Formar uma comunidade com aqueles que amamos, buscar significado no que somos e nos tornamos ao longo da vida, nos ajuda a entender o sentido do movimento da vida e da última viagem.
Renata Souza (*)
Antes de mim vieram os velhos
Os jovens vieram depois de mim
E estamos todos aqui
No meio do caminho dessa vida
Vinda antes de nós.
Arnaldo Antunes
É noite de sexta-feira e como de costume recebo alguns amigos em casa para uma rodada de truco. Confesso que não sei jogar muito bem, na verdade é só uma desculpa para receber os amigos e preencher um pouco do tempo. O telefone toca, levanto da poltrona e vou atender, é Catarina que mal consegue falar, peço para se acalmar e dizer o que aconteceu, ela respira e pede para encontrá-la no hospital Central, nosso amigo Artur sofreu uma queda.
Desligo o telefone e vou ao meu quarto trocar de roupa, um filme surge em minha cabeça, lembranças de nossas risadas, confidências, momentos… Desligo a tv, fecho a porta e pego o carro, algumas perguntas não param de surgir:
– O que aconteceu? Ele teve uma fratura? Está bem?
Sem respostas deixo o carro no estacionamento e logo avisto Catarina que corre para os meus braços.
– Se acalme querida, dará tudo certo, digo, e ela em prantos responde:
– Será?
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Peço para sentar no sofá enquanto pego um café, um pouco mais calma ela começa a contar que estava na casa de Artur, esperando-o, para virem em casa para mais uma rodada de jogatina, quando ouviu um barulho. Então deparou-se com ele caído, sangue por todo lado.
Pausa.
Por muito tempo tive medo de envelhecer, na medida que os anos foram passando fui sentindo no meu corpo as transformações. A primeira delas foi quando no ônibus o motorista falou:
– Cuidado senhora, o piso está molhado.
Confesso que fiquei paralisada e pensei: “Meu Deus, estou velha”.
Mas o que é ser velha? Quais as mudanças que ocorrem no nosso biofísico, nas nossas relações sociais? Por esses e outros questionamentos, comecei um grupo de apoio com alguns amigos que estavam entrando nessa fase para que pudéssemos refletir, questionar, provocar e nos apoiar.
Nessa época, Artur e Catarina se aproximaram, e juntos vivemos momentos incríveis, experimentando os limites e potencialidades de nossa maturidade.
Entender a vida como um processo inteiro e não fragmentado nos ajudou a dar sentido a essa etapa da vida, o envelhecer. Decidimos que aproveitaríamos cada momento dando significado e ressignificando nossa existência.
Revisitamos as obras de alguns filósofos como Nietzsche que trata um tema relevante sobre a vontade de potência, em seu pensamento “a vontade de potência não é um ser, não é um devir, mas um pathos – ela é o fato elementar de onde resulta um devir e uma ação”.
Decidimos então vencer a fatalidade para preservar o que ser, de ir adiante, do entendimento do vir a ser, de dar voz à potência de vida em nós, à força da vida em movimento.
A velhice não é sinônimo de fragilidade e feiúra, ressignificar palavras abriu um campo de possibilidades, lembramos a leitura do livro Tentativas de fazer algo da vida, de Hendrik Groen, em que o personagem Groen decide com alguns amigos organizar o grupo: “Tô velho, mas não tô morto”, e viviam todos numa casa de longa permanência e precisavam, para além das regras impostas pela instituição, pelas limitações do espaço e do corpo, dar sentido à vida.
Tínhamos uma visão clara de nossa realidade, de nossas limitações físicas, mas quem não as tem em todas as fases da vida? Sabíamos dos desafios que enfrentaríamos ao questionar e provocar o padrão da eterna juventude, mas era preciso e necessário.
Como Rosa Dias descreve em sua vasta obra sobre a necessidade de o indivíduo ir construindo sua própria singularidade, era o que tentávamos, eu e meus amigos.
Estabelecer laços
Lembrei da fala de uma professora querida do curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, promovido pela PUC-SP, Karen Harari que, ao ser questionada sobre como resistir a uma sociedade tão excludente, falou: “estabelecer relações significativas, sozinhos não resistimos ao biopoder”.
Entendi nesse momento que estabelecer laços, trocar e compartilhar saberes, acolher e se permitir ser acolhido, pensar e repensar uma vida de sentido e significado é uma forma de resistir e existir.
Finalmente, nosso amigo Artur acordou e pudemos vê-lo.
Sorri e segurei sua mão.
– Você nos assustou disse Catarina, ele balbuciou:
– Não foi minha intenção.
Rimos e naquele momento lembrei de uma frase do personagem do livro A Última Grande lição: “O amor vence. Sempre”.
Meu amigo partiu no dia 20 de março de 2021, num sábado de sol. Ele deixará saudades e um legado de afetos, companheirismo, de bom viver. Sempre dizia que envelhecer é um processo bonito, que deveria ser vivido com inteireza e orgulho.
Sempre combateu o discurso do adjetivar o envelhecimento como algo negativo, pelo contrário, foi um ferrenho defensor da busca pela potência de existir, do percurso natural da vida.
Estamos todos conectados
Ao abrir a janela da sala deparei-me com um belo arco íris, fechei meus olhos e agradeci, estamos todos conectados.
Formar uma comunidade com aqueles que amamos, buscar significado no que somos e vamos nos tornando ao longo da vida, desenvolver um pensamento crítico e um arcabouço teórico para trocar saberes, reconhecer que somos seres singulares que trazemos cada uma sua história, lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, compreendendo que tudo está integrado, nos ajuda a entender o sentido do movimento da vida, da potência da vida e assim ir nos transformando.
Estamos num processo constante de “vir a ser”, por isso, construa-se e seja como alguém que é.
Quem deseja ser?
Era uma pergunta recorrente do meu amigo Artur e, parafraseando, uma poeta que gosto muito, Viviane Mose, viver é sempre o mais importante.
Para meu querido pai Ronaldo José. Que faleceu em decorrência do COVID/19.
(*) Renata Souza – Assistente Social, atua com meio ambiente. Texto escrito no curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, promovido pela PUC-SP, no primeiro semestre de 2021. E-mail: [email protected].
Imagem destaque de jmesquitaau/Pixabay