Ainda não sou velha… Será?

Ainda não sou velha… Será?

Viver é experimentar e não temer os sentimentos e emoções que o cotidiano traz. São experiências que se tecem no dia a dia, com parceria e amizade, que tornam a vida muito mais leve e seus dis-sabores dis-solvidos, ou seja, até experiências menos agradáveis se transformam quando temos quem nos acompanhe e fortaleça.

Vera da Rocha Resende (*)

 

Obra de Yulia Brodskaya

Sentei-me para escrever este texto e não sei como vou terminá-lo. É uma relutância para pensar meu processo de envelhecimento. Quais sinais que em mim apontam para meu caminhando para o fim, se desde que nascemos começamos a envelhecer? Recentemente montei um curso de treinamento para cuidadores de idosos em instituição de longa permanência. Fiz pesquisa e verifiquei a quantidade de material de apoio com o qual pude contar e preparar um curso que mudou o cotidiano da casa, valorizou o trabalho dos cuidadores e despertou-lhes o desejo de aperfeiçoarem-se. Desde então, dediquei-me à organização de cursos para cuidadores de idosos e brinco com a ideia de estar preparando quem vai cuidar de mim no futuro. Será? Não importa, pois não temos como controlar a vida.

Desde criança olhava a velhice como um grande enigma. As pessoas velhas eram sempre muito reverenciadas pelos adultos mais jovens, então aprendi a olhá-las e me dirigir a elas com muito respeito. Minha avó materna foi a primeira pessoa velha que conheci. Ela era muito mal humorada, infeliz, não conseguia ver nada bom em sua vida e parecia que o mundo tinha uma grande dívida com ela. Por esta razão meu pai não gostava muito dela, se irritava com a expressão rude dela. Bastava alguém lhe perguntar “como vai?” para que ela respondesse: “estou aqui pras cobra cumê”. Com o tempo me tornei arredia, evitava contato com ela, que, por sua vez, não suportava minha arrogância adolescente. Mesmo assim, eu e minhas irmãs fomos ensinadas a “respeitar a idade dela” e, por tabela, seu mau humor. A imagem que ficou para mim é a da velha sem alegria e sem afeto, pois não havia ternura com os netos.

A parteira, que atendeu minha mãe no meu nascimento, foi a segunda pessoa idosa que conheci. Ela era sensível e amorosa, o oposto de minha avó. Chorava muito e me abraçava quando recordava meu nascimento, por eu ter sido um bebê quase morto, que precisou ser ressuscitado. Esta estória me foi contada inúmeras vezes e com muita emoção, sempre, parecia que ao recordá-la as pessoas eram remetidas ao precoce velório que não houve. Tornei-me adulta com a convicção de ter vencido a batalha contra a morte e, portanto, eu não precisava temê-la. Hoje, aos 68 anos, continuo a pensar que apenas há adiamento de minha primeira experiência de vida e gosto de olhar para esta história me sentindo vitoriosa. Não é a morte que me assusta e sim a vida, com suas incongruências e injustiças. Eu me perguntava se as lágrimas de “vó Carolina” se deviam apenas às lembranças que ela tinha da experiência com meu nascimento, ou se ela possuía outros motivos para chorar. Mas sua ternura não me permitiu dissociar velhice, tristeza e lágrimas.

A terceira pessoa mais idosa que conheci foi uma senhora amiga de minha mãe, que ficou em minha casa para ajudar meu pai a cuidar de mim e de minhas irmãs, quando mamãe precisou fazer uma cirurgia. Esta senhora era muito serena e falava tão pouco, que mal me lembro de sua voz. Mas, era gentil e atenciosa e passei a chamá-la de avó. Ela era tão silenciosa que me parecia estranha, e acrescentou o mistério ao par velhice-tristeza, que eu estava construindo na minha imaginação infantil.

Minha avó paterna com quem tive pouco contato, conheci logo após a recuperação de minha mãe, mas não lembro de qualquer gesto de ternura nesta relação, também. Ela nasceu na vigência da Lei do Ventre Livre e por isto não nasceu escrava. Lembro do orgulho com que isto era dito na família, mas com o tempo eu não via razão para ninguém se sentir orgulhoso por ter se livrado da escravidão. Eu queria que ela se orgulhasse de ser livre porque liberdade era seu direito. Mas ela era muito triste porque não conhecia sua família que havia sido separada porque negros não tinham direito de organizar a própria família. Meu pai questionava sua origem e dizia para mim que tinha quase certeza de que havia sido entregue para minha avó criar.

Assim, fui conhecendo outras pessoas idosas que faziam parte do círculo de amigos de meus pais, e olhando o passado com olhos do presente, vejo-as enquadradas no estereótipo da velhice, tal como ainda vemos hoje. A única diferença está na ênfase no respeito que todos tínhamos que ter por pessoas que já tinham vivido muito mais do que nós.

Com este imaginário a respeito de mulheres velhas, lembro que, enquanto criança, eu gastava horas fazendo projeções para minha velhice, que na minha concepção começaria no dia em que eu fizesse cinquenta anos. Claro! Meio século de existência era muito velho mesmo, assim eu pensava. Passei a juventude me sensibilizando com o abandono de velhos nas ruas, sempre indignada com a trajetória de uma vida dura lançada na sarjeta. O tempo foi passando, me tornei adulta e me esqueci de minha preocupação com minha velhice, até o dia em que passei a usar óculos. Aborreceu-me profundamente porque, até então, eu me orgulhava muito de ter boa visão. Depois, fui tirando alguns órgãos através de cirurgias: safena, útero, vesícula, tireoide… Pensei que meu corpo fosse ficar mais leve sem eles, mas ao contrário, constato que ele está muito mais pesado.

Outros problemas foram se acrescentando com o avançar do tempo e deixando suas marcas como a artrose e a catarata. Consegui me livrar desta última com uma cirurgia ocular que me dispensou de usar óculos. Driblei uma ação do tempo. Conseguirei driblar outra? A artrose entortou meu pé e o uso de sapatilhas e rasteirinhas passou a ser o visual mais elegante que consigo atualmente, sempre com alguma dor, lógico. E, neste particular, meu conflito maior é com o plano de saúde que leva boa parte de minha aposentadoria. Apesar dos problemas de saúde que apontei, não dou despesas ao meu plano, a não ser com alguns exames anuais. Pergunto-me sempre por que tenho que pagar tão caro por um plano que não uso e que encarece mais a cada ano, supondo que vou dar despesas? Com os exames, suponho que gaste no máximo dois meses de contribuição. Então olho para as pessoas que envelhecem sem aposentadoria, ou recebem um valor tão reduzido que não conseguem atendimento com dignidade.

O curso Fragilidades na Velhice trouxe muitas questões pertinentes a estas preocupações. Começo destacando o texto Com que Idade nos tornamos velhos, de Jérôme Pellissier, por ensejar reflexões sobre as dificuldades encontradas pelos idosos diante do preconceito, principalmente quando a preocupação central é de ordem econômica. O que se pensa ser custo do envelhecimento desconsidera a contribuição dos idosos à sociedade com seu trabalho e com a educação dos filhos, talvez os mesmos que acreditam financiar a sobrevida dos velhos.

A equação econômica na abordagem do envelhecimento é, ainda, mais perversa no sistema de saúde privado. Se paga muito pela probabilidade de adoecer, porque dificultam o acesso aos cuidados rotineiros com a saúde e a novas tecnologias médicas. Por outro lado, não é menos cruel o assédio do sistema bancário na oferta de crédito consignado, ao mesmo tempo em que bloqueia outros produtos devido ao “risco”.

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Um dia eu quis cancelar um seguro de vida, após anos de renovação automática, devido ao encarecimento contumaz. O atendente quis saber as razões do cancelamento e quando eu disse que estava ficando caro, ele me disse:

_ O banco está fazendo preço especial porque a senhora é cliente antiga, mas com esta idade não vai conseguir seguro mais barato.

Eu disse a ele:

_ Não vou usar. Por que me esforçar para pagar por algo que não vou usufruir?

Ele argumentou que eu deixaria para meus filhos. Filhos devem se virar como nós o fizemos, com o beneplácito de terem recebido bem mais do que recebemos de nossos pais. Há segmentos da economia que se fixam na possibilidade de obter lucros com a população desocupada e com dinheiro, como hotéis e cias de viagem, e empresas de materiais de construção que escolhem um dia da semana para que aposentados tenham descontos, e farmácias que aumentam o preço do produto para forjar o desconto de aposentados.

Voltando para as projeções que fiz para minha velhice, me surpreendo esperando que ela chegue naquele formato com o qual tive contato na infância. Houve um momento em minha vida que pensei que iria antecipá-la, ao casar-me com um homem dezesseis anos mais velho do que eu. Eu tinha trinta anos e ele quarenta e seis. Por trinta e dois anos, até que a morte nos separou, aprendi a viver com alegria e a superar os entraves da vida com quem tinha muita alegria de viver, era generoso e amável. Em nenhum momento ele ficou “velho”, a não ser nas últimas semanas de vida, mas aí se confundem velhice e finitude.

Obra de Arte de Sergio Moreno

A aposentadoria não me lançou na velhice, mas a viuvez sim porque parece ser emblema da interdição do afeto. O casamento e a formação da família trazem a todo instante a experiência do sonho porque temos que planejar cada passo da vida: a moradia, os filhos e suas demandas, a profissão, o relacionamento extra familiar com parentes, amigos e grupos profissionais, viagens, passeios, enfim todos os aspectos da vida precisam ser contemplados e renovados no dia a dia. Isto traz movimento, traz alegria e decepções, expectativas e frustrações, enfim a vida.

Viver é experimentar e não temer os sentimentos e emoções que o cotidiano traz. São experiências que se tecem no dia a dia, com parceria e amizade, que tornam a vida muito mais leve e seus dis-sabores dis-solvidos, ou seja, até experiências menos agradáveis se transformam quando temos quem nos acompanhe e fortaleça. Talvez começamos a envelhecer quando perdemos os sabores da existência, a alegria de acompanhar o crescimento de um filho, sua vida escolar, a entrada na universidade, a formatura, o início da vida profissional e a criação da própria família. Não, não sofri a síndrome do ninho vazio… Sentia falta das crianças, mas não sentia tristeza. A saída de cada um foi motivo de alegria e de orgulho, por isto não havia lugar para tristeza, nem saudosismo.

Mas foi a perda de meu querido companheiro que me trouxe para a realidade, pois parecia que até então minha vida era o ideal de felicidade para muitos. Percebi alguns entraves nas situações que antes pareciam fluir com facilidade em minha vida: perdi vários dos elementos que compunham meu universo, desde amigos que frequentávamos com alguma constância, até o impulso necessário para uma caminhada matinal. Sem ressentimento, sem amargor, me dou conta do que pode ser esta fase da vida para quem não teve as oportunidades que tive, o amor que tive, os filhos que tenho, a profissão que exerço há mais de quarenta anos e as razões que ainda tenho para não sucumbir. Olho para o passado e reconheço que minha avó materna talvez não tivesse muitas razões para avaliar a própria vida e detectar algo que lhe fizesse sorrir e lhe permitisse transmitir alegria aos netos.

Descubro que o envelhecimento me trouxe liberdade. Parece que não tenho mais razões para aparentar o que não sou, o que não sinto, o que não penso. Não me sinto obrigada a ir onde não me sinto bem, só para “não me interpretarem mal” porque cheguei à conclusão de que se não me sinto bem é porque não me sinto acolhida. Será que eu tinha condições de perceber isto antes ou é ranço de meu envelhecimento?

A aposentadoria da vida acadêmica me livrou dos extensos relatórios, das reuniões enfadonhas e da obrigatoriedade de seguir apenas uma linha de pensamento para “sustentar coerência teórica”. É maravilhoso ter liberdade para ler o que tenho vontade, sem culpa por não dar andamento a uma pesquisa que aguarda melhor momento para ter continuidade. Não ter que preencher o Lattes me permite circular por outros campos, inclusive este, do envelhecimento.

(*)Vera da Rocha Resende é psicóloga com formação e experiência clínica, além da vida universitária. Reflexão realizada no Curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, da PUC-SP (COGEAE), primeiro semestre de 2017. E-mail: [email protected]

Imagem de destaque de Tônia Oberlaender

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