Envelhecer ativa ou ficar frágil, quais serão minhas limitações? Como a grande maioria da população e dos residentes da minha ILPI, não pensamos em envelhecer, simplesmente chegamos lá.
Marcia Freire (*)
Cara Marcia,
Venho por meio desta carta, dez anos após ela ser escrita, saber como você chegou aos seus 60 anos. Meu nome é Marcia Freire, hoje com 46 anos e no segundo casamento. Meu esposo Paulo é uma pessoa extremamente generosa e parceira, muito motivado e animado. Me apoia na maioria dos meus sonhos e desafios. Sou muito feliz com esse casamento. Temos juntos um lindo cachorro Pepito, que me dá muito trabalho, faz xixi pela casa toda, mas é nossa alegria. Hoje minha filha Karine de 27 anos está morando há 9 anos fora de casa, foi com sentimento de luto a saída dela da nossa casa, um dos piores momentos já enfrentados por mim.
Você sabe o quanto vivemos intensamente em 2011 a 2013, quando parei minha vida para poder cuidar de minha mãe devido as suas doenças, fazia tratamento oncológico e de Hemodiálise, posteriormente passando a fazer diálise em casa, e Karine foi muito guerreira. Juntas enfrentamos esse grande desafio. Talvez por nossas lutas sempre juntas, tenha sido tão difícil a partida dela (minha segunda vez enlutada, primeira com o falecimento de meu pai). Mas sei que ela está se realizando profissionalmente, cresceu tanto e está casada com um rapaz que eu considero meu filho de tão querido.
Então, tenho conforto em meu coração. Eu também ganhei um enteado, Pedro, tem 22 anos, muito inteligente e esperto, é carinhoso e não se mete em confusão, um jovem bem atualizado. Pedro nos deu um netinho, a coisinha mais graciosa do mundo. Morando longe, então não temos muito contato com o pequeno. Ainda espero meu netinho vindo da Karine, espero que não demore muito.
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No trabalho enfrento muitos desafios. Há 10 anos venho matando um leão a cada dia, mas sinceramente, me diga que deu tudo certo. A Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) que implantamos espero que tenha sido um dos maiores sucessos da minha vida, pois me dediquei todos os dias para esse legado. Foram dias de luta e glória, a cada residente que me abraça, me chama de filha ou de mãe, isso não tem preço, ver nos olhos enrugados dessas pessoas a gratidão de ter alguém dando atenção e amor, após anos de vida.
Realmente é isso que eu quero fazer, mas não só para os 20 residentes que hoje temos na casa, mas para todos os idosos do Brasil, e se Deus me permitir, do mundo. Quero que todos saibam que são amados e que sua vida valeu e vale muito e agora é hora de descansar, de colher os frutos e continuar plantando os da maturidade.
Hoje estou buscando alternativas para alcançar meu propósito, espero ter encontrado. Em 2020 me candidatei pela primeira vez para cargo de vereadora da cidade, tenho muitos projetos, consegui 101 votos de apoio à nossa causa, ficando como suplente, acredito ter sido uma vitória para quem caiu de paraquedas nesse segmento.
Mas estou me preparando para daqui 4 anos voltar com força e desta vez conseguir fazer algo diferente e que precisa ser feito. Estou me capacitando diariamente para ser capaz de alcançar este objetivo de vida que é ajudar pessoas, nestes últimos meses estive fazendo o curso de Fragilidades na Velhice: gerontologia social e atendimento, da PUC-SP, e tenho refletido mais que o normal sobre meu propósito, sobre como cuidar melhor das pessoas da terceira idade e como será nosso futuro.
Por trabalhar com pessoas mais idosas e em situação de muita fragilidade, eu sofria muito no início, pois não tinha conhecimentos de Gerontologia. Cada perda era como se um familiar estivesse partindo, passava por um período de luto; quando estava quase me recuperando, outro familiar (residente) dizia adeus. Achei que era um sofrimento que não iria acabar, que iria ficar sentindo isso toda vez que alguém deixasse a casa, mas como um médico se acostuma com as feridas que chegam para cuidar, me acostumei com as partidas, nunca são fáceis, mas hoje, com alguns conhecimentos adquiridos, sei lidar melhor.
Hoje reflito mais e fico pensando: e quando acontecer comigo, como estarei? Envelhecer ativa ou ficar frágil, quais serão minhas limitações? Como a grande maioria da população e dos residentes da minha ILPI, não pensamos em envelhecer, simplesmente chegamos lá. Alguns com todas condições financeiras, físicas e biológicas perfeitas, outros com lucidez e sem condições físicas, outros sem lucidez, mas com condições físicas. Cada um envelhece de um jeito, é um enigma como será nossa velhice. Eu imagino que você tenha lido muitos livros, feito muitas palestras, seja conhecida em todo o Brasil como a Marcia Freire, autoridade nos cuidados com idosos. Espero que esteja realizada no seu âmbito profissional.
As pessoas não veem os idosos como pessoas que fazem parte de uma sociedade, ativas, com algo a agregar. O velho hoje não tem valor, está ultrapassado e desatualizado. A sociedade considera que ele não tem mais condições de aprender nada novo ou ser útil, então são colocados de lado nas empresas, nas ruas e nas suas próprias casas. Suas opiniões deixam de ser importantes ou relevantes no seu meio. Agora, fica minha apreensão, como isso vai ser já que que estamos nos tornando um país grisalho, com a população tendo uma expectativa de vida maior e índice de natalidade cada vez menor? Como estamos? Eu espero que agora tudo tenha mudado, e que nossos idosos tenham um papel mais significativo em nossa sociedade atual.
Hoje, em 2020, as instituições lutam para sobreviver pois na grande maioria os seus residentes são de classe média que não têm amparo governamental como as pessoas de baixa renda e nem condições financeiras para contratar uma equipe à sua disposição como os idosos de alta renda. Esses idosos ou seus familiares buscam instituições de longa permanência, essas pessoas têm muita dificuldade em arcar com os custos da mensalidade da instituição. Então, para poder atender esse público de classe média, as instituições têm uma mensalidade mais acessível, dificultando, assim, sua sobrevivência no mercado.
Com dificuldades financeiras, estas instituições, muitas filantrópicas, vivem de pires na mão e, se não bastasse, contam com um agravante, que é a mão de obra. Não todos, mas grande parte dos funcionários de ILPIs parece que se acostumou com trabalho industrial, fazendo suas tarefas no automático, para cumprir a atividade e bater ponto. É necessário contarmos com pessoas que realmente trabalhem comprometidas e por amor a essas vidas, pois poderiam ser seus pais, tios ou avós, por isso temos que ter amor em primeiro lugar. E, por outro lado, a legislação rígida e fria no sentido do cuidado. O papel é diferente da realidade.
Um processo enrijecido. Vivenciamos uma realidade que é individual, mas que é engessada para uma população acima de 60 anos, como se todos fossem iguais.
Entendo que precisamos de normas porque nem todos fazem o trabalho por amor. Mas, infelizmente, uns bons acabam pagando pelos que fazem um mal trabalho. A lei é fria, trata uma ILPI como se fosse um hospital, residentes não têm liberdade, como se estivessem em sua casa que é o que deveria ser – na verdade nem nós somos donos do processo. Tal hora é comida, tal hora é remédio, tal hora é banho, tal hora são jogos, tal hora é tv, tal hora é… e tal dia é médico. tal dia é passeio, tal dia … e por aí vai. Me diz, a legislação avançou em algo desde essa época? Já podemos ter animais nas instituições? E como vão os projetos de inclusão? O distanciamento entre gerações diminuiu?
Depois de todas essas lembranças, vamos falar de coisas boas. Hoje é o seu aniversário de 60 anos. Uma linda festa está sendo organizada? Os convidados estão chegando? Onde será esta festa? Quem são estas pessoas? Família, amigos ou pessoas que você conheceu há pouco tempo? Como você está vestida? Se sente bem? Está com saúde?
Agora me diga, como você está hoje, se está onde pensamos que iria estar ou a vida nos surpreendeu? Se acaso a resposta for positiva fico imensamente feliz, mas se não for boa, fico triste.
Agora é a hora de você iniciar uma nova carta, fazer diferente com um novo olhar para o amanhã, aplicando suas experiências e sabedorias adquiridas…
Ps. sabe aquela música lá da festa, gostaria muito que fosse – O que É, o que É? do Gonzaguinha:
…Viver
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita...
Beijos, até breve,
Marcia Freire
Varginha, MG 21 de novembro de 2020
(*) Marcia Freire é proprietária de uma Instituição de Longa Permanência para Idosos em Varginha, MG. Esta carta fictícia foi escrita durante o curso de extensão Fragilidades na Velhice: gerontologia social e atendimento, da PUC-SP, no segundo semestre de 2020.
Foto de John-Mark Smith/Pexels
Atualizado às 17h59