Aos nossos pais

Aos nossos pais

Um músico de meia-idade, solteiro convicto, faz um acordo com uma russa: casar no papel em troca de dinheiro. A mulher acaba fugindo para a Alemanha, porém deixa o filho de 6 anos em Praga. O músico, “oficialmente o padrasto”, terá que cuidar da criança, o que se revelará para ambos uma experiência única em suas vidas. Texto dedicado aos pais presentes e, à todos aqueles, infelizmente, ausentes.

 

Segundo domingo de agosto: dia dos pais. Confesso que algumas datas, especialmente para certas pessoas, como eu, são, no mínimo, muito difíceis de comemorar, quanto mais escrever sobre elas. Aí pensei, como poderia homenagear meu próprio pai e, ao mesmo tempo, todos os outros, ausentes e presentes. Em que recantos eu buscaria as melhores palavras, os sentimentos mais ternos, o olhar mais generoso e o mais doce dos amores?

Sim, no cinema e, nada mais apropriado que, a singela história de “Kolya, uma lição de amor” (1996).

Jan Sverák (o diretor) usou um roteiro de seu pai, também protagonista do filme, Zdenek Sverák, para criar um trabalho humano, sensível que leva o espectador a reflexão, as raias da emoção, sem pieguices ou doçura excessiva.

Este belo filme tcheco, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1997, vale cada segundo. Impossível não se emocionar com a leveza e ingenuidade no olhar carente do menino russo cruzando com a do homem livre, solteiro convicto, conquistador incorrigível, quase um espécime masculino sem solução.

Ao rever “Kolya” conclui que as coisas boas da vida se eternizam, algumas vezes, na saudade que insiste em não passar (mesmo com o correr dos anos e a maturidade), outras no desejo de sacralizar um momento único e encantado, num registro mágico que permanecerá na memória e no coração.

É, o tempo não apaga certas lembranças: brincadeiras marotas de infância, broncas dadas apenas pela expressão severa do pai, pelo levantar das sobrancelhas ou um leve torcer de orelha, aquele terrível leite com nata e tantas outras peraltices que eu poderia ficar horas escrevendo. Eu tenho as minhas e, você, com certeza, têm as suas.

Voltando para a história, “Kolya, uma lição de amor” gira em torno de um certo violoncelista decadente, Frantisek Louka, um homem de 55 anos de idade que não hesita em dizer “sou contra casamento de qualquer tipo”. Além de suas aventuras amorosas, ele vive com graves problemas financeiros. Expulso da Orquestra Filarmônica de Praga, resultado de perseguição do governo comunista, o único jeito de sobreviver que ele encontra é tocando em funerais e restaurando lápides de cemitério.

Aparentemente, sem nenhuma sensibilidade para a vida em família, duro e egoísta, Louka recebe uma arriscada proposta de um amigo: uma negociação de casamento com uma russa que não quer voltar para a União Soviética de Gorbachev. Inicialmente, ele recusa, mas o dinheiro fala mais alto e a união acaba acontecendo.

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Um grande negócio? Não, a coisa se complica com as autoridades e, de quebra, o homem recebe, nada mais, nada menos que um garotinho russo de 6 anos de nome Kolya (Andrei Chalimon). Deixado na porta de sua casa – a mãe foge para a Alemanha e a avó morre – não tendo mais para onde ir, de nariz escorrendo, cadarços dos sapatinhos soltos e uma fragilidade de dar dó aos mais empedernidos corações, Louka não tem saída, senão receber em sua vida esse “serzinho” indefeso.

Como o homem aceitou o casamento, ele passou a ser o único responsável pelo menino. E, para não ter mais problemas com as autoridades, ainda precisa fingir que se trata de uma relação legítima.

No início, os dois sofrem com a nova situação. O homem é egoísta demais para conseguir se preocupar com outra pessoa e para piorar, Kolya sente falta da família. Mas, aos poucos, esse encontro acontece e se realiza de forma preciosa, terna, alimentado pelo afeto, pela atenção às necessidades do outro, pela meiguice, pela adivinhação dos desejos não expressos, pela compreensão da tristeza alheia. Um amor que cresce com a mesma vibração, no mesmo tom, e que deixa de lado as diferenças políticas e sociais.

Louka amadurece, renasce, refaz sua vida no convívio com o inesperado, na pureza de Kolya que sente nesse estranho homem o afeto e o calor do “pai”, adotado pelo coração.

O filme é repleto de cenas encantadoras como ver Louka dando banho no menino (“vou acender a luz para você não ter medo”), lidando carinhosamente com a saudade que o pequeno Kolya sente da avó (ela não está morta: “está dormindo”), comprando sapatinhos de criança, cuidando na febre alta, comprando os cinco ingressos de cinema para que o pequeno possa ver seu desenho e, ainda, não se incomodando em ligar para uma professora de russo no meio da noite para que ela conte uma história infantil pelo telefone, assim o sono e o prazer vêm mais rápidos.

Sem falar quando Louka, distraído em flertar com uma jovem, perde Kolya na estação de trem (“Que susto você me deu” e eles se abraçam, como pai e filho) ou quando usa o chuveirinho do banheiro como telefone para simular uma conversa com a avó.

Quando os dois já estão completamente adaptados à situação e, acima de tudo, felizes um com o outro, a mãe do menino volta para buscá-lo, depois da chamada Revolução de Veludo, que tirou os russos do poder na antiga Tchecoslováquia, em 1989.

Apesar do fundo político que atravessa toda história, o diretor Sverak realiza um trabalho com extrema humanidade, sem deixar de ressaltar como as circunstâncias históricas podem interferir na vida das pessoas.

Mas, fazer parte do encontro do garotinho Kolya com seu pai do coração, Louka, faz a vida valer cada instante, faz renascer a esperança e trazer, como se fosse hoje, o cheiro, o abraço gostoso e protetor do pai e seu filho(a).

Dedicado aos pais presentes e, à todos aqueles, infelizmente, ausentes.

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=CFwdasQlPrc

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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