontato face a face, buscava-se estabelecer um rapport visando facilitar a relaçãoentrevistadora/entrevistada, explicando-se, de modo geral, os objetivos gerais da pesquisa e comoesta seria executada. Após as explicações, realizava-se a leitura conjunta do Termo deConsentimento Livre e Esclarecido e, caso a participante aceitasse, solicitava-se a assinatura damesma no termo. Logo após, iniciava-se o processo de entrevista que foram realizadasindividualmente, utilizando-se o gravador com autorização prévia da respondente. O tempo deaplicação era indeterminado, permitindo que a entrevistada falasse até quando julgasse necessário. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas segundo a técnica de análisede conteúdo proposta por Bardin (1976).

Resultados e Discussão

O cuidador familiar revela-se o ator social principal na dinâmica dos cuidados pessoais necessáriosàs atividades de vida diária dos portadores da demência a qual lhe tirou a independência. Através dasentrevistas constatou-se que as atividades de cuidado mais exercidas pelas filhas, foram: a) ajudar nobanho; b) preparar a alimentação; c) levar para o médico; d) passear / caminhar com o idoso. A títulode ilustração, apresentam-se algumas falas das participantes: “preparo a alimentação dela mas, elacome sozinha” (Giovana[1], 56 a); “…dou banhosóquedepois das palestrasqueeu assisti aqui nocentro estou apenas auxiliando porqueanteseu fazia tudo: passava o xampu na cabeça dela, ensaboava, enxugava… agoraeu dou o sabonetepraela se ensaboar, coloco o xampu na mão dela eelamesmalava a cabeça…” (Silvia, 48 a).

Globerman (1994) detectou que membros familiares cuidadores descreveram uma espécie de retornoda família aos cuidados primários os quais recebiam quando criança uma vez que eles possuem aresponsabilidade como cuidadores de acordo com as percepções próprias e com as expectativas dafamília em relação a eles. Tais expectativas são baseadas nas relações com suas famílias de origem. De acordo com Carter e McGoldrick (1995) quando as mulheres se rebelam contra ter de assumir atotal responsabilidade pelo cuidado, pela manutenção dos vínculos familiares e pela conservação dastradições e rituais, comumente se sentem culpadas por não continuarem a exercer o papelconstituído como uma obrigação feminina durante o ciclo vital. Quando ninguém mais entra parapreencher a lacuna pelo não exercício de tal obrigação, sentem que a solidariedade familiar está sucumbindo e que a culpa é delas.

Nesta pesquisa, as atividades mais exercidas pelas filhas quando não estavam cuidando de seuspais, foram as seguintes: a) prática de exercícios físicos; b) visita aos familiares e aos amigos; c)leituras, pinturas, etc., por exemplo:“faço caminhada” (Ana, 49 a); “visito os amigos aos domingos.Também tenho quecuidar de mim!” (Bel, 45 a).

Além das dificuldades psicológicas e físicas, os cuidadores tendem a enfrentar diversas dificuldadesfinanceiras e sociais (Sawatzky & Fowler-Kerry, 2003) durante o processo demencial do idoso. Odesenvolvimento de distúrbios de comportamento é um dos problemas os quais emergem comfreqüência durante a evolução da doença. Destarte, a vida do cuidador passa a ser influenciada tantopelos aspectos cognitivos como comportamentais da demência (Schulz & Beach, 1999). Assim, éfundamental que os cuidadores também desenvolvam atividades que propiciem o próprio bem estar.

Nesta pesquisa também foi constatado que os motivos principais pelos quais as filhas cuidam deseus pais são os seguintes: a) sentimento de obrigação filial; b) condição sócio-econômica (devido a:falta de emprego, aposentadoria, ter condições para sustentar o idoso ou disponibilidade de tempo); c) estado civil (por ser solteira, separada, nunca ter casado ou saído de casa); d) condição feminina; e) falta de opção; f) posição dos Irmãos (por ser a mais nova ou a mais velha); g) sempre exerceram opapel de cuidadoras na família. Como exemplo: “eu acho que é porsermulher e nuncatersaído dedentro de casa!” (Sofia, 42 a); “Eujá cuidava dela antes. Também, estou desempregada. Então,meusirmãos falam: ela tem maistempo!” (Diana, 59 a).

A Sociedade Espanhola de Geriatria e Gerontologia (2005), também destacou que a maioria daspessoas que cuida de seus idosos familiares acredita que essa atitude se trata de um dever moral,responsabilidade social e familiar, uma espécie de norma que deve ser cumprida. Outras razõesassinaladas pelos cuidadores para exercerem esse papel são as seguintes: a) motivação altruísta; b)reciprocidade; c) gratidão e estima; d) sentimento de culpa devido a algum erro cometido no passado; e) evitar a censura de amigos e familiares; f) aprovação social dos familiares e da sociedade em geralpor prestar esses cuidados.

No que diz respeito ao fato de como as filhas se sentem cuidando de seus pais com Alzheimer foivisto que 50,4% das unidades de análise foram favoráveis e 48% desfavoráveis, indicando quepossuem ao mesmo tempo sentimentos positivos e negativos diante da tarefa de cuidar. Comoexemplo dos sentimentos favoráveis: “eu acho queagoradepois de está cuidando dos meuspaiseusou maishumana!” (Paula, 56 a); “Acho que essa situação do paime fez crescermuito. Meurelacionamento comtodomundo melhorou!” (Rute, 55 a). Ilustrando os sentimentos desfavoráveis, cita-se: “Eume sinto muito cansada, nervosa!” (Júlia, 49 a); “É como se eu tivesse convivendo comuma outrapessoa e nãocomminhamãequerida e essa pessoame suga” (Gil, 57a).

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A despeito da sobrecarga, muitos cuidadores se sentem gratificados com os aspectos que envolvem a atividade de cuidar. Argumentando que a avaliação subjetiva e a constatação de que a atividade decuidado é uma realidade heterogênea, pesquisadores consideraram reducionista a posição deassociar direta e linearmente, as demandas e as dificuldades associadas ao cuidado a prejuízos àsaúde dos cuidadores. Diversos estudos nacionais e internacionais detectaram que o ato de cuidarpode gerar vários benefícios para os cuidadores, tais como: orgulho, gratidão, crescimento pessoal,senso de realização e de significado na vida, ou seja, os cuidadores podem vivenciar sentimentospositivos e negativos concomitantemente (Neri & Sommerhalder, 2002). Tais autoras revisaram váriaspesquisas, baseadas fundamentalmente nos modelos de estresse e de enfrentamento, além dosmodelos multidimensionais os quais indicaram a importância de focalizar de maneira complexa aexplicação da situação de cuidar.

Noutra pesquisa realizada com vinte mulheres cuidadoras familiares de idosos de alta dependênciaSommerhalder e Neri (2002) detectaram que alguns sentimentos positivos associados à atividade decuidar foram: crescimento pessoal; dar exemplo de solidariedade aos mais jovens; reconhecimentopor parte do idoso; senso de competência em relação à tarefa, tais como: se sentir vencedora diantedos demais familiares porque conseguiu realizar aquilo que os outros não realizavam; cumprimentode um dever cristão; senso de significado existencial; valorização social e senso de crescimentofamiliar, refletido pela melhora nas relações familiares, etc. Para Perracini e Neri (2002), diante dasdificuldades enfrentadas pelos idosos, não é aconselhável difundir a idéia de que, além de onerarem os sistemas previdenciário e de saúde, eles também causam prejuízos ao cuidador familiar, pois, talconcepção pode acarretar-lhes ainda mais rejeição e discriminação.

Considerações Finais

Conclui-se que a maneira pela qual a filha cuidadora e seus familiares lidam com a situaçãovivenciada pelos idosos com DA entrelaça-se às relações pessoais, transgeracionais e de parentescodesenvolvidas ao longo dos anos. Ocorre que à medida que a pessoa vai desenvolvendo a doença, há uma mudança de papéis entre os membros da família, alterando a dinâmica familiar. A forma comoavaliam e manejam a situação de cuidado depende de alguns fatores, tais como: os fatores depersonalidade dos envolvidos; o relacionamento anterior à doença entre os membros da família; asredes de apoio formal e informal disponíveis; as estratégias de enfrentamento; qual o significado decuidar; como as pessoas manejam o estresse e como buscam o conforto emocional.

Os resultados também apontaram que existem membros familiares os quais são delegados a exercerem determinados papéis, tais como, o de cuidar e, em situações específicas, sãorequisitadas a desenvolverem esse papel. Diante dessas informações é crucial incentivar edesenvolver programas de intervenção cuja pedra angular tenha como eixo central a família, osprojetos inovadores que favoreçam formas criativas de intervir, adequadas às realidades locais, com a participação da comunidade, otimizando os recursos existentes. De acordo com Karsch (1998) o cuidador, devidamente treinado, é parceiro no tratamento, assistindo o doente e participando dapromoção de sua saúde. Cuidadores de pessoas com a DA requisitam de força física, forçaemocional, conhecimento sobre a doença, e habilidade para lidar com o idoso.

Referências Bibliográficas

Bardin, L. (1976). Análise de conteúdo. São Paulo: Martins Fontes.

Canineu, P.R. (2002). Doença de Alzheimer. Em: V.P. Caovilla & P.R. Canineu (Orgs.). Vocênãoestá sozinho: elanão sabe que sou suafilha, maseu sei queela é minhamãe (p. 11-17). SãoPaulo: Abraz.

Carter, B. & McGoldrick, M. (1998). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.

Globerman, J. (1994). Balancing tensions in families with Alzheimer’s disease: the self and the family.Journal Of Aging Studies, 8, 211-232.

IBGE (2005). Síntese de indicadores sociais 2004 (On-line). Disponível Aqui

Karsch, U.M. (1998). Envelhecimento com dependência: revelando cuidadores. São Paulo: EDUC.

Kinsella, K. & Taeuber, C. M., (1992). An aging world II. Washington, DC: U.S. Government Printing Office.

McGoldrick, M. (1995). As mulheres e o ciclo de vida. Em: B. Carter & M. McGoldrick (Orgs.). As mudanças no ciclo de vidafamiliar: uma estruturapara a terapiafamiliar (pp. 30-64). PortoAlegre: Artes Médicas.

Neri, A.L. & Sommerhalder, C. (2002). As várias faces do cuidado e do bem-estar do cuidador. Em: A.L. Neri (Org.). Cuidar de idosos no contexto da família: questões psicológicas e sociais (pp. 9-63). Campinas, SP: Alínea.

Perracini, M.R. & Neri, A.L. (2002). Tarefas de cuidar: com a palavra, mulheres cuidadoras de idososde alta dependência. Em: A.L.Neri. (Org.) Cuidar de idosos no contexto da família: questõespsicológicas e sociais (pp.135-163). Campinas, SP: Alínea.

Sawatzky, J.E. & Fowler-Kerry, S. (2003). Impact of caregiving: listening to the voice of informalcaregivers. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 10, 277-286.

Schulz, R. & Beach, S. (1999). Caregiving as a risk factor for mortality: the caregiver health. Journal of the American Medical Association, 282, 2215-2224.

Sociedad Española de Geriatría e Gerontología (2005). ¿Quienes son los cuidadores de personas mayores dependientes (On-line). Disponível Aqui 

Sommerhalder, C. & Neri, A.L. (2002). Avaliação subjetiva da tarefa de cuidar: ônus e benefíciospercebidos por cuidadoras familiares de idosos de alta dependência. Em: A.L. Neri (Org.).Cuidar de idosos no contexto da família: questões psicológicas e sociais (p. 93-134). Campinas-SP: Alínea.

* Deusivania Vieira da Silva Falcão (Psicóloga, DoutorandaemPsicologia – Universidade de Brasília – UnB). E-mail: [email protected]

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