“A casa de Bernarda Alba” e a repressão da mulher na velhice

A peça A casa de Bernarda Alba é dividida em três atos e conta com todo o elenco formado por mulheres, todas consideradas feias e já velhas pelo pequeno povoado que moram.

Ana Luiza Martins de Silva (*)


Federico Garcia Lorca foi um dramaturgo e poeta espanhol nascido em 1898. Suas obras são conhecidas por não só retratar os costumes e cotidiano espanhóis no século XX, mas também denunciarem as violências fascistas e franquistas que o país sofria na época, sendo assim um grande militante de seu tempo. Lorca morreu fuzilado na cidade de Granada em 1936, por ser considerado comunista, além de ser muito perseguido por ser homossexual. Apesar de suas obras serem do século passado, ainda refletem muitos aspectos que vivenciamos atualmente, como é o caso de sua última peça escrita que será aqui analisada, A Casa de Bernarda Alba (1936), a qual o autor não viveu a tempo para a ver sendo encenada nos palcos.

A peça é dividida em três atos e conta com todo o elenco formado por mulheres. Bernarda (60 anos) é matriarca de sua família composta por suas filhas Angústias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela, todas consideradas feias e já velhas pelo pequeno povoado que moram, com exceção de Adela, a mais nova entre as irmãs (20 anos), e sua mãe, Maria Josefa (80 anos), que mantém trancada em seu quarto por acharem-na louca. A trama inicia-se com a conversa entre a criada e governanta de Bernarda, La Poncia, que contextualizando para a plateia que irá ocorrer o funeral do marido de sua patroa, e fofocam como esta é uma mulher amargurada e autoritária com as filhas, mantendo trancas dentro de casa sobre sua vigilância. Devido ao luto, todas as filhas devem usar roupas escuras que cubram o corpo todo por oito anos em respeito ao pai falecido.

O conflito se inicia quando é revelado que Angústias, a filha mais velha e com mais posses devido à herança que ganhou do pai de outro casamento de Bernarda, está noiva do homem mais cobiçado do povoado, Pepe Romano, o qual as funcionárias e irmãs acusam de ter pedido a mão de Angústias somente por seu dinheiro, visto que não entender o porquê de um homem jovem e bonito ter se interessado por uma mulher “feia e acabada”.

A trama insinua que Pepe Romano está tendo um caso com Adela,  encontrando-se com ela no celeiro de sua casa durante a madrugada, o que é descoberto pelas personagens. Para afastar Pepe Romano de suas filhas e evitar que virem um grande escândalo entre os vizinhos, Bernarda tenta matá-lo sem sucesso, porém mente para Adela que ele está morto, resultando em seu suicídio. A peça finaliza com Bernarda ordenando para que todas preparem o corpo para o funeral, gritando que sua filha morreu virgem, mostrando que o mais importante para ela é manter as aparências do que a dignidade das filhas.

A velhice na peça (e na vida)

A velhice é muitas vezes utilizada na peça como um aspecto negativo da mulher, como quando é dito que as filhas de Bernarda estão ficando velhas, e, portanto, feias, de tal modo que não poderão atrair nenhum homem, e desta forma, não poderão se casar. O casamento no contexto em que a peça foi escrita era visto como uma única forma de emancipação para muitas, pois esta poderia deixar a família e o povoado, em que era muito submissa devido ao patriarcado e o conservadorismo, podendo assim iniciar uma nova identidade, e mesmo que submissa ao marido, tendo muito mais controle de sua vida do que quando dependia dos pais.

Ainda hoje, a velhice é muito estigmatizada, principalmente quando falamos sobre mulheres na cultura ocidental, que têm sua jovialidade, feminilidade a aparência muito cultuadas, marginalizando as mulheres velhas, colocando-as fora do padrão de beleza e as retratando muitas vezes nas histórias como personagens amaldiçoadas e malvadas.

As mulheres de idade avançada enfrentam muitos desafios gerados por leis e políticas sociais de uma sociedade sexista e gerofóbica. As crenças sexistas e gerofóbicas refletem a ênfase da sociedade na produtividade, no atrativo sexual e físico. O contexto social atual ensina e perpetua o descrédito na mulher idosa, começando com a representação da mulher velha nas histórias clássicas como bruxas, feias e malvadas.” (SALGADO, p. 9)

Encontramos este tipo de representação em Bernarda, a qual é uma senhora de 60 anos amargurada e dominadora. Porém, Lorca rompe com esta concepção quando somos apresentados à Maria Josefa, a personagem mais velha da peça, e a mais livre (mesmo que aprisionada), que aparece poucas vezes quando consegue fugir de seu quarto, porém trazendo consigo falas marcantes. A personagem se destoa de todo o cenário e figurino das demais, que são escuros e pesados, por usar roupas coloridas, várias bijuterias e flores em seu cabelo e na região do colo.

Geralmente o que vemos nas histórias é o oposto, em que as personagem novas usam roupas bonitas e divertidas enquanto as personagens velhas usam roupas sóbrias e monótonas, como se não pudessem e devessem se importar com a aparência já que são julgadas feias pela sociedade, como se a autoestima e a vaidade tivessem sido sacrificadas para envelhecerem. Não é o caso de Maria Josefa, que não só recusa as ordens de Bernarda de vestir as vestes enlutadas, mas também toda a imposição de uma sociedade que condena a mulher e sua liberdade que Bernarda representa.

Geralmente o que vemos nas histórias é o oposto, em que as personagem novas usam roupas bonitas e divertidas enquanto as personagens velhas usam roupas sóbrias e monótonas, como se não pudessem e devessem se importar com a aparência já que são julgadas feias pela sociedade, como se a autoestima e a vaidade tivessem sido sacrificadas para envelhecerem. Não é o caso de Maria Josefa, que não só recusa as ordens de Bernarda de vestir as vestes enlutadas, mas também toda a imposição de uma sociedade que condena a mulher e sua liberdade que Bernarda representa.

Além disso, Maria Josefa, de A Casa de Bernarda Alba, possui falas que aparentam ser desconexas e sem sentido devido à sua demência, como quando canta para a cabra que carrega e que diz ser seu bebê, porém suas falas revelam como está lúcida quanto o autoritarismo e a submissão presente na casa, sendo a única com coragem de enfrentar Bernarda:

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Não. Não me calo. Não quero ver estas mulheres solteiras ansiando pelo casamento, desfazendo em pó o coração. Quero ir para minha terra, Bernarda, quero um homem para me casar e para ter alegria.

Eu quero campo. Quero casas, mas casas abertas e vizinhas deitadas em suas camas com filhos pequeninos e os homens fora sentados em suas cadeiras. Pepe Romano é um gigante. Vocês todas o querem. Mas ele as vai devorar porque são grãos de trigo. Grãos de trigo não. Rãs sem língua!

A persona, na teoria de Carl Jung, trata-se de um personagem interpretado por nós em diferentes situações em que temos contato com o outro, com a intenção de passarmos alguma impressão para eles, subjugando assim todas as emoções, impulsos e instintos primitivos que não são socialmente aceitáveis, contrapondo-se com a sombra, que se trata daquilo de nós ocultamos, que não queremos admitir que temos, aspectos que consideramos negativos ou que nos envergonhamos.

Bernarda afirma trancar sua mãe por ela ser louca, porém também pode ser como uma projeção psicológica sua, pois Bernarda tenta manter firmemente e também instalar naquelas à sua volta a persona que respeite as morais impostas, que mantém as boas aparências, de que precisam ser recatadas e discretas à todo instante, e ao entrar em contato com Maria Josefa também entra em relação com a sombra impregnada na casa, a de querer confrontar tais morais, de querer se rebelar, como Adela que rompeu com a obrigação de ser virgem e Maria Josefa de se enfeitar e sentir-se bela.

Não é fácil entrarmos em contato com nossa sombra, assim como não é fácil romper com os valores morais e estigmas em nossa sociedade em que a mulher tem que ser submissa, bela e jovem, tendo que recorrer a inúmeros procedimentos estéticos e cirurgias para agradar e ser agradada, e caso não consiga sendo obrigada a se esconder. O final da peça parece ser pessimista, pois Adela está morta e Maria Josefa continua trancada, porém acredita-se que, assim como Lorca fez em sua arte, podemos resistir, iluminar e revelar aquilo que a sombra da nossa sociedade tanto oculta.

Referências
LORCA, Federico Garcia. A Casa de Bernarda Alba. 1936.
SALGADO, Carmen Delia Sánchez. Mulher idosa: a feminização da velhice. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, [s. l.], v. 4, 2002.

(*) Ana Luiza Martins de Silva – Aluna do 5º período da graduação do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Texto escrito na eletiva Velhos no Teatro, ministrada pela profa. Ruth Gelehrter da Costa Lopes. E-mail: [email protected]


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