A vida de Rubem Braga, o cronista com cara de brabo que vivia rodeado de amigos em um verdadeiro pomar suspenso

Em maio de 1990, Rubem Braga foi ao médico e ouviu uma grave sentença.Tinha, na garganta, um câncer que já avançava para outras partes do corpo. Sentença de morte, não teve dúvida. Ligou para o escritor Otto Lara Resende, um de seus amigos mais próximos:“Se eu tivesse um revólver, ia pedir pra você me matar”. Estava arrasado. Daí a pouco, porém, voltava a ser o Braga cáustico de sempre, e Otto não pôde conter a gargalhada quando ele resmungou: “Achei o médico muito entusiasmado com o meu tumor”. Só faltou relembrar, aos 77 anos, uma de suas boas frases: aos 70, sempre se morre de alguma coisa. Não foi menos cortante quando Roberto Marinho, seu patrão na TV Globo, se ofereceu para pagar a cirurgia. “E eu quero lá sobrevida?”, rechaçou. Não queria tratamento algum, apenas não sofrer além da conta.

Humberto Werneck

 

Estava tão decidido que, pouco tempo depois, viajou discretamente a São Paulo e foi ao crematório de Vila Alpina ­ o Rio de Janeiro ainda não tinha esse conforto póstumo. Estava preenchendo o cheque quando o atendente perguntou: “Onde está o cadáver?” Quase matou o homem de susto: “O cadáver sou eu”.

A historinha veio engrossar o folclore fúnebre, mas nem por isso pouco divertido, do fim de vida de nosso maior cronista, que morreria meses depois, na madrugada de 19 de dezembro. Folclore que, na verdade, começou a nascer bem antes, em 1969, quando Rubem perdeu parte de um dos pulmões por causa de um tumor benigno. De Lisboa, onde morava na época, Otto Lara Resende pensou no pior, e bombardeou os amigos comuns com angustiados pedidos de informação.Ao ficar sabendo do interesse, Rubem comentou com um deles:“ Sei não, o Otto está muito solidário…” Para quem não se lembra: a mais célebre das frases de Otto, que era filho das Minas Gerais, é “o mineiro só é solidário no câncer”.

Azedinho doce

Esse humor corrosivo já era uma das marcas do jovem Rubem Braga quando, há exatos 70 anos, ele publicou seu primeiro livro, O Conde e o Passarinho. Na crônica que dá título ao volume, ele põe em ridículo o conde Francisco Matarazzo, enganado, segundo uma notícia de jornal, por um passarinho, que lhe furtou do peito uma condecoração. Rubem mostra que prefere este ao poderoso industrial, que “não sabe gorjear nem voar”.

Aos 23, Rubem estava já caindo de maduro como cronista, pois começou a escrever desde muito cedo, aos 15 anos, no Correio do Sul, de Cachoeiro de Itapemirim, a cidade capixaba onde nasceu em 12 de janeiro de 1913. Ou até antes, pois sua estréia tipográfica aparece registrada nas páginas de O Itapemirim, jornalzinho do colégio Pedro Palácios, com “A lágrima”, texto que estava longe de anunciar um grande escritor: “Quando a alma vibra atormentada as pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça…”

Foi também aos 15 anos que Rubem se mandou de Cachoeiro, indignado com um professor de matemática que o chamara de burro. A partir de Niterói, caiu no mundo ­ andejo, borboleteou de lá para cá, morou no Rio (onde iniciou o curso de direito), Belo Horizonte (onde se formou, em 1932), São Paulo,Recife, Porto Alegre, Paris, Santiago do Chile,Paris e Rabat, a capital do Marrocos (onde foi embaixador do Brasil, nomeado por Jânio Quadros).Mas afirmava:“Sou um homem do interior. Às vezes penso que merecia ser goiano”. Em outra ocasião: “Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa do meu reumatismo”.

Era um bicho-do-mato, em todo caso, quando, aos 19 anos, em 1932, chegou à redação do Diário da Tarde, em Belo Horizonte. “A turma da casa não topou muito o jeitão daquele camarada de ar agreste, mal-ajambrado, sobrancelhas cerradas, rosto fechado, arisco, desconfiado”, contava um de seus chefes,Newton Prates. A reportagem de estréia, sobre uma exposição de cães, dissolveu a má impressão ­ e valeu ao novato um convite para ser também cronista. Começou falando, com áspera ternura, de certa “mocinha feia”: “Se você fosse bonita, seria linda…”

Em julho daquele ano, mandaram-no cobrir em Passa Quatro, na fronteira de Minas com São Paulo, o front mineiro da Revolução Constitucionalista, e conheceu o pavor não dos tiros, mas do “psiu” das balas que passavam rente. Por pouco não morreu na noite em que, meio de porre, cismou de passear em plena linha de fogo com um chamativo casacão claro. Doze anos mais tarde, estaria outra vez num campo de batalha como repórter, dessa vez acompanhando a Força Expedicionária Brasileira em luta contra as tropas fascistas na Itália. “Guerra é coisa triste”, concluiu, e não só por causa da violência: “Brincadeira de homem. Só tem homem lá”.

Péssimo emprego de tempo, portanto, para quem punha a mulher acima de qualquer outra coisa neste mundo.“ Um belo momento da aventura do ser humano sobre a Terra”, resumiu. Essa paixão já seria motivo bastante para que nunca se metesse em política ­ atividade que, observando tanta conversa ao pé do ouvido, definiu como “a arte de namorar homem”.O que não o impediu de ir em cana ou precisar esconder-se da polícia, durante o Estado Novo (1939-45), por aquilo que escrevia. Quando, na manhã de 24 de agosto de 1954, soube do suicídio do ex-ditador Getúlio Vargas, pôs-se a repetir para si mesmo:“Morreu, fica morrido”.

Mulheres, mulheres

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Siderado pela mulher,objeto de boa parte das cerca de 15 mil crônicas que escreveu durante seis décadas, é curioso que Rubem Braga tenha se casado apenas uma vez.Foi em 1936,com a mineira Zora Seljan, mãe de seu único filho, Roberto. Separaram-se nos anos 40, e quando Zora voltou a casar-se, com o escritor Antônio Olinto,Rubem não resistiu: “Ela pode ter melhorado de marido, mas de estilo, nem tanto”.

Nunca mais se casou. “Vivo numa certa solidão, sim”, admitia. “Mas eu acho horrível é a solidão a dois. Uma monotonia sem fim. Isso não me pega mais.” Não significa que não tenha tido outros amores, até certa fartura deles ­ e o mais duradouro, vitalício mesmo, foi a paixão possivelmente irrealizada por Mariinha, como a atriz Tonia Carrero era conhecida antes de ganhar fama e nome artístico. Foram, isto é certo,muito amigos, mas o cronista desconversava ­ “deixa pra lá” ­ quando lhe perguntavam se havia ali mais do que amizade.

“Aqui vive um solteiro feliz”, anunciava a frase escrita num azulejo a quem chegasse à casa de Rubem Braga, a mitológica cobertura a que se recolheu já cinqüentão. “Vivo aqui sozinho”, explicou de certa feita. “Eu e Deus. Comprei o apartamento, pago o condomínio e Deus não deixa o edifício cair.”Como o Criador fizesse a sua parte e o condômino a dele, foi ali que o sabiá da crônica, como era chamado, teve seu ninho até o fim.

Urso de Ipanema

Um pouco por isso, acabou ganhando outro apelido zoológico: urso.O rótulo pegou.Mas não lhe fazia inteira justiça. Seria o caso de sacar o verso de Carlos Drummond de Andrade no poema em que apresenta a vida a um neto recém-nascido: “Repara que há veludo nos ursos”.Ou a frase com que Otto Lara Resende o saudou na sua chegada aos 70 anos: um urso que fabrica seu próprio mel.

A cobertura onde esse urso particularíssimo fez a sua toca, na rua Barão da Torre, em Ipanema, foi comprada nos anos 60, e ainda na planta o morador tomou liberdades com o projeto do arquiteto Sérgio Bernardes. Não se limitou a conseguir que ele modificasse o desenho do apartamento: sem maior cerimônia, apossou-se da área que o circunda, espaço que, no papel, estaria à disposição também dos demais condôminos. Quando o síndico veio lhe perguntar como receberia os moradores que quisessem freqüentar a cobertura, cortou seco: “A bala”.

Além de um jardim, plantou ali uma horta e um pomar suspenso onde rimavam goiabeiras, jabuticabeiras, amoreiras, pitangueiras.Amigos apareciam, sacola em punho, para abastecer suas geladeiras.Um deles, o poeta e cronista Paulo Mendes Campos, botou no anfitrião mais um apelido, o de “fazendeiro do ar”, colhido na seara poética de Drummond. Uma “cobertura agrária”, definia o humorista Millôr Fernandes, que de seu ateliê, nas proximidades, costumava comunicar-se com o cronista, os dois dialogando animadamente, toda manhã, por meio de largos gestos.

Agrária e também literária, evidentemente, pois a cobertura de Rubem Braga era um entra-e-sai de escritores. O dono afirmava conhecer livros, já que passara entre eles boa parte de sua vida.“Sou capaz de distinguir um livro à primeira vista, no meio de outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras.”No caso de sua própria obra, mais de 20 coletâneas de crônicas e um magro volume de poemas, não parecia dar-lhe grande importância. “Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento”, explicou.“Nunca vivi a coisa literária. Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa. Pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação.”

Obrigação cotidiana que freqüentemente lhe custava enorme trabalho. Como qualquer cronista às voltas com a inspiração zero, ele teve, mais de uma vez, que tomar como assunto a própria falta de assunto ­ e nisso foi o mais original de todos. Em fevereiro de 1934, safou-se com uma crônica, “Ao respeitável público”, na qual, do começo ao fim, insulta o leitor, como se fosse ele o responsável pela sua falta de assunto ­ mas de tal forma que o leitor, longe de se ofender, acaba achando graça.“Braga é sempre bom, e quando não tem assunto então é ótimo”, escreveu Manuel Bandeira. “Aí começa ele com o puxa-puxa, em que espreme na crônica as gotas de certa inefável poesia que é só dele.”

O fácil é difícil

Na sua limpidez, o texto do cronista maior pode dar aos desavisados a ilusão de serem também eles capazes de escrever algo assim.Trata-se daquilo que o poeta Hélio Pellegrino chamou de “a difícil arte de escrever fácil”. Tecidas sem pompa ou grandiloqüência, as crônicas de Rubem Braga são feitas de palavras simples ­ não por acaso, ele achava que um dos versos mais belos da língua portuguesa é este decassílabo, sem qualquer enfeite, de Luís de Camões: “A grande dor das coisas que passaram”.

Numa crônica de 1958, ele conta que andou lendo livros sobre pavões, e neles descobriu que “aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas”. E conclui, encantado: “Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade”.

Poderia estar falando dele mesmo, Rubem Braga.

Para saber mais
• 200 Crônicas Escolhidas, Rubem Braga, Record

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