Velhice: iluminação perante a vida e o tempo

velhice-iluminacao-perante-a-vida-e-o-tempoA presente reflexão se desenvolve no sentido de fundamentar a noção de velhice como uma época de iluminação perante a vida, para além da concepção antiga e reduzida da decadência biológica. Tal questão se realiza aqui através de um diálogo com a noção de vivência do tempo trazida por Léo Pessini em “Finitude: Viver no pesadelo do Cronos ou escolher a benção do Kairós?”.

Giullia de Freitas Longo e Ruth Gelehrter da Costa Lopes *

Para tanto, trabalhamos o filme “Tomates verdes fritos”, o qual ilustra a concepção de velhice como época de possibilidades e iluminação perante o tempo.

O aumento contínuo da expectativa de vida no mundo contemporâneo traz à luz a necessidade de atenção à questão da velhice e suas representações. Essa reflexão se desenvolve no sentido de fundamentar a noção de velhice como uma época de iluminação perante a vida, para além da concepção antiga e reduzida da decadência biológica.

Tal questão se realiza aqui através de um diálogo inicial com a noção de vivência do tempo trazida por Léo Pessini em “Finitude: Viver no pesadelo do Cronos ou escolher a benção do Kairós?”, artigo publicado no livro “Velhices: reflexões contemporâneas” (2006).

Ao colocar a questão da vivência do tempo como central para a aceitação desta condição humana de ser finito, trazendo as dimensões Cronos e Kairós de vivência do mesmo, Pessini abre espaço à recuperação da Fenomenologia e suas postulações sobre a temporalidade.

Neste sentido, o diálogo com a concepção de saúde-doença da velhice pelas mídias se abre amplamente, uma vez que ainda se observa concepções ligadas à saúde puramente biológica, baseada na vivência específica do Cronos – o tempo cronológico, no qual se luta contra, sente-se vítima – e poucas representações que remetam a uma noção mais ampla de saúde, que contempla o Kairós – o tempo em sua vivência subjetiva, própria da existência humana.

As representações do tempo Kairós encontram-se com maior destaque em mídias cinematográficas, como no filme “Tomates Verdes Fritos”, de Jon Avnet, bem como em obras literárias e poéticas, como no poema “A velhice é um vento”, de Fernando Echevarría.

Observa-se que, apesar do aumento contínuo da expectativa de vida no mundo – e consequentemente da maior presença de idosos nas sociedades –, há, ainda hoje, certo tabu envolvendo esta etapa do desenvolvimento humano. Pouco se discute sobre o lugar do velho na sociedade, bem como suas capacidades e necessidades. Reina, ainda, um estereótipo de invalidez e inutilidade ligada a velhice que se reverbera, obviamente, na mídia.

No entanto, é crescente o campo de estudo e ação neste assunto, observando-se, inclusive na própria mídia, uma mudança gradual – ainda que lenta – na concepção desta fase da vida, uma fase de iluminação e não de obscuridade.

Uma importante reflexão, neste sentido, se faz acerca da vivência do tempo. Assim, retomando a Fenomenologia, então, é possível caracterizar duas formas distintas de tal vivência: Cronos e Kairós.

Kairós, caracterizada como relação de temporalidade, é uma vivência existencial do tempo, implica a percepção individual dos momentos, com aceitação e acolhimento da vida. É a dimensão do tempo que dá sentido ao vivido. E é através desta vivência com o sentimento de fluidez do tempo que a mesma traz, que se dá o convencionamento do tempo, criando, então, uma relação dita temporal.

Já Cronos, é uma vivência de metrificação do tempo que se dá de forma linear, social, artificial e condicionada. No entanto, é fácil observar que a vivência do Cronos se sobrepõe a Kairós, uma vez que o peso do desconhecido – da morte – implica ao homem lutar contra seu caráter mais fundamental, o de ser finito.

Tendo em vista a presença cada vez maior de idosos entre nós, então, abrem-se diversas reflexões acerca deste caráter finito do ser humano. Tal caráter tende a ser ignorado, buscando-se formas de prolongar a vida por meio da ciência, por exemplo. Segundo Pessini (2006), “Num momento de ‘ilusão utópica’ chegamos até a acreditar que a realidade do morrer não faz parte de nosso existir, pensamos e agimos como se fôssemos imortais…”, buscando incessantemente por curas, mais do que por cuidados.

Soma-se a isto a forma linear e cronológica de vivência do tempo (Cronos), na qual os homens lutam contra um relógio que marca o futuro limitado pela morte. Diante desta realidade, torna-se claro que a presença do idoso se transforma num desconfortável lembrete daquilo que não se pode negar.

O velho, então, passa a ser um incômodo, tratado como impossibilitado de tempo. Faz-se necessário, assim, atentar ao fato de que ainda que perseguidos por um futuro limitado pela morte, nenhum evento da vida deve ser visto como finito, pois enquanto há vida, existem também possibilidades. Mais do que proporcionar tratamentos biológicos que buscam uma dita cura e adicionam anos à vida, é necessário cuidar dos idosos de forma a adicionar vida aos anos (às semanas, aos dias…) que inegavelmente ainda estão em suas mãos.

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Sobre isto, observa-se a presença de uma mídia que ainda centra o velho na vivência Cronos que o limita à finitude, bem como à impossibilidade. Além disso, ainda é forte a disseminação da imagem do idoso ligada à cura, a medicamentos e tratamentos de ordem puramente física e biológica.

Mídias cinematográficas refletem sobre “o saudável”

Esta realidade que, de fato, já caminha para uma transformação, é observável nas mídias televisivas e de propaganda, as quais, inegavelmente, são de maior alcance em termos de público. No entanto, ao observar mídias cinematográficas, é possível encontrar retratos de uma vivência de Kairós quando se fala em envelhecimento, como é o caso do filme “Tomates verdes fritos” (Fried green tomatos – EUA, 1991).

velhice-iluminacao-perante-a-vida-e-o-tempoO filme conta a história da amizade entre Evelyn e Ninny. Evelyn é uma dona de casa de meia-idade – ou seja, entrando na velhice – e frustrada, que leva uma vida monótona, e nem sequer recebe o carinho, a atenção e o reconhecimento de seu marido que parece não enxergá-la.

Por sua vez, Ninny é uma senhora de 83 anos, que, com a saúde extremamente debilitada, permanece internada no mesmo hospital que Evelyn acompanha o marido a visitas periódicas a uma tia doente. Nestas visitas as mulheres se conhecem e iniciam uma amizade. Ninny conta a Evelyn histórias de seu passado mostrando a dimensão kairós de seu tempo, suas significações, e abrindo, assim, espaço para que Evelyn decida pela transformação de uma vida, até então, de lamentos.

Ao trazer as histórias de Ninny como força que impulsiona Evelyn a tomar atitudes e fazer escolhas diante de sua própria vida, o filme não apenas mostra a vivência da dimensão kairós do tempo, mas traz também a questão da saúde como algo não apenas biológico, e sim a forma como se vivencia o tempo.

Ninny, aos 83 anos, internada permanentemente num hospital, com a saúde debilitada, se apresenta mais saudável emocionalmente do que sua mais recente amiga. Evelyn, ainda que fisicamente saudável e mais jovem, traz uma vivência pesada de tempo, não enxergando possibilidades para sua vida, permanecendo inerte em uma realidade que a sufoca. Neste sentido, seria ela mais saudável do que Ninny?

Abre-se, assim, uma reflexão acerca da simbolização do saudável, desmistificando a concepção de que idoso implica necessariamente em doença, ou de saúde como algo necessariamente biológico. A existência de Evelyn se abre para o possível, sua vida se enche de sentido a partir das lembranças de Ninny.

É possível ainda, um paralelo entre o filme e a ideia também trazida por Pessini acerca da questão da dignidade do adeus à vida. O autor afirma ser necessário, para tanto, ir além do contexto médico-hospitalar e físico-biológico, abrindo espaço a um contexto sócio-relacional. Esta necessidade torna-se clara no filme, ao passo de que Ninny, com todos os cuidados médicos, práticos, físicos, necessitava ainda de relações sociais, falta esta suprida pela amizade com Evelyn.

Diante do exposto, então, conclui-se não apenas que a velhice deve ser encarada como um tempo de iluminação perante a vida – uma vez que a vivência subjetiva do tempo traz ao idoso não apenas lembranças e significações, mas principalmente a possibilidade de viver cada momento de forma singular e possível – como também, lembrando, que a mídia exerce importante papel nesta forma de lidar com a velhice e o envelhecimento.

A mídia, atualmente, funciona como elemento transformador, entrando em cena como protagonista na inserção do velho na sociedade como indivíduo capaz e possível. Neste sentido, “Tomates Verdes Fritos” traz a noção da possibilidade de escolha e transformação de vida, bem como a noção do idoso como detentor de um tempo subjetivo e precioso.

Há ainda a disseminação da ideia de que ser saudável não implica necessariamente em questões físicas e biológicas, envolvendo também questões sociais e emocionais.

Finalizamos essa reflexão com um poema de Fernando Echevarría, “A velhice é um vento” (em “Figuras”, 1987): a ideia da velhice como tempo de iluminação e de vivência subjetiva do tempo, a qual deve se estender por toda a vida.

“A velhice é um vento que nos toma no seu halo feliz de ensombramento. E em nós depõe do que se deu à obra somente o modo de não sentir o tempo, senão no ritmo interior de a sombra

passar à transparência do momento. Mas um momento de que baniram horas o hábito e o jeito de estar vendo para muito mais longe. Para de onde a obra surde. E a velhice nos ilumina o vento”.

* Giullia de Freitas Longo – Aluna do curso de graduação de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica – PUCSP, 5º semestre. Email: [email protected] e Ruth Gelehrter da Costa Lopes – Supervisora Atendimento Psicoterapêutico à Terceira Fase da Vida. Profa. Dra. Programa Estudos Pós Graduados em Gerontologia e no Curso de Psicologia, FACHS. Email: [email protected]

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