Amor para flutuar

Amor para flutuar

Ao encontrarmos amores para envelhecer ao nosso lado, nos cercamos de forças capazes de mover as diversas barreiras impostas pelo tempo. O amor nos fará flutuar.


Dia de ser acompanhante e esperar.

Quando o marido resolve, finalmente fazer seu checkup anual todo apoio se faz necessário. Claro que o tempo em questão não é aquele conhecido com semanas de 7 dias e ano com 365. Também não se trata do tempo Kairós, que é sentido e que não se controla como o tempo chamado Cronos. Trata-se de uma outra modalidade criada pelos homens para postergar os exames rotineiros que os tiram da correria diária. Meu irmão, por exemplo, criou uma modalidade de tempo ainda mais curiosa já que é um tempo inexistente e que só ele é capaz de entender. Minhas sobrinhas clamam pelo Cronos e pedem que ele faça anualmente seus exames. Não adianta! Falam línguas temporais diferentes.

Hoje estou aqui de acompanhante do meu marido que depois de um ano muito maior do que 365 dias, resolveu marcar seus exames “anuais”. E não basta ser casada e dividir a vida, é preciso também saber dividir o sorvete e os momentos aflitivos como aqueles vividos durante a ressonância magnética. Nesta hora, ele faz questão que eu pegue em seu pé, literalmente. Ao sentir minhas mãos ele compreende que existe vida além do tubo.

Sim! Existe vida além dos laudos médicos! Vida que não precisa ser impulsionada por veias congeladas pelo ar-condicionado intenso que petrificam esta acompanhante tão cheia de boa vontade de transformar este dia de espera em um procedimento afetivo.

Um entra e sai de pessoas ajudam a enfrentar o tédio. Os médicos onipresentes revelam toda importância no olhar e eu os invejo. Não pelo poder entregue a eles por esta sociedade medicalizada que cataloga as velhices e os medicamentos nas mesmas prateleiras. Invejo profundamente os médicos e suas roupas que parecem pijamas confortáveis. Roupas largas, desbotadas que passeiam com os feios e deliciosos crocs nos pés. Invejo pessoas que possuem saberes, que se dispõe a salvar vidas, aliviar sofrimentos em trajes que dispensam os saltos e as frescuras neste mundo com tantos impecáveis deselegantes. Fico aqui pensando em como seria bom trabalhar de pijamas. Daqui da sala de espera que me congela, meus desejos de humanizar a medicina, e as velhices por ela tratada, eleva os batimentos do meu coração prestes a congelar.

Foram 50 minutos de exame. Ele no tubo e eu agarrada aos seus pés. Ele bem que tentou ficar segurando minha mão, mas o médico responsável explicou que o peso de nossas mãos unidas influenciaria as imagens. Pegar no pé pode e assim o fiz numa tentativa de amenizar sua aflição. Para alguém como ele, avesso às declarações de amor nas redes sociais como muitos maridos de amigas fazem, para alguém como ele que diz que as datas comerciais são bobagem, afinal não representam a alegria do dia a dia compartilhado, o exame de ressonância torna-se uma declaração de amor para quem, como eu, é capaz de ler nas entrelinhas seu dizer que expressa as minhas mãos nos seus pés como mostra da vida existente pra lá do fim do túnel.

Sentimento que liberta o aprisionamento claustrofóbico e o tubo de ressonância não significa nada perto da sensação que nos faz voar. Imediatamente, uma das pinturas de Chagall que mais gosto me veio à cabeça. The Promenade, feita em 1918 por Marc Chagall para nos contar do seu amor por sua esposa Bella. Na pintura ele sorri enquanto em uma mão, segura um pássaro e na outra, de mãos dadas, sua amada flutua como forma de celebrar a alegria e êxtase deste amor.

Marc Chagall nasceu perto da aldeia de Vitebsk, na atual Bielorrússia,em 1887, e foi um artista com inúmeros talentos artísticos. Seus desenhos, pinturas e vitrais emocionam por suas belezas. De 1910 a 1914, Chagall mora em Paris e volta à sua terra natal por não suportar ficar longe de sua noiva Bella. Depois de casados, voltam a viver na França para escapar das dificuldades da vida soviética que se seguiram à I Guerra Mundial. Amor que soube contornar as dificuldades impostas pela vida e pelo momento. Chagall retratou em diversas pinturas o sentimento por sua esposa. Over the town também fala do amor que nos faz flutuar. Chagall dizia-se um pintor do coração e nele Bella dava o tom do compasso.

Ao terminar o exame, saímos de mãos dadas rumo ao ultrassom e, ele, como já disse, avesso às declarações que tentam impactar muito mais os outros do que a pessoa amada, verdadeiramente me disse: Você faz toda diferença, eu não conseguiria fazer este exame se você não estivesse comigo. Naquele instante virei a Bella de Chagall flutuando pelos corredores gelados como se estivesse nas pinturas do artista.

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Romântica que sou, entendi a mensagem. O amor se faz muito maior do que o sentimento de aflição instalado naquele tubo tão pouco sedutor.
Entendi ali seu jeito de dizer o que tantas vezes quis ouvir nas datas e aniversários que ele sempre esqueceu.

O amor vai além. Ele nos faz flutuar de mãos dadas na calada da vida não compartilhada nas redes. E assim vamos nós, envelhecendo juntos enquanto enfrentamos nossos receios e ameaças como possibilidades de doenças e sofrimento.

Ao encontrarmos amores para envelhecer ao nosso lado, nos cercamos de forças capazes de mover as diversas barreiras impostas pelo tempo.

Viver nada mais é do que este aprendizado diário que nos faz dividir dores e sabores num tempo medido não em dias, ou anos, mas em afetos. Barreiras rompidas, o tubo claustrofóbico não é o fim. Há vida logo ali. De mãos dadas, juntos, seguimos flutuando para enaltecer os amores sentidos. Venha velhice!

O amor nos fará flutuar. 

Saiba mais sobre o amor de Chagall e Bella, clicando aqui.


Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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