Clarice cultivava sua rotina nos mínimos detalhes. Acordava todos os dias no mesmo horário, saía de sua cama sempre pelo lado esquerdo e sem deixar a luz entrar acariciava um baú que ficava aos pés do seu leito. Aprendeu com o tempo, a viver com a presença da ausência […].
Joel Fernando Borella *
Os olhos suados pela esperança, que nega o tempo e sucumbe-se a vontade. Ela, com os seus 67 anos, guardava consigo, a boneca que lhe acompanhava, quando criança, em seus cafés. Morava na mesma rua, na mesma casa onde nascera.
O muro guardava ainda, a primeira mão de tinta, que se confundia com os farelos dos tijolos e o verde do musgo. As janelas, sempre fechadas, deixavam-se atravessar pelo sol de todas as manhãs.
Um misto de poeira, claridade e solidão, dançavam no chão da sala, quarto, cozinha e banheiro. Seus pais, há tempos, se foram para um lugar que, mesmo sem ela saber, chamava de céu.
Entretanto, o paletó azul e o chapéu de palha surrado pelo uso, ainda repousavam na cadeira de balanço, enquanto o vestido de domingo de sua mãe, mantinha-se, como toda semana, pendurado na porta do banheiro.
Clarice; cultivava sua rotina nos mínimos detalhes.
Acordava todos os dias no mesmo horário, saía de sua cama sempre pelo lado esquerdo e, sem deixar a luz entrar, acariciava um baú que ficava aos pés do seu leito. Aprendeu com o tempo, a viver com a presença da ausência; um exercício árduo que consumia todas as lágrimas e sorrisos dessa mulher.
Ela alimentava um sonho todos os dias, talvez a única fresta de luz em sua vida cinza. Sonhava em poder compartilhar sua existência com alguém que a pudesse levar ao altar.
Então, mantinha a mesma vestimenta, maquilagem e perfumes de quando ela ainda gozava de uma aparência jovem – pois acreditava que assim pudesse flertar com o acaso – e um enxoval que bordara aos 20 anos.
Essas carícias de todas as manhãs em seu baú escondiam o seu bem mais precioso; seu vestido de noiva. Esse; começou a ser costurado quando Clarice teve sua menarca, todavia, nunca fora terminado; sempre havia por fazer.
Então, com o mesmo afinco, na nutrição de sua rotina, ela, tirava o vestido todas as manhãs para que o pouco de sol que perpassava a janela de seu quarto pudesse tocar aquele já amarelado e carcomido pelo tempo.
Esse ritual era jazido com linha e agulha, costurando muito mais que rendas e estrasses; costurando sua vida e suas angústias de permanecer esposa da sua solidão. Então, nessa busca ofegante por um outro, Clarice, se perdeu e acabou por descobrir que a vida é breve como gelo e às vezes faz calor.
Contudo, a dança rotineira do sol sobre as frestas, ainda aquecem muito mais que o seu vestido de noiva, aquece um sonho que mantêm Clarice distante de uma realidade que se esfarela como os tijolos do seu muro.
* Joel Fernando Borella – Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e Professor de Psicologia Centro Universitário Anhanguera – LemeSP.