Velhice: que lugar escuro é esse?

Velhice: que lugar escuro é esse?

O que precisamos é garantir que cada um possa ter assegurado seu direito de escolha, que a velhice e seu processo seja para cada um o resultado de suas escolhas. São essas escolhas que garantirão a todos os indivíduos o direito a seu exercício de autonomia, tão restrito no processo de envelhecimento. Precisamos dar voz ao velho e abrir os ouvidos para escutar.

Por Vanessa Caroline Lopes dos Santos (*)

 

Numa sociedade onde se prestigia a juventude, como é tornar-se velho?

Numa breve reflexão sobre envelhecimento, percebi uma grande dificuldade em falar do termo “velhice”. Revistas e propagandas não trazem figuras de velhos reais, só rostos jovens com cabelos prateados, como se velhice se resumisse a cabelos brancos. Velhos não vendem produtos para uma sociedade jovem.

Mas quando ficamos velhos?

Segundo o Estatuto do Idoso, a velhice começa aos sessenta anos. Será que estamos mesmo velhos aos sessenta?

Entendo que velhice é um conceito muito mais amplo do que a idade cronológica. Melhor me encaixa o conceito da Organização Mundial de Saúde que define envelhecimento como “um processo sequencial, individual, acumulativo, irreversível, universal, não patológico, de deterioração de um organismo maduro, próprio a todos os membros de uma espécie, de maneira que o tempo o torne menos capaz de fazer frente ao estresse do meio-ambiente e, portanto, aumente sua possibilidade de morte” (Cadernos de Atenção Básica nº 19, 2006, p.8).

A velhice, como acontece hoje, nos coloca num lugar de dependência e subjugado ao desejo dos outros. O velho vai perdendo sua autonomia e cada vez mais vai sendo dominado por seus “cuidadores”.

Nós construímos essa condição social do velho e criamos para a velhice o lugar que ela ocupa. Cabe a nós, também, enquanto profissionais e formadores de opinião, darmos outro lugar, hoje, à velhice.

Para tal reconstrução é necessário revermos nossa prática, redefinirmos nosso discurso e principalmente adotarmos outra postura frente à velhice. De nada adianta falar em autonomia do idoso, se em minha prática somente ouço o cuidador e os filhos, e o idoso não participa do processo de cuidado e de tratamento.

Há de se perguntar: – isso só é possível quando ele é lúcido, quero ver dar voz ao paciente demenciado.

O paciente em processo de demência também precisa estar integrado ao processo de cuidados consigo mesmo, claro que dentro dos limites de sua compreensão, mas também deve receber orientação e informações.

Envelhecer é natural e inerente a todo ser vivo. Doenças são passíveis de acontecer em qualquer fase da vida; claro que na velhice são mais notadas, já que o organismo envelhecido tem o declínio natural do processo de senescência.

Temos um aumento na expectativa de vida populacional e esta amplitude de tempo de vida parece aumentar cada vez mais, com os avanços tecnológicos e as novas descobertas nas áreas médicas, logo viveremos mais tempo. E como será estar mais tempo vivo? Precisamos pensar nossa velhice, o que fazer no tempo que temos? Quando já cumprimos as expectativas sociais de cada fase da vida, o que nos restará?

Essa resposta é muito individual, porém é preciso que cada um de nós tenha pensado na velhice e no que fazer nesse tempo.

Redescobrir os prazeres e as habilidades que temos com as possibilidades que conservaremos. Estar velho pode nos colocar mais próximos de nossa finitude, mas não é um ensaio diário para a morte.

Receba as últimas notícias!

Não perca nossas principais notícias e notícias que você precisa saber todos os dias em sua sua caiza de entrada.

Vivamos enquanto ainda estamos vivos.

Cada dia mais nos deparamos com “fórmulas mágicas da juventude”; porém para quem envelhece a juventude do corpo não é mais opção. Nosso corpo não tem mais essa possibilidade, precisamos caber nessa nova roupa: a de velho. Esse processo acontece de forma individual e tem grande relação com todo o processo de vida que tivemos no decorrer de nossos anos.

Envelhecemos como vivemos, não há fórmula que nos dê um resultado diferente, fatores como escolarização, condições socioeconômicas e gênero têm influência direta em como vivenciaremos nossa velhice.

As redes de relações, os vínculos significativos construídos ao longo de nossa vida também são fatores determinantes nesse processo, pessoas com vínculos afetivos significativos provavelmente terão companhia, menos solidão e menos arrependimentos.

Mas enquanto falarmos de pessoas, relações humanas e experiências individuais nada é retilíneo e preciso, tudo são possibilidades e cada protagonista é quem escreve o fim.

Esse fim pode ser surpreendentemente diferente de tudo o que foi construído ao longo do caminho, pode ter uma reviravolta e um desfecho totalmente inesperado, enquanto estamos vivos há uma possibilidade.

Há também os que preferem o desfecho predefinido, já sinalizado no decorrer de seu percurso, sem surpresas, sem reviravoltas, apenas o fim desenhado no decorrer de seu ciclo de vida.

O que precisamos é garantir que cada um possa ter assegurado seu direito de escolha, que a velhice e seu processo seja para cada um o resultado de suas escolhas. São essas escolhas que garantirão a todos os indivíduos o direito a seu exercício de autonomia, tão restrito no processo de envelhecimento. Precisamos dar voz ao velho e abrir os ouvidos para escutar.

Durante toda essa reflexão me remeto a envelhecimento como processo, em meu entendimento é um processo físico, emocional, social e individual. Construímos a velhice diuturnamente, cada decisão de vida que tomamos refletirá nesse processo, processo definido como continuidade e construção de um resultado ou etapa. Como todo processo, sempre cabe ajustes ou acertos; sempre podemos reconstruir e ressignificar, mas é preciso ser protagonista de nossas decisões para que possamos mudar o curso de nossa história.

Essência do vazio

Groen, no livro “Tentativas de se fazer algo da vida”, assinala que “Quando se é velho mesmo, já não há nenhum objetivo a alcançar. Essa é a essência do vazio da existência aqui. Já não existem objetivos. Nenhuma prova na qual passar, nenhuma carreira para seguir, nenhum filho para criar. Já estamos velhos demais até para cuidar dos netos” (2016, p.138). Nesse trecho Groen nos apresenta uma visão bastante comum para quem vivencia o processo de envelhecimento atual, baseado na nulidade e na eutanásia social do indivíduo velho, onde o colocamos como incapaz de decidir o que é melhor para si, como se envelhecer fosse uma condenação a espera da morte sem direito a novas experiências ou qualquer perspectiva de vida.

É essa ressignificação de “estar vivo” que precisamos buscar nesse processo de envelhecer. Descobrir novas possibilidades reais, que possam ser realizadas mesmo com as limitações da atual condição.

Estar feliz, ter um lugar no mundo e ser protagonista de sua história é possível a qualquer tempo e em qualquer momento. Não disse que é fácil, é um exercício de empoderamento das pequenas coisas da rotina diária, que vai crescendo e tomando proporções maiores. Esse caminho tem percalços e requer realizar enfrentamentos, nos tira do lugar comum que nos oferecem e nos coloca num lugar sem definição que precisa ser construído, mas nos traz recompensas e nos apresenta um infinito de novas possibilidades. A finitude chegará, no tempo dela, sempre será uma surpresa, mas chegará como brisa, que bate sem que se espere e, se chegar como redemoinho, envolta na tempestade, também não importa; pois cada dia que a antecedeu foi vivido, experimentado e nos deu a oportunidade de dar novos significados a velhas experiências.

Referências

Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Envelhecimento e saúde da pessoa idosa / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Cadernos de Atenção Básica N. 19 – Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

GROEN; Hendrick. Tentativas de fazer algo da vida. São Paulo. Tusquets editores; 2016.

(*)Vanessa Caroline Lopes dos Santos – Texto escrito para o curso Gerontologia Social e atendimento: Fragilidades na velhice, ministrado pelo COGEAE/PUC-SP, no primeiro semestre de 2017. E-mail: [email protected]

Portal do Envelhecimento

Compartilhe:

Avatar do Autor

Portal do Envelhecimento

Portal do Envelhecimento escreveu 4204 posts

Veja todos os posts de Portal do Envelhecimento
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

Descubra mais sobre Portal do Envelhecimento e Longeviver

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading