Antonio Carlos Ribeiro Fester

Defini-lo é “tarefa” árdua. Antonio Carlos é professor de Literatura e de Direitos Humanos (para policiais militares, inclusive), profundo conhecedor da Bíblia, católico praticante, escritor, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. E aqui entram uns três “etc”. Nos recém-completados 69 anos (dezembro passado), considera a velhice “natural”. Assim a define: “Alguns a negam, outros não conseguem fazer a síntese, outros – a maioria – têm seus problemas acentuados, a morte torna-se assustadora”.

Guilherme Salgado Rocha / Fotos: Alessandra Anselmi

 

janeiro 2013/antonio-carlos-ribeiro-festePortal – Prezado Antonio Carlos… Diga-nos seus dados pessoais, por favor. Nasceu na capital?

Antonio Carlos – Nasci na cidade de São Paulo, no dia 27 de dezembro de 1943. Sou filho único de Raimundo Fester, que era escriturário municipal, e de Aurora Ribeiro Fester, professora, inclusive de excepcionais. Sou neto, pelo lado materno, de Antonio Pereira Ribeiro, protético, e Leopoldina Vieira Ribeiro, professora. Pelo lado paterno, de Karl Heinrich August Emil Fester, importador/exportador, e de Maria Izabel Dias de Aguiar Fester, dona de casa.

Portal – Você falava agora há pouco do seu batismo e de um diploma na parede…

Antonio Carlos – Sim, comentava sobre o batismo porque tive os melhores padrinhos do mundo. Fui batizado no dia 14 de maio de 1944, na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, tendo como padrinhos Constância Motta Romeiro Pinto e José Romeiro Pinto, falecidos. Sobre o diploma, é o da primeira comunhão, o único diploma que faço questão de ter na parede, pois considero a Eucaristia o centro da minha vida. A primeira comunhão foi na inauguração da capela do Colégio Sion, onde minha mãe (foto) lecionou, isso no dia 28 de outubro de 1951. Quem me preparou foi a mére Isabel Azevedo Von Hering, e durante toda a vida mantive forte amizade e diálogos com mére Lucinda Chaves de Mello, até a morte dela, nos anos 70. O sermão do cardeal Motta, nesse dia, dirigido aos pais presentes e contra o divórcio, me deixou infeliz.

antonio-carlos-ribeiro-festerPortal – Tem irmãos? Casou-se?

Antonio Carlos – Tenho três meio-irmãos por parte de pai, Maria Izabel (nascida em 1967), Kátia (1970) e Alexandre (1972), que me cumprimentam no Dia dos Pais. Casei-me com Helenice Ciampi em 1983 e nos separamos em 2000, mas o afeto perdura e o apoio mútuo também. E tenho dois filhos do coração: Guilherme Amorim Campos da Silva (que nasceu em 1970, é advogado, casado) e Adriano Ferreira da Silva (nascido em 1976, médico e solteiro), que me dão grandes alegrias, inclusive dois netos, João Pedro e Victor, filhos do Guilherme.

Portal – E os estudos, como e onde foram?

Antonio Carlos – Concluí o curso primário no Grupo Escolar Pedro Voss (em 1954), e o ginásio no Colégio Estadual Presidente Roosevelt (em 1960). Nessa época eu já era office-boy do extinto Banco Noroeste. Depois passei por diversas funções no Juizado de Menores, na Caixa Econômica Federal, da qual tenho saudades até hoje, e, por concurso público, em 1965, tornei-me tesoureiro da Prefeitura do Município de São Paulo, de onde me aposentei, a pedido, em 1995. Formei-me em Técnico de Contabilidade no Colégio Ipiranga (1964) e tentei vestibular para medicina diversas vezes, mas sem sucesso. Culpa da Física.

Portal – Você cursou Letras?

Antonio Carlos – Desde criança, sou um leitor inveterado. Cresci em meio a livros, leitores e escritores, e ingressei na Faculdade de Letras da USP, concluindo o curso em 1976. Sob a orientação de Décio de Almeida Prado, indicado por Antonio Candido, com quem mantenho uma cálida amizade até hoje, elaborei a minha dissertação de mestrado sobre Abílio Pereira de Almeida, intitulada “Em moral corrente no País”, obtendo o título em 1985.

Portal – Quais são os autores mais marcantes?

Antonio Carlos – Em criança era apaixonado por Lobato, Alexandre Dumas e Victor Hugo; depois de adulto li todo Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Dostoievsky, Tolstói e muitos outros, sem esquecer os principais nomes da literatura brasileira, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, José Lins, Mário de Andrade, Carlos Drummond, Carlos Nejar, tantos e tantos, presentes na minha biblioteca, de cerca de 2.500 títulos. Nisso tudo, a condição humana é aquilo que mais atrai, mas minha leitura preferida e sistemática são os Evangelhos e a obra de Thomas Merton, especialmente o livro “Novas sementes da contemplação”, que considero o melhor livro que li e sempre releio, depois dos Evangelhos de Marcos, Lucas, João e Mateus.

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Portal – Falemos um pouco das pessoas que o influenciaram.

Antonio Carlos – Para isso, tenho de registrar que considero como minha grande riqueza os afetos, as amizades. E com muitas pessoas aprendi bem mais do que nos livros. Sob esse aspecto, sempre foi um privilegiado. Na infância, por exemplo, tive contato com pessoas como Cândido Motta Filho e Paulo Duarte, mas quem me marcou realmente foi João Papaterra Limongi, o velho, um dos fundadores da Faculdade de Direito da PUC-SP, primo-irmão de meu avô e um pai para minha mãe, órfã desde os dois anos. Com a família Papaterra Limongi conheci o melhor do catolicismo, a atitude de serviço e de reconciliação. Por meio da prima, freira agostiniana Biloca, filha de João Papaterra Limongi, sabia da existência de madre Cristina Maria, no Instituto Sedes Sapientiae. Perplexo com a adolescência e com a infelicidade do casamento de meus pais, que se separaram em 1961, procurei madre Cristina, que me encaminhou, aos 16 anos, para terapia com Antonio Carlos Cesarino, meu irmão mais velho até hoje, que considerou que eu precisava mais de um modelo, de um amigo, do que de um terapeuta.

Portal – Você citou a leitura de Thomas Merton…

Antonio Carlos – Meu primo Fernando Maria Lisboa de Toledo, que conheci quando trabalhava na Tesouraria, foi quem me indicou a leitura de Thomas Merton, e acabei conhecendo dom Daniel Sutner, beneditino, no Mosteiro de São Bento, em 1970, meu principal guru e mentor, diretor espiritual por 30 anos, com quem mantive conversas semanais até ele morrer em 2001, com mais de 90 anos. Quando pensei em ser padre, em 1972, dom Daniel me achou com perfil para ser dominicano. Acabei por tornar-me amigo da maior parte dos frades. Com os dominicanos aprendi que pode servir-se a Deus em qualquer estado ou situação. Entre meus amigos mais próximos naquela ordem estão o agora saudoso frei Gorgulho OP, cujos cursos de Bíblia aos sábados frequentei durante anos, frei Márcio Couto, que celebrou meu casamento, e frei Betto, um irmão de todas as horas que me propiciou e propicia os mais gratificantes trabalhos de minha vida, especialmente a oportunidade de trabalhar com dom Paulo Evaristo Arns.

Portal – Como foi essa convivência com dom Paulo?

Antonio Carlos – Essa convivência se deu a partir de meu trabalho na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, por oito anos, a partir de 1987, em meio período. Ainda era tesoureiro na Prefeitura e lecionava na FMU, e isso foi das coisas mais evangelizadoras que me aconteceu. Posteriormente, fui integrado aos quadros de membros da Comissão, sobre a qual, por ordem de dom Paulo, escrevi o livro Justiça e Paz – Memórias da Comissão de São Paulo, editado pela Loyola em 2005. Tive bem ideia da importância de dom Paulo na Costa Rica, em um curso do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, em 1988. Cerca de 150 pessoas de 27 países me tratavam com respeito apenas pelo fato de trabalhar com o cardeal Arns. Depois, percebi essa importância no telefonema que atendi, em novembro de 1989, na Cúria, pedindo para dom Paulo avisar ao mundo, porque as comunicações seriam cortadas, do assassinato, pelas Forças Armadas de El Salvador, dos padres jesuítas da PUC daquele país, entre eles Ignácio Ellacuria, notório teólogo da libertação e opositor do governo, especialmente depois da morte de dom Oscar Romero. E pela confiança com que Dom Paulo me delegou tarefas, fazendo-me crescer, correspondendo.

antonio-carlos-ribeiro-festerPortal – E o trabalho em direitos humanos?

Antonio Carlos – Com a socióloga Margarida Genevois e o advogado Marco Antonio Rodrigues Barbosa, entrei de cabeça no projeto “Educação em Direitos Humanos”, da Comissão Justiça e Paz. Convivi com Paulo Freire e coordenei o mesmo projeto na Prefeitura, na gestão Luíza Erundina, quando Freire foi secretário de Educação. O Projeto foi levado até Curitiba, onde trabalhei com Wagner D’Angelis (1991-1992), então presidente da Comissão Justiça e Paz de lá. E aí me tornei um palestrante itinerante por este país afora e coautor de diversos livros sobre educação em direitos humanos. Troquei a literatura pelos direitos humanos, a meu ver uma luta mais urgente.

Frei Betto, como sempre, é quem me indica para muitas dessas palestras e para outros trabalhos, como tomar parte do júri, por exemplo, no Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, em 2012. Quando penso que em 1987 mal se falava de Direitos Humanos na Faculdade do Largo São Francisco, e hoje há curso de pós-graduação, disciplina, planos nacionais e tudo o mais, sempre digo à Margarida que a luta tem valido a pena. Paralelamente, leciono Direitos Humanos para policiais em um curso de Segurança Pública do Cogeae, da PUC/SP, e Pesquisa Cientifica na Gama Filho, em educação a distância. Sou também membro da União Brasileira de Escritores – UBE – desde 1979, quando lancei um livro de contos, “O mar tem várias cores” (Duas Cidades). Participei inúmeras vezes da direção da UBE, em campanhas pelo Juca Pato e dos dois Congressos Nacionais, em 1985 e em 2011.

Portal – E a oração, Antonio Carlos, como se faz presente em sua vida?

Antonio Carlos – Ingressei no grupo de oração de frei Betto em 1987, nele permanecendo até hoje, do mesmo modo que Helenice e Guilherme Amorim, além de muitas outras pessoas bastante queridas. A oração é fundamental. Ajuda-me a ficar centrado, a ser mais, a ser mais humano. Em tudo, fica clara a gratuidade do amor de Jesus, pois nenhum mérito tenho, e muitas coisas me aconteceram por acaso. Sempre brinco que Deus é muito perigoso. Submetido a uma biopsia em 1965, quanto tinha apenas 21 anos, minha única oração foi que se fosse para não prestar que Deus me levasse, e se fosse para servi-Lo que Deus me mantivesse vivo. Continuo vivo e não prestando, mas tenho servido, bem ou mal, a Deus e à Igreja, santa e pecadora. E pensei que ia enfartar tamanha a emoção em comungar no túmulo de Santo Antônio de Pádua. Mas minha experiência religiosa mais forte se deu numa madrugada na capela do convento dos trapistas ao sul do Paraná, quando vi toda a minha miséria pessoal e consegui me aceitar, perdoar-me e desenvolver uma imensa compaixão por toda a criação. De tudo e em tudo fica a profunda gratidão a Deus e às pessoas que O revelaram a mim, e o aprendizado, às vezes muito sofrido e sempre recomeçado, da gratuidade do amor. Como afirma frei Betto, é fácil amar Jesus. Difícil é amar como Ele nos ama e amou.

Portal – Falemos sobre a velhice. Você fez 69 anos. Como a encara?

Antonio Carlos – Considero o sofrimento um mistério e não uma questão de merecimento. Deus dá sol e chuva para justos e injustos, está em Mateus, capítulo 5. Considero a velhice como natural, fruto de uma história de vida, a idade da síntese. Alguns a negam, outros não conseguem fazer essa síntese, outros – a maioria – têm seus problemas acentuados, a morte assusta. O que a natureza faz ao homem não me perturba, é natural, mesmo uma doença grave. Mas o que os homens fazem uns aos outros me machuca profundamente. Desde menino, convivo com velhos e acho a velhice natural. Frequentemente, a velhice é triste. Triste ver o rosto de uma Elizabeth Taylor reduzido a uma uva-passa. Triste ver Deborah Kerr num Oscar sob os efeitos da doença de Parkinson. Triste reconhecer uma antiga namorada somente depois de ouvir sua voz.

Triste ver minha mãe sofrendo ano após ano uma série de cirurgias, ir debilitando-se aos poucos, uma prova. Sempre pedi a Deus morte súbita para as pessoas amadas. Deus já me deu muito, não me atendeu desta vez. Santa Terezinha soube do pai, Luís Martin, beatificado em 2008, vagando pelas ruas de Lisieux, enlouquecido. Se ela pode, todos podemos. Se Jesus pôde ser crucificado, todos merecemos.

Portal – Quando se deu conta de que estava envelhecendo?

Antonio Carlos – Não me dei conta que envelhecia. Um dia, num quarto de hotel, saindo nu do banheiro, deparei-me com um espelho de corpo inteiro na parede em frente. O velho gordo, que sentou-se de susto, na cama, era eu. Agora sabia que estava velho. Muitas mulheres não me olham mais como a um homem e muitos me dão o lugar na condução. E estou lerdo, inclusive como leitor. Eventualmente, faço umas caminhadas, uns regimes, umas consultas, eventualmente. Foi de repente. Tinha 18 anos antes de ontem, não vi o tempo passar. Mas não lastimo nada. Tive e tenho uma bela vida, uma graça de Deus. A morte não me assusta, não me assustou sequer aos 21 anos, na famosa biópsia, não me assusta nas cirurgias que já fiz e nos voos em que muitos entram em pânico. Tenho a graça de, como uma criança, entregar-me às mãos de Deus. É assim que espero poder morrer, na alegria e na paz de enfim poder vê-Lo face a face. A morte, sempre insisto, é o dia da formatura na escola da vida. É apenas voltar para a casa do Pai. Amém.

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