Carta-aberta à população brasileira

Carta-aberta à população brasileira

São incompreensíveis e inadmissíveis retrocessos nos direitos das pessoas idosas arduamente conquistados por lutas sociais ao longo dos anos.

“A luta deve continuar para haver políticas públicas que gerem oportunidades iguais para todos” (Zilda Arns)


Atualmente, o Brasil apresenta cerca de 34,6 milhões de pessoas com 60 anos ou mais de idade (portanto, idosas de acordo com a definição da Organização das Nações Unidas, ONU), sendo em termos relativos, 16% da população total, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – PNAD-Contínua, 2020). A ONU define um país como ‘envelhecido’ quando a proporção de pessoas acima de 60 anos ultrapassa 14%. Antes do ano 2050 chegaremos a 30%. Este envelhecimento extraordinariamente rápido acontece em um contexto de grande pobreza e intolerável desigualdade social. A pandemia de Covid-19 agravou ainda mais o fosso da desigualdade. Portanto, são incompreensíveis e inadmissíveis retrocessos nos direitos das pessoas idosas arduamente conquistados por lutas sociais ao longo dos anos. É premente que os legisladores de políticas públicas respondam com maior efetividade e celeridade na garantia dos direitos estabelecidos no arcabouço das leis desde a Constituição de 1988, a Política Nacional da Pessoa Idosa e o Estatuto da Pessoa Idosa.

As pessoas idosas alcançaram, com grande esforço, o reconhecimento de seus direitos e liberdades por convenções, leis e estatutos que devem ser mantidos e aprimorados, com participação da sociedade e dos Conselhos representativos tão importantes nas conquistas obtidas. Logo, quaisquer alterações legislativas devem ser analisadas sob o ponto de vista das conquistas e avanços dos direitos humanos das pessoas idosas.

O Decreto nº 9.921, de 18 de julho de 2019, editado pela Presidência da República, consolidou inúmeros decretos anteriores sobre direitos das pessoas idosas. Suas normas dispõem sobre a Política Nacional da Pessoa Idosa, coordenada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que, em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI), deve zelar pela aplicação das normas de proteção à pessoa idosa.

Com o propósito de incentivar as comunidades e as cidades para promoção do envelhecimento ativo, saudável, sustentável e cidadão, o Decreto regulamenta a Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa, com protagonismo destas pessoas e atuação conjunta dos órgãos, conselhos e organismos internacionais. Um dos objetivos da Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa seria fortalecer os Conselhos de Direitos das Pessoas Idosas e a rede nacional de proteção e defesa dos direitos da pessoa idosa. O Conselho Nacional, inclusive, tem prevista sua participação nas reuniões do Comitê Gestor da Estratégia, de natureza deliberativa, com “direito a voz”, como consta da lei, embora sem poder votar.

Recentemente, foi publicado o Decreto nº 10.604, de 20 de janeiro de 2021, que altera o Decreto nº 9.921, afastando, logo de início, a expressão utilizada com neutralidade de gênero “Política Nacional da Pessoa Idosa” passando a usar a expressão de gênero masculino “Política Nacional do Idoso”, tanto no título da Seção I, como nas outras nove vezes de menção da Política Nacional, além de retirar a participação dos Ministérios de Comunicação e Cidadania, bem como do Comitê Gestor da Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa das políticas para pessoas idosas.

A participação do Ministério das Comunicações ocorria em articulação com os Ministérios da Educação, Saúde, Ciência, Tecnologia, Inovações e Cidadania junto às instituições de ensino e pesquisa para aprimorar condições de habitabilidade e o Ministério da Cidadania participava dos programas educacionais em todos os níveis, sendo substituído pelo Ministério do Turismo para acesso às atividades culturais. No âmbito da seguridade social retira a competência do Conselho Nacional mantendo apenas os Conselhos Setoriais. A Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa passa a ser atribuição do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa afastado o seu Comitê Gestor da elaboração de diagnóstico sobre o protagonismo e participação da pessoa idosa e plano das ações a serem executadas pelos Municípios para a população idosa.

Cabe acentuar que mesmo antes do Decreto 10.604, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas manifestaram suas reservas quanto à implementação de projetos “amigos das pessoas idosas” – seja pela falta de transparência da maioria das iniciativas, seja pela falta de rigor científico em implementá-los. Difícil pensar em Brasil como amigo da pessoa idosa quando milhões de brasileiros envelhecem prematuramente e mal e encontram-se no umbral da “velhice” sem um mínimo de condições que lhes garanta qualidade de vida. Além disso, muitos idosos se veem obrigados a voltar ao mercado de trabalho para complementar ganhos da aposentadoria – e encontraram a dupla barreira de, para muitos, baixa habilidades, combinada pelo idadismo disseminado. Muitos são arrimos financeiros de seus domicílios, com frequência a única fonte regular de renda de toda a família. Torna-se imperativo um olhar diferenciado às diversas faces das velhices na vigência das políticas públicas e garantia dos direitos estabelecidos.

O novo Decreto, que entrará em vigor em maio deste ano, deixa de seguir o protagonismo dos Direitos Humanos universais, não bastando que o Ministério de Direitos Humanos, hoje inserido no mesmo Ministério de temas sensíveis “Mulher e Família”, deixe de protagonizar sua amplitude.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, assinada pelo Brasil, como parte dos povos das Nações Unidas, compromisso internacional da maior relevância, prevê no seu artigo 30 o Princípio da vedação de retrocesso que impede qualquer atividade ou ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades estabelecidos da Declaração.

O Projeto de Lei 3646/19 proposto pelo Senador Paulo Paim, um dos redatores originais do Estatuto, prevê modificar o nome da lei para Estatuto da Pessoa Idosa. O alcance é no sentido de que a palavra masculina, carregada de simbolismo do patriarcado, seja substituída para haver inclusão de gênero, com respeito à igualdade constitucional e considerando o peso demográfico feminino e a dupla vulnerabilidade no seu envelhecimento. Foi aprovado por unanimidade no Plenário do Conselho Nacional, o uso da expressão Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, sem prejuízo da manutenção da sigla CNDI, bem como a substituição de “idoso” por “pessoa idosa” em todos os textos oficiais e outras ações, tais como Ano da Valorização das Pessoas Idosas; Prêmio Nacional das Pessoas Idosas.

O novo Decreto vem exatamente em sentido contrário, em afronta ao artigo primeiro da Declaração de Direitos Humanos, que afirma a igualdade em dignidade e direitos, e o art. 5º da Constituição Federal que estabelece a igualdade de gêneros, em nítido descompasso com a evolução jurídica contra a violação de direitos das mulheres de responsabilidade do Ministério da Mulher, o que soa contraditório e ilegal.

Não obstante, ao se referir às pessoas mais velhas, a nova lei mantém na ementa e artigos a expressão “Pessoa Idosa”, denotando que a pretensão de mudança é relativa à Política Nacional, em descompasso ao que o mundo avança quanto à equidade e igualdade de gênero como princípios que devem ser incorporados em todas as políticas e programas.

O Brasil, em 2002, reuniu-se na II Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, em Madri, adotando um Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento (PAIE) para responder às oportunidades e desafios do século XXI no desenvolvimento de uma sociedade para todas as idades. Reafirma seu compromisso de não limitar esforços para promover a democracia, reforçar o estado de direito e favorecer a igualdade entre homens e mulheres, promovendo e protegendo os direitos humanos e as liberdades fundamentais, o direito ao desenvolvimento e o compromisso de eliminar todas as formas de discriminação. O PAIE reforça a necessidade de criar um meio ambiente apropriado para que as pessoas idosas possam exercer de forma plena uma vida ativa e saudável, em coerência com o Marco Político do Envelhecimento Ativo, da Organização Mundial da Saúde, lançado na própria Assembleia Mundial em Madri. O Plano também reconhece que a perspectiva de gênero deve incorporar-se em todas as políticas e programas com vistas às necessidades e experiências tanto de mulheres como de homens idosos. Outro aspecto central do PAIE é enfatizar que as pessoas idosas são fundamentais para o processo de desenvolvimento social e econômico, revertendo o enfoque ultrapassado que não reconhecia tal papel abrigando um enfoque filantrópico e paternalista.

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Outro compromisso inserido no PAIE diz respeito à comunicação, propondo a elaboração de um marco normativo para o reconhecimento das contribuições passadas e presentes das pessoas idosas, em resistência às ideias pré-concebidas, através da linguagem e narrativa das pessoas idosas. Estabelece objetivos e medidas dentro do contexto da comunicação, cujo Ministério é afastado pela nova lei.

Ao substituir o Comitê Gestor da Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos na elaboração de diagnóstico sobre o protagonismo e participação da pessoa idosa e das ações a serem executadas, a nova lei impede tal protagonismo, quanto às políticas públicas, programas, ações e serviços ou benefícios a serem desenvolvidos em interesse do envelhecimento ativo, saudável, cidadão e sustentável, primeira diretriz legal da Estratégia. Perde-se o “direito a voz” contido no art. 29 § 4º do Decreto originário, que ressalte-se, já estava em desacordo à relevância do CNDI.

Afastar o Ministério da Cidadania dos programas educacionais e substituí-lo pelo Ministério do Turismo desvirtua absolutamente o objetivo da educação continuada, ao longo da vida, limitando capacidades e oportunidades e efetivação da cidadania das pessoas idosas, transferindo responsabilidades e afetando a dignidade cidadã. O decreto seria mais assertivo se atribuísse ao Ministério da Educação este propósito, tendo em vista a necessidade de inclusão da pauta Envelhecimento nos currículos escolares, como prevê o Estatuto da Pessoa Idosa.

O cumprimento das normas existentes e dos compromissos internacionais de nosso país sustenta ser fundamental a contribuição das pessoas idosas para o desenvolvimento do Brasil em condições de igualdade. A Lei nº 8.842/94, no capítulo I, art.1º, tem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade e que está em consonância com o Estatuto do Idoso, Lei 10247/2003, que no art. 10 “É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”.

Os Decretos citados (números 9.921/2019 e 10.604/2021) distanciam-se do que foi afiançado à população idosa nos marcos legais vigentes. Eles ferem profundamente os princípios das Leis referidas, numa abordagem top-down (de cima para baixo), negando a participação cidadã da pessoa idosa de forma representativa nos conselhos de direitos, retirando voz, protagonismo e cidadania de um grupo crescente de brasileiros e brasileiras. O movimento social de garantia de diretos da população idosa tem na sua história diversas lutas e conquistas, com avanços significativos na definição das políticas públicas necessárias para um envelhecimento digno, com ações estruturantes, transversais, interministeriais e complementares nos diversos pilares temáticos necessários ao longo da vida.

No entanto, temos no Decreto, em especial de nº 10.604/2021, a substituição dessas conquistas por ações governamentais que estão em desacordo com as reais demandas apresentadas pela população idosa, que aumenta de forma célere, sem a atenção necessária do Estado brasileiro para disponibilizar os serviços e equipamentos coletivos, que essa população precisa.

Destaque-se que foi criada a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, Lei nº 13.345/16, que conforme Art. 19, Inciso II, tem a competência de coordenar e propor ações de aperfeiçoamento e fortalecimento da Política Nacional do Idoso, conforme o disposto na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do Idoso.

O presente documento é assinado por um grupo de representatividade nacional denominado Intercâmbio 60+- Movimento Nacional de Ativistas dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa, que apresenta em sua essência a intersetorialidade. O Intercâmbio 60+, composto por profissionais de diversas áreas de atuação e instituições da sociedade civil e públicas, que buscam transformar a realidade por meio da ação prática e da construção de valores em prol de um novo paradigma em que a pessoa idosa usufrua em sua plenitude de todos os direitos já conquistados, considerando a complexidade do contexto brasileiro atual.

Este movimento tem como visão implantar uma cultura de respeito à pessoa idosa por meio da realização de mobilizações populares e com natureza política na proteção da pessoa idosa, apoiando ações comunitárias e de estudos sobre a o processo de envelhecimento e a apropriação das experiências. E sua missão é conscientizar a sociedade da importância do envelhecimento humano assim como na defesa e promoção dos direitos da pessoa idosa.

A finalidade do Intercâmbio 60+- Movimento Nacional de Ativistas dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa é promover ações de formas preventivas compartilhando soluções, problemas e ideias sobre a causa da pessoa idosa. Com objetivo geral de expandir o conhecimento sobre o envelhecimento humano em diversas realidades, promovendo a troca de informações e experiências e elaborando projetos de políticas públicas voltadas as Pessoas Idosas do planeta através das trocas de informações e necessidades específicas em cada região e ou país.

Foto de Mehmet Turgut Kirkgoz/Pexels


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