Abrigo da Luz: um paraíso que nasceu idoso

Abrigo da Luz: um paraíso que nasceu idoso

Fui convidado para fazer as fotos e o texto de abertura de um livro, coordenado pelo professor Miguel Macedo da UNI7, Ceará. O perfil dos abrigados foi feito por alunos do curso de comunicação. O dinheiro com a venda deste livro será toda revertida aos idosos do abrigo.

 

Hoje é segunda-feira, amanhã quinta; depois domingo. Por não ser referência, o tempo no Abrigo da Luz pode ser contado assim. Fica difícil almoçar 7 horas da manhã, mais ainda, jantar ao meio-dia. O Abrigo imita a vida de uma cidade. A imagem de um “paradouro” ou de uma estação que abriga 47 mulheres e 49 homens, alguns sem nome, nem sabem o destino. Outros, não sabem a origem, não por esquecimento. Somente não sabem. Por lá, não existem crianças. Todos os moradores já cresceram, ficaram adultos, nasceram adultos. A idade mínima é 65 anos. Ficaram idosos. É um paraíso que se envelhece.

Nunca se correm pelas “ruas” do Abrigo. A pressa perdeu lugar e espaço para ausência do sorriso, para a indiferença, a seriedade e ao silêncio. A esperança não está mais no futuro, somente. É no presente que ela é mais desejada, ansiada. Entreolhares de minutos, poucos minutos, dos moradores, atravessam lentos as sombras da tarde para contemplarem, admirarem, sonharem e desejarem “acariciar” a alma um do outro. Apaziguar a solidão. Estes são os “corpos” que mais atraem e provocam no Abrigo da Luz. Seria a busca por companheirismo e compreensão.

Fiz um passeio fotográfico pelas ruas, paredes, calçadas e cadeiras de rodas. Apareceram-me desenhos e rabiscos sempre intencionados, prontos e acomunados com a psicologia e a psiquiatria a revelarem histórias que talvez nunca começassem. Surgiram aquarelas, sempre dispostas a pintarem o passado, algumas vidas perdidas, outras coloriam o amor novo, de mãos dadas, nascido no Abrigo.

Encontrei rugas em todas as faces. Algumas aparentavam mais áridas, doídas, abandonadas e profundas; pareciam seculares. Esta gente, bem antes das rugas lhes cortarem fundo a carne, trabalhou, orou, bebeu, vagou e amou. Agora, foi afastada de tudo que criou. Resta-lhes a obrigação do recomeço. E enganar o tempo.

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É dezembro e o Natal aparece numa árvore de folhas sintéticas, verdes, com bolas coloridas e luzinhas piscando, marcando um sentimento, uma época, uma data, talvez. Alguns dos moradores não têm a certeza porque ou para quem elas “piscam” e a imagem que as bolas coloridas refletem, principalmente quando olhadas de perto, bem perto, não revela a identidade deste olhar, não “encontra” ninguém. Não aparece o passado, nem o futuro, de muitos moradores do Abrigo da Luz para refletir…

Para alguns habitantes, toda a vida poderá ser contada em minutos, repetida e recontada por horas, dias, talvez anos seguidos… Falta-lhes esperança para encontrar outro ouvinte, quem sabe. Não existem mais personagens para criar outras tantas histórias. Seu Bibiu, morador do Abrigo, faz manobras precisas, se joga no tempo, cria personagens e atreve-se com as histórias do caminhão Scania, que dirigiu por décadas. Fala ansioso sobre seguidas viagens ao Sul do país, gesticula com as mãos para o alto quando relata a ida até o Paraguai, para entregar uma carga. Fala sério do amor que lhe foi roubado, por ser caminhoneiro, na Bahia – “O motor era valente nunca me deixou na mão”. A saudade empurra uma lágrima que desce lenta por trás dos óculos espelhados.

O que acontece em muitos dias no Abrigo não encontra referências, não causa emoções, não produz saudades. Poderá ainda não estar em nenhuma memória dos outros moradores. É a repetição de uma vida que estacionou faz horas… Quando caminha, segue lenta sobre uma plataforma passada, para virar novamente presente, futuro ou arrazoar a vida.

Dona Dalva, outra moradora, vive à espera de um “resgate”. Amanhece, leva sua sabedoria e conhecimento até a cadeira de balanço, no corredor da entrada: muitos anos vividos estão guardados, escondidos em poucas páginas do seu caderno de “segredos” e nas sacolas. Somente no final das tardes, guiadas por poucas luzes, Dona Dalva desaparece. O sol, ao final de seu trajeto no Abrigo da Luz, não leva somente o dia, leva também o final de um tempo, a fé de muitos e a esperança da maioria.

A memória, privilégio de alguns, se recusa a esquecer, apagar ou fazer de conta que muita coisa nunca aconteceu, nunca existiu. Apegados aos números, o matemático e o preciso tempo vetam as mudanças e as esperanças a encontros e conversas fora dos muros do abrigo. Contam com linguagem logarítmica, o que foi vivido na solidão e bem poucos algarismos bastam para falar da possibilidade de recomeçar.

Escurecia no Abrigo. Os olhares estavam mais cansados, calados, sem expressão; difíceis de ser interpretados. De repente, por alguns instantes fiquei idoso, temeroso de um abandono e de um final sem ninguém na minha despedida da Terra. Receoso de uma morte solitária, talvez com poucos pedidos e recomendações às divindades para aceitarem o “perdoai” à minha alma. Delírio fotográfico, imagem virtual, por sorte.

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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