Trilogia dos loucos amores – Parte 2: Ondas do Destino

Trilogia dos loucos amores – Parte 2: Ondas do Destino

“O amor tem muita força. Se eu morrer é porque nem o amor conseguiu me manter vivo. Eu quase já nem consigo lembrar como é fazer amor. E se eu esquecer isso, morro mesmo. Lembra quando liguei da plataforma? Nós fizemos amor sem estarmos juntos. Quero que você procure um homem com quem faça amor e depois venha me contar como foi. Será como se eu e você voltássemos a estar juntos. E isso vai me manter vivo”.

 

Depois de todas as “Perdas e Danos” sofridas por Stephen e Anna, chegamos a “Ondas do Destino” (1996, Breaking the Waves): a triste história da essência do sacrifício contada pelo mais louco dos insanos cineastas, o dinamarquês Lars Von Trier, um homem que padece pela angústia da alma, um depressivo genuíno que, no seu vazio existencial, flerta com os limites do humano e cria a tragédia, na acepção da palavra.

“O nome dele é Jan”. Eu diria, simplesmente Jan, o forasteiro que trabalha na plataforma de petróleo. Quando a moça é severamente questionada pelo conselho de anciãos da cidade “Qual o significado de matrimônio para você?”, ela responde: “É quando duas pessoas são unidas em Deus”.

Sim, essa é Bess McNeill desafiando a ordem imposta pela aridez de uma comunidade calvinista, repleta de restrições e do encanto oferecido pelos outsiders representados por Jan e seus companheiros de trabalho, de uma personagem que se apresenta extremamente dominável por sua aparência frágil e pela clara demonstração de uma patologia mental.

Com uma olhadela sorrateira, quase atrevida, ela enfrenta uma câmera que a persegue, conduzida pela mão de seu criador: é a presença onisciente de Deus que a tudo vê, e a tudo ouve. Esse é o cinema de Lars Von Trier, o sádico, o perverso manipulador, aquele que encontra em sua heroína uma mulher absolutamente disponível, a serviço de seu Senhor.

Capítulo 1: Bess se casa

Com um noivo atrasado, chegando direto dos céus, e uma noiva ansiosa, o casamento acontece numa igreja sem sinos, sem esperança, sem a melodia dos apaixonados.

Por que um homem tão imponente se apaixonou por uma mulher tão frágil? Como se deu o percurso dos primeiros olhares até o casamento? Bem, nunca saberemos do passado de Jan e Bess, essa é a maneira do cineasta instigar nossa imaginação e excitar nossos sentidos.

Ignorando as opiniões contrárias, pensando apenas em seu Jan, Bess entrega-se à festa, à música e aos desejos há muito reprimidos. No banheiro, ela pede: “Me possua agora”. Ele, atento a todos os detalhes, ao ritual respeitoso e delicado, próprio do momento, diz: “Não prefere um lugar mais romântico?” Mas quem a conhece sabe que limites e convenções não fazem parte de seu mundo. Assim, lá, o amor é consumado. Sussurros dela: “te amando…”. Sussurros dele: “te amando… te sentindo…”.

Capítulo 2: A vida com Jan

Na simplicidade de uma casinha, apenas eles. Bess deslumbrada com seu homem nu, deixa escapar maliciosos sorrisinhos de encantamento, admirados por poder tocar, beijar e ainda tornar aquele momento real. Ele, curioso, pergunta: “Como você aguentou? Como resistiu aos outros?” Ela responde: “Queria esperar por você”.

Num ambiente que interdita a expressão feminina em seus cultos religiosos, Bess encarnará um papel duplo em suas orações, onde não só pede suas bênçãos, mas também as responde, serva e Senhor incorporadas numa única pessoa. Uma espécie de pacto faustiano às avessas – Bess se associaria a Deus e não ao Diabo, numa relação que exige constante negociação, onde o que está em jogo é a quantidade de poder que se acredita ter e a manifestação visível deste.

Na igreja, ela e seu Senhor, o Deus repressor:

– Bess: Agradeço-te a maior dádiva de todas, a do amor. Agradeço-te pelo Jan.

– Ele: Saiba que o que dou, também posso tirar!

– Bess: Mas eu juro que me comporto bem.

E entre palavras ameaçadoras de Deus, a jovem, um tanto agitada, se delicia nos prazeres do amor e do sexo, nos meandros do nunca vivido, sentido ou sequer pensado.

Certo dia, Jan encontra o Padre e, não resistindo, questiona: “Por que não tem sinos?”

– Padre: A nossa igreja não precisa de sinos para adorar a Deus.

Não há dúvida, todos sabem, mas Bess, inconformada, ainda lamenta: “É um absurdo só os homens poderem falar na igreja”. Nos enterros também, apenas os homens. Existiria, neste lugar, um espaço em que ela pudesse viver a vida livremente?

O tempo passa. Chega o momento da partida de Jan. Bess se desespera. Sua mãe, submissa como todas as mulheres da região, repreende a filha: “Todas as mulheres da terra têm de aprender a viver sós quando os seus homens vão para o mar ou para as plataformas. E até você é capaz de aprender a ter paciência”. Dodo, a cunhada, não se contém e alerta o desconhecido Jan: “Eu não confio em você. Ela é muito susceptível, você pode conseguir tudo dela.” Mais tarde saberemos que a desconfiança tem sua razão de ser.

E o mesmo céu que o trouxe, o leva para longe de Bess.

Capítulo 3: A vida sozinha

Na igreja, buscando consolo para a solidão devastadora, sem Jan, a jovem é invadida pelas palavras repressoras de seu Senhor, o Deus interior.

– Ele: Tu és culpada de egoísmo, Bess. Não pensaste em um segundo sequer como isso deve ter sido doloroso para ele. Tens de me prometer ser uma boa menina, Bess!

Tudo gira em torno de Jan, seus pensamentos, suas ações, seus desejos; tudo pela eterna espera do amor que se foi. Na cabine telefônica, lá está ela e ele. A distância, neste momento não existe, apenas o amor.

– Bess: Todo mundo acha que te amo demais, e que se você descobrisse o quanto gosto, podia ficar chateado por não estarmos juntos agora.

– Jan: Nunca pare de dizer que me ama, certo?

– Bess: Eu te amo tanto.

– Jan: Eu te amo, também.

– Bess: Eu consigo ouvir sua respiração…

E o prazer se fez presente, repetidas vezes; calor e paixão, apenas entre palavras e sussurros… na cabine telefônica.

Faltando dez dias para Jan voltar, ela enlouquece e é repreendida:

– Ele: Bess McNeill, passaste anos rezando para teres amor. Queres agora que eu o tire? É isso que queres?

– Bess: Estou muito grata por ter amor. Quero que o Jan volte para casa.

– Ele: Vai voltar dentro de dez dias, tens que aprender a ser paciente!

– Bess: Eu só quero o Jan em casa. Eu te peço, por favor, não podes trazer ele para casa?

– Ele: Tens certeza de que é isso mesmo que queres?

– Bess: Tenho.

Como se costuma dizer, cuidado com o que você pede ao avesso de Mephisto, seu pedido pode ser atendido. E assim foi para Bess. O Deus que pune impiedosamente fez com que Jan realmente retornasse antes do tempo, mas tetraplégico, depois de um trágico acidente na plataforma. O médico dá a difícil notícia: “Ele ficará completamente paralisado. Assim, a vida não vale a pena ser vivida”. Bess, sorrindo, em tom quase solene, responde: “Mas ele viverá”.

E na conversa com o Senhor:

– Bess: Pai, estás aí?

– Ele: Sabes muito bem que sim. Quiseste o Jan em casa. Tu és uma garotinha estúpida. Tive de lhe testar. O teu amor pelo Jan foi posto à prova.

Capítulo 4: A doença de Jan

Num céu escuro, surge um arco-íris de esperança.

– Jan: Eu estou acabado, Bess. Pode arranjar um amante, desde que ninguém saiba, mas se divorciar de mim, não. Isso nunca vou deixar.

– Bess: Você acha que eu quero isso?

Atordoada com as palavras insensíveis de Jan, Bess se refugia em seu mundo e em sua culpa. Dodo, tendo ouvido toda conversa, sabe bem as consequências que algo assim pode ter sobre a cunhada: “Jan, ela faria qualquer coisa por você. Ela não faz nada por si mesma, mas por você faria tudo”.

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Mas Jan não lhe dá ouvidos e suplica pelo inominável (aquilo que nunca se pede a quem ama demais): “O amor tem muita força. Se eu morrer é porque nem o amor conseguiu me manter vivo. Eu quase já nem consigo lembrar como é fazer amor. E se eu esquecer isso, morro mesmo. Lembra quando liguei da plataforma? Nós fizemos amor sem estarmos juntos. Quero que você procure um homem com quem faça amor e depois venha me contar como foi. Será como se eu e você voltássemos a estar juntos. E isso vai me manter vivo”.

– Bess: Não sou capaz.

Capítulo 5: Dúvida

Um cenário de ruínas: assim está a vida de Bess.

Na conversa com Deus:

– Bess: Não o deixe morrer.

– Ele: E por que não devo deixar?

– Bess: Eu o amo.

– Ele: É o que não para de dizer, mas eu não vejo nada!

– Bess: Não há nada que eu possa fazer!

– Ele: Prove-me que o ama e eu o deixo viver.

Numa primeira tentativa, Bess procura o jovem médico para seduzi-lo, mas ele se recusa a corresponder. Ela volta para Jan e conta, em detalhes, que o sexo aconteceu, mas ele não acredita.

Ao saber que a saúde de Jan está seriamente comprometida, Bess, num ato de loucura, decide se entregar a outros homens. Ela acredita que fazendo isso, Jan viverá. Sofrendo, ela procura pelo socorro de Deus.

– Bess: Me perdoe pai, porque pequei.

– Ele: Maria Madalena pecou e ela está entre os meus bem aventurados.

Como esse Mephisto validando, de certa forma, seus pecados, Bess corre para o hospital e, segue o ritual, alimentando a imaginação de Jan. Ele melhora.

– Jan: Você acha que nos tornamos pessoas diferentes quando chegamos à beira do precipício? E que nos tornamos maus quando estamos prestes a morrer?

– Bess: Você não vai morrer, sei que não vai. Te prometo que não.

A doença nos torna cruéis, insensíveis aos limites do outro?

Capítulo 6: Fé

Disfarçada em múltiplas cores que se confundem na dolorosa finitude da vida, lá está a fé de Bess.

Contando histórias do prazer da carne e sobre a carne, ela acredita que pode salvá-lo. “O amor pode salvar Jan”. Pobre Bess, mergulhada na dor e na expiação dos próprios pecados.

Com a piora de Jan, Bess decide se prostituir e, a cada vez, correndo mais e mais perigo. Desesperada, ela já não ouve mais a palavra de Deus: “Pai, onde estás?”

Capítulo 7: O sacrifício de Bess

Destruída, destroçada, ela procura conforto na igreja, mas chegando lá encontra os anciãos e suas citações repressoras:

– Bess: Como se pode amar uma palavra? Não se pode amar palavras. Ninguém se apaixona por uma palavra. Mas outro ser humano já se pode amar. A perfeição é isso.

– Padre: Mulher alguma fala aqui.

Bess é escorraçada da igreja, abandonada por sua mãe e até pelas crianças, que atiram pedras, agridem e humilham a jovem pecadora. Ela encontra conforto apenas nos braços da fiel Dodo que, dolorosamente, avisa a cunhada que Jan está morrendo.

– Bess: Quero que você vá ao quarto do Jan rezar para que ele se cure e que se levante da cama e possa andar.

Depois disso, o sacrifício pela vida de Jan: Bess se entrega aos homens mais violentos e perigosos da região. Numa última conversa com Deus, Ele se fez presente: “Eu estou contigo Bess”.

Depois de algumas horas, Bess é internada gravemente ferida, dilacerada pelas violências sofridas. A vida chega ao fim.

Epílogo: O funeral

No tribunal:

– Juiz: Classificou a falecida como imatura e instável, alguém que devido ao trauma da doença do marido, entregou-se de forma obsessiva a uma exagerada e perversa forma de sexualidade. Importa-se de esclarecer as suas palavras?

– Médico: Foi isso que escrevi?

– Juiz: A falecida estava entregue aos seus cuidados e o tribunal deseja ouvir os fatos clínicos.

– Médico: Se me pedisse que voltasse a escrever a conclusão, em vez de escrever “neurótica” ou “psicótica”, eu talvez, apenas usasse uma palavra “boa”.

– Juiz: O mal da falecida era ser “boa”? Que foi esse o defeito psicológico que a levou a morte?

Sem saída, o que mais um médico poderia dizer aos homens do direito? “Não, claro que não”.

Na igreja, as palavras dos anciãos:

“Tudo que havia a dizer sobre Bess Mc Neill já foi dito. Decidimos consentir no enterro dela, mas um serviço fúnebre está fora de questão. O fato de alguns de nós termos conhecido bem a falecida, não deve influenciar a forma do enterro. Bess McNeill será enterrada como qualquer outra da sua espécie”.

No enterro: “Bess McNeill foste pecadora e por causa dos teus pecados és enviada para o inferno”. Dodo, revoltada, grita: “Ninguém entre vocês tem o direito de enviar a Bess para o inferno”.

Se valeu ou não o sacrifício, resta pensar: afinal, Jan se salvou.

Seguindo para a plataforma, vemos Jan e seus amigos e, junto deles, o corpo de Bess sendo lançado ao mar. No dia seguinte, a surpresa:

Finalmente, o sino toca e faz blém, blém, blém…

Agora Jan sabe, Bess ainda vive, pelo amor, por amor a ele e pela fé de Lars Von Trier.

 

 

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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