Chuvas e uma paixão literária

As chuvas são carinhosas, românticas e sensuais. Elas arranjam ou inventam tempo e argumentos para a desculpa. Quando não conseguem, assumem a culpa.


Chuvas! Pra mim, esta é maior de todas as magias da natureza. Feminina, intensa, suave e fluida é puro desejo e intenso prazer. Para defender a natureza ela mata, destrói. Para libertar, deixa a terra no cio, insemina, procria, revive, gesta, ressuscita e reencarna quanto for preciso. Para quem nasceu e sobrevive no Nordeste brasileiro, existe um pacto de amor incondicional com as chuvas. Quando elas chegam, molhando barro rachado e seco há mais de dois anos, marejam os olhos sertanejos. É terra com mais de 40ºC na superfície. Molhada levanta o mormaço, cheiro de barro, de terra grávida.

Pra mim, as chuvas são carinhosas, românticas e sensuais. Elas arranjam ou inventam tempo e argumentos para a desculpa. Quando não conseguem, assumem a culpa. Um dia, sob uma intensa chuva, ou intenso, pois já era um temporal, em um ano da década de 1980, arrisquei amanhecer junto ao dia, tomando o que um dia foi chuva, agora alcoólicas e engarrafadas umas tantas cervejas. Prometi não pedir ajuda à maldita matemática para contar quantas (aquela década, todos os números conspiravam a meu favor) até ver o primeiro nascer de um dia, em companhia de uma grande paixão.

Para esta paixão eu queria, precisava como nunca, beijar e tocar o sensual corpo que a água da chuva, cúmplice, culpada e conivente, colara a roupa para revelar formas, curvas e relevos, confirmando o que vivia no meu imaginário. Logo falamos de futuro até o completo amanhecer de um dia cinza, trôpego, feliz, molhados e alcoolizados. O Estoril era um bar dos anos 80 que emprestava aos boêmios e aos loucos de paixão, um cenário pleno, perfeito de frente para o mar de Iracema. Ele sabia de boêmios e paixões. Naquela noite estava mais boêmio e encantador, era pura magia, arriscou fazer aquele dia ter 72 horas contínuas. E conseguiu.

Mas, assim uma noite de bem boa chuva, mesmo durante o mês de junho de 2020, em isolamento domiciliar, imposto pela pandemia do COVID-19 e ouvindo Nara Leão, para aquecer a paixão que nasceu lá no Estoril, acender à noite, apagar uns intransigentes e tenebrosos pensamentos sobre a pandemia, eu e Socorro, resolvemos abrir um Malbec, um Cabernet, depois um Syrah. Logo, ao final do Cabernet resolvemos “convidar” escritores, cronistas, músicos e fotógrafos para nossa conversa. Encontro logo Antônio Maria, cronista, músico e escritor. Edu Lobo, Elis Regina e meu parceiro de muitas longas noites, Chico Buarque com a “História de Lily Braun”.

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Esta conversa sobre grandes personagens e maravilhosas histórias estava ótima. Chegamos à fotografia: magníficos fotógrafos. Os contemporâneos Alcebíades Silva e Mauri Melo. Universais, Cartier Bresson, Robert Capa e Sebastião Salgado (obrigado Sebastião por sua posição ambientalista e capacidade entendedora de vidas, de todas as formas, as mais vulneráveis, principalmente). Um dos melhores fotógrafos do planeta. Veio também Pierre Fatumbi Verger, para contar histórias da África, fé, crenças, minorias, negros e mulheres através de uma lente. Histórias contadas em avos de segundos dentro de um universo preto e branco.

Para ilustrar a conversa, justificar a abertura do Syrah, e emocionar mais, fui à minha biblioteca “trazer” os três fotógrafos, Sebastião Salgado, Capa e Pierre Verger. Demorei um pouco com meu Pierre Verger nas mãos. Estava pesado, sólido e enrugado. Havia algo errado. A primeira tentativa, repleta de ansiedade, parou ao tentar abrir o livro. Estavam todas as páginas coladas umas as outras. Uma chuva, logo uma chuva, encontrou uma fresta feita no telhado pelo mais presunçoso dos animais: gatos. A telha deslocada se fez goteira e, bem primeiro que eu o visse, ela achou o meu Verger. Foi a óbito afogado nas águas de uma bem desqualificada goteira! A noite acabou com o Syrah bem antes da metade, arrolhado outra vez e de volta à geladeira.

Foto de destaque: Alcides Freire Melo


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Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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